Capítulo V: A Questão Histórica da Desigualdade Social: Gênero, Raça, Classe e o Trabalho de Cuidado
A questão do trabalho de cuidado no Brasil está profundamente enraizada em desigualdades históricas que envolvem gênero, raça e classe social. Para compreender plenamente a marginalização e desvalorização desse tipo de trabalho, é necessário contextualizar a forma como as relações de trabalho, especialmente as associadas ao cuidado, foram moldadas ao longo da história do país. As estruturas coloniais e pós-coloniais criaram condições que perpetuaram a exploração de determinados grupos, especialmente mulheres negras e pobres, e sustentaram um sistema econômico que ainda hoje reflete essas desigualdades.
5.1 A Herança Colonial e a Escravidão: O Trabalho de Cuidado no Período Escravocrata
O Brasil, enquanto colônia portuguesa, desenvolveu um sistema econômico baseado na exploração da mão de obra escravizada, que teve um impacto profundo nas relações de trabalho e nas divisões sociais. A partir do século XVI, milhões de africanos foram trazidos à força para trabalhar em plantações de açúcar, minas e nas casas das elites coloniais. Nesse contexto, o trabalho doméstico e de cuidado foi um dos principais papéis atribuídos às mulheres negras escravizadas. Elas eram responsáveis pela manutenção das casas dos senhores, pelo cuidado dos filhos das famílias brancas e pela realização de uma série de tarefas domésticas essenciais.
Esse trabalho de cuidado, realizado sob condições de violência e desumanização, foi uma extensão das funções tradicionais atribuídas às mulheres na sociedade patriarcal. No entanto, no Brasil, a interseção entre raça e gênero tornou a exploração das mulheres negras ainda mais severa. Segundo a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado (1994), “o trabalho doméstico realizado por mulheres escravizadas foi um dos principais pilares do sistema escravocrata brasileiro, sustentando tanto a vida cotidiana das elites coloniais quanto o próprio desenvolvimento econômico da colônia”. Essas mulheres eram frequentemente vistas como "propriedade", e o trabalho que realizavam, por ser invisibilizado e associado à sua suposta “inferioridade” racial, foi historicamente desvalorizado.
Com a abolição formal da escravidão em 1888, a liberdade legal não trouxe uma transformação substancial nas condições de vida das mulheres negras. O fim da escravidão não foi acompanhado de políticas de integração econômica ou social para os ex-escravizados, o que forçou muitas mulheres negras a continuar trabalhando em condições precárias, muitas vezes nas mesmas funções que exerciam durante a escravidão, mas agora no regime de trabalho livre. Isso marcou o início da precarização do trabalho doméstico no Brasil, com as mulheres negras e pobres permanecendo relegadas às posições mais subalternas e sem acesso a direitos trabalhistas básicos.
5.2 O Trabalho de Cuidado no Período Republicano: Exclusão e Marginalização
A transição do Brasil para uma república no final do século XIX e início do século XX não alterou significativamente a posição das mulheres negras no mercado de trabalho. A industrialização incipiente e a urbanização criaram novas oportunidades de emprego para os homens, enquanto as mulheres, em sua maioria, continuavam confinadas ao trabalho doméstico e de cuidado. Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1978), “o processo de modernização brasileiro, embora tenha promovido a inclusão de alguns setores sociais na economia formal, não contemplou a massa de trabalhadores negros e pobres, que foram, em grande medida, marginalizados pela nova ordem social e econômica”.
Durante o início do período republicano, o trabalho de cuidado continuou a ser visto como uma extensão natural das responsabilidades femininas, o que refletia as normas sociais da época. Além disso, a ausência de legislação específica para regulamentar o trabalho doméstico fez com que as trabalhadoras desse setor ficassem desprovidas de direitos. Até a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, o trabalho doméstico sequer era considerado uma atividade digna de regulamentação legal.
A CLT, que representou um avanço na proteção dos trabalhadores brasileiros, excluiu as trabalhadoras domésticas de sua abrangência, perpetuando a ideia de que esse trabalho não merecia o mesmo reconhecimento e direitos concedidos a outros trabalhadores. Como explica a antropóloga Lilia Schwarcz (2019), “a exclusão das trabalhadoras domésticas da CLT refletia o preconceito de gênero e raça que estruturava o mercado de trabalho brasileiro, onde as mulheres negras continuavam sendo vistas como aptas apenas para o serviço doméstico e desprovidas de cidadania plena”. Essa exclusão legal formalizou, de certa forma, o abismo entre os direitos dos trabalhadores formais e o universo do trabalho de cuidado.
5.3 A Luta por Direitos: Da Ditadura Militar à Constituição de 1988
Nas décadas seguintes, as condições das trabalhadoras domésticas e de cuidado começaram a ser mais debatidas, especialmente durante o período da ditadura militar (1964-1985). A repressão política desse período coincidiu com uma série de transformações no mercado de trabalho, impulsionadas pela modernização e urbanização. Muitas mulheres começaram a ingressar no mercado de trabalho formal, mas o trabalho doméstico continuou sendo uma atividade precária e mal remunerada. O movimento feminista, que ganhou força durante os anos 1970, começou a chamar atenção para as questões de gênero e trabalho, especialmente no que diz respeito à dupla jornada das mulheres, que acumulavam o trabalho remunerado com o cuidado da casa e da família.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco na proteção dos direitos das mulheres trabalhadoras. Com a nova carta constitucional, o trabalho doméstico passou a ser reconhecido como uma atividade que deveria gozar de direitos trabalhistas básicos, como férias, 13º salário e limite de jornada. No entanto, esse reconhecimento foi limitado, e a equiparação total entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores regidos pela CLT só viria com a Emenda Constitucional nº 72 de 2013, conhecida como a PEC das Domésticas, e a Lei Complementar nº 150 de 2015, que regulamentou esses direitos. Embora esses avanços legislativos tenham sido significativos, eles não eliminaram completamente as disparidades entre o trabalho doméstico e outras formas de trabalho formal, especialmente no que diz respeito à aplicação prática desses direitos.
5.4 Gênero, Raça e Classe: A Feminização do Trabalho de Cuidado no Brasil Contemporâneo
A combinação de gênero, raça e classe continua a estruturar o trabalho de cuidado no Brasil contemporâneo. A feminização da pobreza, um conceito utilizado por autoras como Helena Hirata e Heleieth Saffioti, é central para a compreensão das desigualdades que permeiam o trabalho de cuidado. As mulheres, especialmente as mulheres negras, continuam a ser as principais responsáveis pelas atividades de cuidado, tanto no âmbito doméstico quanto institucional, e, em geral, recebem baixos salários, trabalham em condições precárias e muitas vezes sem formalização.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, 92% das trabalhadoras domésticas no Brasil eram mulheres, e, dentre elas, 63% eram negras. Esses números refletem a interseção das desigualdades de gênero e raça, demonstrando que o trabalho de cuidado, além de ser subvalorizado, está profundamente marcado por questões raciais. Segundo a historiadora Angela Davis (2016), "o trabalho de cuidado, ao longo da história, foi utilizado para manter a subordinação racial e de gênero, sendo a principal atividade designada às mulheres negras em sociedades pós-escravistas".
Mesmo com os avanços legislativos, a informalidade no trabalho de cuidado persiste como um desafio estrutural. A precariedade associada a esse tipo de trabalho reflete a continuidade de estigmas e preconceitos enraizados na história colonial do Brasil, onde o trabalho das mulheres negras sempre foi considerado inferior. A desvalorização desse trabalho não apenas contribui para a perpetuação da pobreza entre essas mulheres, mas também reforça a exclusão social e a marginalização de grupos racialmente subordinados.
A análise histórica da questão do trabalho de cuidado no Brasil revela como as desigualdades de gênero, raça e classe moldaram a economia e a sociedade do país, relegando o trabalho de cuidado a uma posição subalterna. As mulheres, especialmente as mulheres negras, foram historicamente empurradas para essas funções, perpetuando um ciclo de exploração e precariedade que ainda persiste. Embora a legislação trabalhista tenha avançado, os desafios práticos e estruturais permanecem. A história do trabalho de cuidado no Brasil, portanto, é uma história de resistência e luta por reconhecimento e dignidade.
Conclusão
O trabalho de cuidado é um pilar fundamental da sociedade contemporânea, mas permanece subvalorizado e invisibilizado, especialmente quando desempenhado por mulheres. O ordenamento jurídico brasileiro, embora tenha avançado com a PEC das Domésticas e outras reformas legislativas, ainda enfrenta desafios para garantir a plena proteção e valorização dessas trabalhadoras. As barreiras de gênero, raça e classe continuam a estruturar as desigualdades no campo do trabalho de cuidado, exigindo uma abordagem jurídica mais inclusiva e eficaz.
Por meio de uma análise detalhada das normas trabalhistas e processuais aplicáveis ao trabalho de cuidado, este TCC procurou demonstrar as limitações do sistema jurídico atual e apontar possíveis caminhos para a promoção de maior igualdade de gênero no mercado de trabalho. A superação dessas desigualdades requer não apenas mudanças legislativas, mas também um esforço contínuo de conscientização social e transformação cultural.
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