RESUMO
Este artigo aborda o papel das descriminalizações no processo de constitucionalização do Direito Penal brasileiro em um contexto de superlotação carcerária e de pleitos pela maximização deste ramo jurídico. O objetivo deste artigo também é avaliar os impactos sociais negativos do endurecimento da legislação e da existência de alguns tipos penais, além de demonstrar como a ausência de políticas públicas, a moralidade e a religião contribuem para a dificuldade de inserção de pautas descriminalizantes no Poder Legislativo. Ao fim, é possível constatar que a maximização do Direito Penal é contrária ao texto constitucional e prejudica a análise do impacto social dos tipos penais, e que as descriminalizações são importantes para adequar as leis penais aos preceitos garantistas e constitucionais, fazendo parte do processo de constitucionalização como forma de atualizar a legislação às demandas sociais expressas em análises epistemológicas de órgãos oficiais e de moldá-la aos direitos fundamentais da pessoa humana.
ABSTRACT
This article addresses the role of decriminalization in the process of constitutionalization of Brazilian Criminal Law in a context of prison overcrowding and demands for the maximization of this legal branch. The objective of this article is also to evaluate the negative social impacts of tightening legislation and the existence of some criminal types, in addition to demonstrating how the absence of public policies, morality and religion contribute to the difficulty of inserting decriminalizing guidelines in the Legislative Branch. In the end, it is possible to verify that the maximization of Criminal Law is contrary to the constitutional text and harms the analysis of the social impact of criminal types, and that decriminalizations are important to adapt criminal laws to guarantee and constitutional precepts, being part of the process of constitutionalization as a way of updating legislation to social demands expressed in epistemological analyzes of official bodies and molding it to the fundamental rights of the human person.
INTRODUÇÃO
A justificativa do Código Penal vigente neste ordenamento pátrio foi o combate à criminalidade. Oitenta e três anos depois o discurso se mantém, o que ocasiona um descompasso entre o Direito Penal brasileiro e a Constituição Federal.
A noção de penalização como castigo ao delito cometido pelo agente e como solução para os índices de criminalidade e violência impera no imaginário da sociedade, o que é reforçado cotidianamente pelos meios de comunicação, principalmente jornais televisivos e mídias sociais.
O clamor social pela maximização do Direito Penal reflete nas discussões entre os parlamentares, dificultando o andamento de pautas sensíveis no Legislativo, como as descriminalizações.
A recepção de pautas descriminalizantes importa, objetivamente, em redução do número de pessoas presas em um contexto de superlotação carcerária e na efetivação dos princípios penais; entretanto, para boa parte da população significa ausência de punibilidade necessária à manutenção da civilidade em sociedade.
Em razão da função do Direito Penal como último meio de solução de conflitos que ponham em risco bens jurídicos de grande relevância para os cidadãos, o pleito pelo aumento das penas e dos tipos penais importa em desvio da finalidade deste ramo e ofensa aos direitos constitucionais da pessoa humana, visto que a liberdade, direito fundamental, somente pode ser cerceada em último caso.
Tendo em vista este contexto, o objetivo geral desta pesquisa é discutir sobre a necessidade das descriminalizações no fenômeno de constitucionalização do Direito Penal, a partir da análise da bibliografia relacionada ao tema. A partir deste, podem ser citados os objetivos específicos, quais sejam a discussão teórica sobre a descriminalização como necessária à correta aplicação do Direito Penal e a análise sobre as dificuldades enfrentadas na recepção de pautas descriminalizantes pelo Poder Legislativo.
Desta forma, ao fim desta pesquisa caracterizada pela abordagem qualitativa, do tipo descritiva, será possível concluir sobre os impactos possíveis de descriminalizações no sistema prisional brasileiro e nos desafios presentes neste processo.
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL
Após a Segunda Grande Guerra, em um contexto mundial, e a ditadura militar, em um contexto nacional, a discussão sobre os direitos humanos foi se intensificando gradativamente, o que refletiu no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio, os direitos civis, sociais e políticos foram elencados e exemplificados exaustivamente do início ao fim do texto
constitucional, representando o resultado das discussões realizadas no período pós- ditadura, conhecido como redemocratização nacional.
O texto da Carta Magna, como maior dispositivo legal do ordenamento jurídico da nação, está influenciando as novas leis infraconstitucionais e a legislação recepcionada por ele, fenômeno nomeado de constitucionalização. Este fenômeno originou reformas legislativas, como no caso do Código Civil e do Código de Processo Civil, os quais abarcaram direitos fundamentais como o devido processo legal, por exemplo.
Este fenômeno, no Direito Penal, enfrenta um processo complicado e embaraçado pelo clamor social pela maximização das penas e dos tipos penais, mas foi iniciado na reforma da parte geral do Código Penal pela Lei nº 7.209, de 1984. No período de redemocratização a influência das teorias garantistas levou à parte geral deste codex os fundamentos e influências observadas na criação da Constituição Cidadã. Para Cezar Roberto Bitencourt,
A Lei n. 7.209/84, que reformulou toda a Parte Geral do Código de 1940, humanizou as sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir no Brasil o festejado sistema dias-multa. No entanto, embora tenhamos um dos melhores elencos de alternativas à pena privativa de liberdade, a falta de vontade política de nossos governantes, que não dotaram de infraestrutura nosso sistema penitenciário, tornou, praticamente, inviável a utilização da melhor política criminal – penas alternativas -, de há muito consagrada nos países europeus. (2016, p. 92)
Apesar disso, a percepção da sanção penal como castigo dificulta a visão humanitária das pessoas processadas e presas, e a confusão entre moral e fonte da lei dificulta a inserção de algumas pautas ao processo de constitucionalização, implicando na dificuldade de levar direitos fundamentais ao texto penal e de minorar o cerceamento da liberdade como sanção penal.
A urgência na constitucionalização do Direito Penal brasileiro está expressa em questões como a superlotação carcerária, a exposição de pessoas presas na mídia, o estigma da prisão na vida do indivíduo e no envelhecimento da legislação vigente. Em uma sociedade totalmente diferente daquela existente nos anos 40, novas demandas surgiram, as quais precisam ser absorvidas pelo Código Penal, entretanto, a ausência de reforma deste atulha o ordenamento jurídico de legislações infraconstitucionais que prejudicam a sistematização deste ramo.
Além disso, a discussão séria sobre a crise do sistema penal precisa de embasamento epistemológico, a fim de possibilitar uma discussão humanitária sobre
as prisões brasileiras e o afastamento de questões relacionadas ao senso comum e a moral, as quais se inclinam para o endurecimento da legislação.
Dados estatísticos demonstram prejuízos relacionados à criminalização de algumas condutas, além de refletirem a situação de crise vivida no sistema penitenciário brasileiro, portanto, devem ser base das discussões legislativas sobre o Direito Penal.
Esta análise amparada em dados e estudos, ou seja, a reflexão epistemológica das demandas sociais e seu reflexo imperativo na legislação, necessita ser exercitada em todos os âmbitos jurídicos, a fim de proporcionar uma adequação entre as proposições constitucionais de uma sociedade de bem-estar, a realidade brasileira e o texto penal.
Esta prática também visa promover a humanização do Direito Penal e o afastamento de clamores, sentimentos e costumes do debate sobre os motivos para privação de liberdade individual.
A constitucionalização perpassa o debate sobre Direitos Humanos e, consequentemente, sobre a abordagem humanitária do Direito. De acordo com Cézar Roberto Bitencourt,
O nosso apego aos Direito Humanos, unido ao presente caminhar em prol da efetividade material dos direitos e garantias individuais, em suma, alenta a nossa perspectiva de um futuro menos cruel para o Direito Penal. Esse caminho haverá de estar guiado pelo pluralismo jurídico, sem perder de vista a perspectiva de que a construção legítima do Direito e de seu sistema repressor depende, intrinsecamente, da paulatina consolidação do sistema democrático como reflexo de uma convivência social em condições materiais de igualdade. Somos os atuais agentes deste processo de transição, os artífices desse projeto de futuro. (2016, p. 94)
Desta forma, é possível inferir a urgência da constitucionalização do Direito Penal brasileiro, a fim de proporcionar sua união aos preceitos difundidos internacionalmente e valorados como Direitos Humanos.
ABORDAGEM TEÓRICA DAS DESCRIMINALIZAÇÕES
A função do Direito Penal e os princípios elencados pelas teorias garantistas fornecem aparato teórico para as propostas de descriminalizações, as quais funcionam como meio de ajustar a legislação existente aos efeitos político criminais da pena em uma sociedade em constante mutação e aos direitos fundamentais que devem reger as legislações de um Estado Democrático de Direito.
As teorias garantistas se fundam na limitação do jus puniendi a fim de proporcionar segurança jurídica aos cidadãos, evitando arbitrariedades por parte do Estado, elegendo princípios sobre os quais deve ser embasado a lei e a aplicação penal, como a ausência de crime sem lei anterior que o defina, o contraditório e a ampla defesa.
Para Ferrajoli
[...] os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade. Esse esquema, como se sabe, apresenta numerosas aporias lógicas e teóricas, que fazem dele um modelo ideal [...] (2002, p. 30)
Unido aos direitos fundamentais da pessoa humana, o garantismo penal funciona como garantidor de democracia e humanidade na disposição da liberdade do cidadão pelo Estado. O Direito Penal, como ramo jurídico que possui a prerrogativa de dispor sobre o direito fundamental a liberdade, necessita de contenção, a qual é dada pelos princípios garantistas.
Como resultado do fenômeno de constitucionalização, a elevação dos direitos fundamentais a cláusulas pétreas na Constituição Federal deve estar refletida no ordenamento jurídico infraconstitucional, a fim de garantir a democracia e o respeito aos direitos humanos consagrados internacionalmente, principalmente no âmbito jurídico penal. Nas palavras de Bitencourt,
O Direito Penal regula as relações dos indivíduos em sociedade e as relações destes com a mesma sociedade. Como meio de controle social altamente formalizado, exercido sob o monopólio do Estado, a persecutio criminis somente pode ser legitimamente desempenhada de acordo com normas preestabelecidas, legisladas de acordo com as regras de um sistema democrático. (2016, p. 37)
A tutela penal possui lugar nas sociedades do futuro, como expressa Roxin (2008, p.4), em razão do comportamento humano tipicamente desviante, de forma que a criminalização de ações e omissões são necessárias para a manutenção da paz social; entretanto, as criminalizações devem estar adstritas à necessidade.
A necessidade citada implica na análise do impacto social da penalização e na demonstração de que a coerção de determinada conduta é necessária para a manutenção da paz social, de forma a avaliar a essencialidade do cerceamento da liberdade do cidadão.
Por este motivo a tutela penal pelo Estado é limitada, e os preceitos doutrinários justificam a contração do Direito Penal em prol da democracia, como exposto a seguir.
Ultima ratio
O Direito Penal tem como função a proteção de bens jurídicos penais relevantes de condutas desviantes de outros cidadãos, quando outros ramos do Direito não conseguirem realizar a tutela de maneira eficiente, o que é chamado pela doutrina de ultima ratio. Em suma, é um ramo que deve ser utilizado apenas como última ferramenta, devendo ser dispensado em casos que possam ser resolvidos de outra maneira.
Este é um princípio do garantismo penal, que busca a limitação do poder punitivo do Estado, cerceando seu campo de atuação com base na necessidade e relevância, possibilitando a mitigação na disposição do direito fundamental da liberdade dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito.
Tornando o Direito Penal última possibilidade para solução de conflitos dentre os ramos do Direito, a sanção de privação da liberdade deve ser a menos aplicada e o número de tipos penais reduzidos, posteriormente à uma análise do caso concreto e da razoabilidade e relevância político social da aplicação da sanção penal como solução.
O princípio da ultima ratio é também a principal justificativa para descriminalizações. A possibilidade de tutela por outros meios, administrativos, jurídicos ou extrajudiciais, autoriza a descriminalização e torna a tutela penal violadora dos direitos humanos. Para Roxin,
Um segundo campo de descriminalizações é aberto pelo princípio da subsidiariedade. Este princípio fundamenta-se na idéia (sic) de que o direito penal, em virtude das suas acima expostas desvantagens, somente pode ser a ultima ratio da política social. Isso significa que só se deve cominar penas a comportamentos socialmente lesivos se a eliminação do distúrbio social não puder ser obtida através de meios extrapenais menos gravosos. (2008, p. 12 e 13)
Fragoso disserta no mesmo sentido, atribuindo à modernidade um Direito Penal que tutele apenas bens jurídicos relevantes, ou ainda uma política criminal de contração do sistema, implicando diretamente em descriminalizações.
Uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas antissociais que podem
ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais. (FRAGOSO, 1985, p.17, apud BATISTA, 2007, p. 36)
Desta forma, é possível inferir que o Direito Penal deve ser acionado apenas em situações de suma importância e essencialidade para que a paz social se mantenha ou retorne, ressalvada sempre a possibilidade de coerção por outros meios jurídicos, como civis e administrativos.
A proporcionalidade entre a importância do direito à liberdade em um Estado Democrático, os efeitos negativos da aplicação da pena de privação de liberdade e a relevância do bem jurídico afetado pela conduta do agente é o cálculo para a correta aplicação deste princípio do momento da criação da lei penal e da sua aplicação. Havendo desproporcionalidade, o tipo penal não deve ser criado ou aplicado, e quando houver sido tipificado, deve haver a abolitio criminis, ou seja, a abolição do tipo penal.
Prejuízo da sanção penal
O prejuízo da sanção penal é tratado pela doutrina na medida em que são discutidos os fins político criminais da privação de liberdade. Neste sentido, a reflexão de Claus Roxin, associada ao garantismo penal, é de indissociável relação entre a pena, os seus fins e os seus efeitos na sociedade, conforme expõe Bitencourt:
Com esse ponto de partida, Roxin pretende evidenciar que o Direito Penal não deve ser estruturado deixando de lado a análise dos efeitos que produz na sociedade sobre a qual opera, isto é, alheio à realização dos fins que o legitimam. Por isso, sustenta que quando as soluções alcançadas no caso concreto, por aplicação dos conceitos abstratos deduzidos da sistematização dogmática, sejam insatisfatórias, elas podem ser corrigidas de acordo com os princípios garantistas e as finalidades político-criminais do sistema penal. (2016, p. 123)
A atuação penal deve ser restrita à casos de grande relevância, em razão do prejuízo gerado pela sanção na vida do indivíduo. Primeiramente, cumpre destacar que a sanção penal, ressalvados os outros tipos de pena, priva o indivíduo de um direito fundamental importantíssimo, objeto de grandes revoluções, qual seja o direito à liberdade.
Em segundo lugar, o estigma gerado pela prisão cerceia as oportunidades do indivíduo fora da prisão, prejudicando a obtenção de postos de trabalho, o acesso a moradia e a sua inserção na comunidade, por exemplo. A necessidade de apresentação de certidões de antecedentes criminais em entrevistas de emprego e a
publicidade dada às prisões no bairro e na cidade do agente, proporcionam dificuldades para o indivíduo, inviabilizando a função associada à pena de prisão na teoria: a ressocialização.
Em tese, a prisão possui o objetivo de reeducar o agente para que este retorne ao convívio em sociedade, com compressão dos seus direitos e deveres e sem a intenção de voltar a delinquir. Entretanto, a ausência de garantia de direitos dentro e fora da cela não possibilitam a reeducação para a cidadania, e sim uma reeducação para a sobrevivência em uma sociedade capitalista sem amparo estatal, tornando utópica a ideia de ressocialização.
Por fim, a convivência com agentes de tipos penais mais gravosos somadas à ausência de oportunidades fora da cela proporcionam o que é conhecido como “escola do crime”, ou seja, após o contato com outras pessoas inseridas em contextos mais violentos e de crimes mais graves o agente possui a oportunidade de fazer parte de organizações criminosas ou adquire o “know how” para a prática de outros tipos penais.
Destarte, é possível destacar que a aplicação de uma sanção e os prejuízos dela para a vida do indivíduo representam a justificativa para o uso do Direito Penal como ultima ratio, a fim de cumprir os princípios do garantismo penal, ou seja, proporcionar aos indivíduos segurança jurídica e ausência de arbitrariedade do jus puniendi.
A abolição de tipos penais menos gravosos ou a aplicação de sanções alternativas à prisão reduzem estes prejuízos, visto que a privação da liberdade será utilizada em casos de real relevância, e agentes de condutas pouco relevantes não sofrerão com o estigma da prisão e não terão contato com agentes de tipos penais mais graves.
Deturpação da função do Direito Penal
Além disso, o Direito Penal possui como função a tutela de bens jurídicos relevantes de ações que sejam capazes de infringir a paz social, o que não pode ser confundido com a tutela de bens moral, política ou religiosamente relevantes.
Esta questão está associada também ao clamor social pela maximização do Direito Penal, pois existe uma deturpação da função deste ramo. O imaginário da sociedade associa a este a proteção aos “bons costumes”, o que dificulta a inserção
de pautas descriminalizantes no Poder Legislativo, como nos casos da descriminalização do aborto e do porte de maconha para consumo pessoal. Leciona Claus Roxin que
[...] não é permitido deduzir proibições de direito penal dos princípios de uma certa ética, pois, em primeiro lugar, nem todo comportamento eticamente reprovável perturba a convivência entre os homens e, em segundo lugar, muitos princípios éticos são questão de crença e não podem ser impostos ao indivíduo. Por motivos similares não é permitido querer impor premissas ideológicas ou religiosas com a ajuda do direito penal. (2008, p.34)
Associada a este aspecto, cumpre destacar a ausência de necessidade de penalização de condutas autolesivas, quais sejam aquelas em que o agente realiza ações que prejudiquem a si mesmo, como no caso do suicídio. Tendo o Direito Penal como finalidade a proteção da paz social e a tutela de bens jurídicos relevantes, a tutela de condutas autolesivas representa um paternalismo inconstitucional irrelevante, visto que todos os cidadãos possuem autodeterminação para a prática de ações que apenas os afetem pessoalmente, as quais em nada interessam ao Estado.
Nas palavras de Roxin,
Primeiramente, pode ocorrer uma eliminação definitiva de dispositivos penais que não sejam necessários para a manutenção da paz social. Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religião ou a political correctedness, ou que levem a não mais que uma autocolocação em perigo, não devem ser punidos num estado social de direito. Afinal, o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir as condições de coexistência social. (2008, p. 12 e 13)
Desta forma, é possível perceber que o Código Penal vigente tutela condutas que não interessam ao Direito Penal nos limites da sua função social, abarcando condutas autolesivas e moralmente condenadas, as quais não podem ser parte de uma legislação constitucionalizada e garantista.
Cifra oculta
A prática reiterada de condutas tipificadas penalmente, na maioria das vezes sem o conhecimento dela pelo Estado, e, geralmente, com a absorção das consequências pelo próprio indivíduo é denominada pela doutrina de cifra oculta. Esta representa a ausência de relevância da penalização, na medida em que ela é ineficiente para coibição da conduta na sociedade.
O aspecto subjetivo do tipo penal existe para a inibição das condutas descritas objetivamente e para a resolução para o conflito gerado quando algum indivíduo fuja
à inibição e pratique a referida ação ou omissão. Quando o tipo penal não possua mais o efeito de inibir a conduta pela prática reiterada por grande número de pessoas e sua consequente normalização na sociedade, esta não interessa mais ao Direito Penal em razão da ausência de relevância e conflito, a exemplo do que ocorreu com o crime de adultério, descriminalizado pela Lei nº 11.106/2005.
Para Azevedo, o Direito Penal, “a menos que se converta em instrumento ideológico destinado a dissimular ou falsear a realidade, precisa manter-se rente a vida, recebendo seu influxo e sobre ela atuando, atenta a configuração da situação humana global a que se destina” (AZEVEDO, p.60, 1989, apud, BATISTA, p. 122). Ou seja, ignorar a ausência de efetividade na tutela penal no seio social e a normalização da conduta descrita significa a dissimulação da realidade, a violação dos princípios garantistas, da função do Direito Penal e dos preceitos da Carta Magna.
Superlotação carcerária
O sistema penitenciário brasileiro enfrenta uma crise de superlotação e de ausência de condições dignas para os pacientes, tendo sido, por este motivo, considerado um estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, em 09 de setembro de 2015.
O estado de coisas inconstitucional foi um termo cunhado para descrever o sistema carcerário brasileiro como ambiente de ampla violação aos direitos fundamentais das pessoas presas, devido ao modo de aplicação da pena e da estrutura das prisões.
Esta definição representa um marco sobre a análise do sistema penitenciário brasileiro à luz dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente e, consequentemente, da Constituição Federal, a qual os recepciona exaustivamente.
O Ministro Marco Aurélio de Mello, em seu voto à referida ADPF, da qual foi relator, define a função desta ação e destaca sua importância, nos seguintes termos:
O pedido é voltado a obter do Supremo o reconhecimento de o sistema prisional brasileiro caracterizar-se como o denominado “estado de coisas inconstitucional” ante a ocorrência de violação massiva de direitos fundamentais dos presos, resultante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, considerado o quadro de superlotação carcerária e das condições degradantes das prisões do país. O requerente pede que o Tribunal determine a esses Poderes a adoção de
providências, de conteúdo e natureza diversos, para afastar lesões de preceitos fundamentais.
[...]
Esta arguição envolve a problemática do dever de o Poder Público realizar melhorias em presídios ou construir novos com a finalidade de reduzir o déficit de vagas prisionais. Vai além: versa a interpretação e a aplicação das leis penais e processuais de modo a minimizar a crise carcerária, implantar a forma eficiente de utilização dos recursos orçamentários que compõem o Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN e o dever de elaboração, pela União, estados e Distrito Federal, de planos de ação voltados a racionalizar o sistema prisional e acabar com a violação de direitos fundamentais dos presos sujeitos às condições de superlotação carcerária, acomodações insalubres e falta de acesso a direitos básicos, como saúde, educação, alimentação saudável, trabalho, assistência jurídica, indispensáveis a uma vida minimamente digna e segura.
ADPF 347 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
A insalubridade do sistema carcerário é um aspecto que envolve a superlotação, ou seja, a ausência de instituições prisionais suficientes para a quantidade de pessoas presas no país. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o Brasil possuía em dezembro de 2023 uma população prisional de 644.316 (sessenta e quatro mil trezentas e dezesseis) pessoas e um déficit de vagas de 156.281 (cento e cinquenta e seis mil duzentas e oitenta e uma) vagas.
Da análise destes dados é possível observar a ausência de capacidade do Estado de manter esta população encarcerada, o que implica na necessidade de diminuição do aprisionamento, o que pode ser obtido com a revisão dos tipos penais e com a descriminalização.
Destaca-se que a ideia de que o endurecimento da legislação diminui a criminalidade é uma falácia que pode ser comprovada de maneira simples: a legislação penal brasileira não enfrentou minimizações nas últimas décadas, entretanto, a população prisional nos anos 2000 era de 232.755 (duzentas e trinta e duas mil setecentos e cinquenta e cinco) pessoas, ou seja, uma diferença de 411.561 (quatrocentas e onze mil quinhentas e sessenta e um) em 24 anos.
Bittencourt destaca que o caminho para solucionar a criminalidade experimentada pela sociedade brasileira perpassa a atuação efetiva do Estado por meio de políticas públicas, nos seguintes termos:
Com efeito, a escassez de políticas públicas que sirvam de suporte para a progressiva diminuição da repressão penal, unida à ineficácia do sistema penal, produzem o incremento da violência e, em consequência, o incremento da demanda social em prol da maximização do Direito Penal. (2016, p. 92)
A ausência de posicionamentos governamentais sobre a relação de causalidade entre o aumento do número de crimes cometidos no país e a ausência de políticas que forneçam oportunidades aos grupos mais vulneráveis fornece aparato para o apelo social por um Direito Penal extremo.
As demandas da sociedade por postos de emprego, moradia e alimentação, por exemplo, não são pautas que geralmente se unem às discussões sobre o sistema penal brasileiro, mas possuem uma relação intrínseca em um país com 12,7 milhões de pessoas na extrema pobreza, segundo dados do IBGE, em 2022.
O calor pela maximização do Direito Penal não se mantém apenas no seio da sociedade e não se exprime apenas como demanda do povo, chegando ao Poder Legislativo e refletindo na legislação penal brasileira. De acordo com Bittencourt,
Essa foi a experiência vivida no Brasil durante alguns anos da década de 1990, pautada por uma política criminal do terror, característica do Direito Penal simbólico, patrocinada pelo liberal Congresso Nacional, sob o império da democrática Constituição de 1988, com a criação de crimes hediondos (Lei n. 8.072/90), criminalidade organizada (Lei n. 9.034/95) e crimes de especial gravidade. Essa tendência foi, sem embargo, arrefecida quando veio a lume a Lei n. 9.099/95, que disciplinou os Juizados Especiais Criminais, recepcionando a transação penal, destacando a composição cível, com efeitos penais, além de instituir a suspensão condicional do processo. Posteriormente, a Lei n. 9.714/98 ampliou a aplicação das denominadas penas alternativas para abranger crimes, praticados sem violência, cuja pena de prisão aplicada não seja superior a quatro anos. Desde então vivemos em uma permanente tensão entre avanços e retrocessos em torno da função que deve desempenhar o Direito Penal na sociedade brasileira, especialmente porque o legislador penal nem sempre tem demonstrado respeito aos princípios constitucionais que impõem limites para o exercício do ius puniendis estatal. Exemplo significativo desses retrocessos autoritários encontra-se na Lei n. 10.792/2003, que criou o regime disciplinar diferenciado, cujas sanções não se destinam a fatos, mas a determinadas espécies de autores, impondo isolamento celular de até um ano, não em decorrência da prática de determinado crime, mas porque, na avaliação subjetiva de determinada instância de controle, representam "alto risco" social ou carcerário, ou então porque há "suspeitas" de participação em quadrilha ou bando, prescrição capaz de fazer inveja ao proscrito nacional-socialismo alemão das décadas de 30 e 40 do século passado. (2016, p. 92 e 93)
O endurecimento da legislação e a ausência de políticas públicas estatais promovem campo fértil para o pleito pela maximização do Direito Penal, o que amplia a demanda por prisões e mais tipificações penais. Em razão de ser um pleito absorvido pelos legisladores, este ramo do Direito ainda absorve tipos penais que não devem ser de sua competência e se torna um pouco mais rígido à cada alteração.
Este contexto leva à mais pessoas presas, por um período maior de tempo, o que implica também na ausência de pessoal suficiente para a defesa, processamento e julgamento justo do contingente prisional e no déficit de vagas no sistema carcerário.
Como um ciclo de ineficiência, o contexto acima implica em prejuízo à vida dos cidadãos aprisionados, à um aumento no índice de criminalidade devido à ausência de oportunidades após a prisão e ao que chamamos anteriormente de “escola do crime”, o que promove terreno fértil para a manutenção ou aumento da demanda pelo endurecimento da legislação penal.