Conflitos por terras no Brasil e sias implicações na ordem social: Uma análise jurídica e sociológica

Resumo:


  • Os conflitos por terras no Brasil refletem uma complexa interação de fatores históricos, sociais, econômicos e políticos.

  • A aplicação da função social da propriedade enfrenta desafios devido à influência do agronegócio e à falta de políticas públicas eficazes.

  • A concentração fundiária e a resistência à reforma agrária perpetuam a marginalização das comunidades tradicionais e a violência no campo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

Este artigo examina os conflitos por terras no Brasil e suas implicações na ordem social, com ênfase na função social da propriedade prevista na Constituição Federal de 1988. A pesquisa analisa a eficácia das legislações e políticas públicas na resolução de disputas fundiárias, considerando o impacto da globalização e do agronegócio. O estudo fundamenta-se em doutrinas jurídicas e sociológicas de autores como Miguel Reale e Boaventura de Sousa Santos, além de decisões jurídicas relevantes. Conclui-se que a aplicação insuficiente dos princípios constitucionais tem perpetuado a marginalização de comunidades tradicionais e o agravamento da violência no campo.

Palavras-chave: Terras, Decisões jurídicas, Justiça Social, violência no campo.


INTRODUÇÃO

Os conflitos por terras no Brasil têm raízes históricas profundas, refletindo um problema estrutural de desigualdade e concentração fundiária que remonta ao período colonial. Apesar dos avanços proporcionados pela Constituição Federal de 1988, que incorporou o princípio da função social da propriedade, esses conflitos continuam a comprometer a ordem social, especialmente nas áreas rurais, onde a disputa entre grandes proprietários de terra e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, é mais intensa.

A Constituição de 1988, ao consagrar a função social da propriedade no Art. 170, estabeleceu que o uso da terra deve atender não apenas ao interesse particular, mas também ao bem comum. Entretanto, a aplicação prática desse princípio tem sido limitada, especialmente pela influência do agronegócio e pela insuficiência das políticas públicas de reforma agrária e regularização fundiária. Este artigo pretende analisar como esses conflitos por terras afetam a ordem social e a coesão nacional, e como a falta de uma implementação eficaz da função social da propriedade perpetua a marginalização das populações tradicionais e a violência no campo.


SOCIEDADE E ORDEM

A função social da propriedade significa que a terra deve ser tratada como um recurso que deve atender ao interesse da sociedade. Em uma democracia, é responsabilidade do proprietário utilizar os recursos de forma a contribuir para o bem coletivo. Dessa forma, a terra deve gerar riqueza, garantir segurança alimentar e ajudar a reduzir as desigualdades sociais. WEBER argumenta sobre essa questão:

Quando a dominação econômica se baseia no controle de bens materiais, especialmente de terras, ela torna-se uma forma de poder estrutural sobre outros membros da sociedade. A concentração de recursos nas mãos de poucos acaba por gerar desigualdades profundas, moldando a organização social e influenciando as relações de poder entre os grupos, onde os detentores de propriedade tendem a impor suas condições sobre os desprovidos de meios econômicos." (WEBER, 1999, p. 98).

Entretanto, a aplicação desse princípio enfrenta vários desafios, especialmente devido à resistência do agronegócio, que controla grandes áreas de terra e exerce forte influência política. A expansão agrícola, impulsionada pela globalização e pela crescente demanda por produtos, intensifica os conflitos fundiários e desloca comunidades tradicionais, aumentando a violência no campo. Por isso, é fundamental entender a função social da propriedade e sua relação com a ordem social para analisar os conflitos envolvendo a questão fundiária no Brasil.

A Ordem Social e a Função Social da Propriedade

A Constituição de 1988 marca uma ruptura com as estruturas arcaicas de concentração fundiária, ao afirmar que a propriedade deve atender à sua função social. O Art. 170 da Constituição define que a ordem econômica tem por objetivo "assegurar a todos existências dignas, conforme os ditames da justiça social", vinculando a utilização da propriedade ao benefício da coletividade (BRASIL, 1988). Isso significa que o direito de propriedade, embora garantido, não é absoluto, sendo condicionado ao cumprimento de sua função social.

A função social da propriedade é um conceito central na teoria de Miguel Reale, que defende que a propriedade deve ser vista como um direito-relativo, isto é, condicionado ao interesse social. Reale (2010) argumenta que, em uma sociedade democrática, a função social deve ser compreendida como a obrigação de utilizar os recursos (inclusive a terra) de maneira que beneficiem o bem comum.

A função social da propriedade impõe a ideia de que o direito de propriedade não é absoluto, mas sim condicionado pela sua utilidade social, ou seja, pelo seu uso em prol do bem comum, que inclui o desenvolvimento econômico, a justiça social e a preservação ambiental" (REALE, 2010, p. 122).

A terra, portanto, deve gerar riqueza para a coletividade, garantir a segurança alimentar, promover o desenvolvimento sustentável e reduzir as desigualdades sociais.

Entretanto, a aplicação desse princípio no Brasil tem sido limitada, em grande parte devido à resistência do agronegócio, um setor que concentra grandes extensões de terra e exerce forte influência política. A expansão das fronteiras agrícolas, impulsionada pela globalização e pelo aumento da demanda por commodities, exacerbou os conflitos fundiários, deslocando comunidades tradicionais e contribuindo para a violência no campo (PORTO-GONÇALVES, 2013).

O Impacto da Globalização e do Agronegócio nos Conflitos por Terras

A globalização econômica trouxe uma série de desafios para a aplicação da função social da propriedade. À medida que a demanda por produtos agrícolas aumenta globalmente, há uma pressão crescente sobre as terras brasileiras, muitas das quais pertencem a comunidades indígenas e quilombolas. Essas comunidades, que já enfrentam históricos de marginalização, veem seus territórios invadidos e seus direitos violados em nome da expansão agrícola.

O agronegócio, que representa uma parte significativa do PIB brasileiro, é frequentemente apontado como um dos principais responsáveis pela concentração de terras. Porto-Gonçalves (2013) destaca:

A expansão do agronegócio aprofunda os conflitos fundiários ao transformar grandes áreas em monoculturas, desconsiderando os territórios tradicionais e, muitas vezes, gerando a expulsão de comunidades indígenas e camponesas. Essa lógica produtiva é marcada pela concentração de terras e pela degradação ambiental" (PORTO-GONÇALVES, 2013, p. 85).

Além disso, o agronegócio, ao priorizar o lucro em detrimento do desenvolvimento sustentável, contribui para a degradação ambiental, o que agrava ainda mais a situação das comunidades rurais e indígenas.

Boaventura de Sousa Santos (2007) ressalta que o fenômeno da globalização tem contribuído para a "desterritorialização" de populações tradicionais, em que a terra deixa de ser um bem comunitário e passa a ser tratada como uma mercadoria globalizada. Esse processo não apenas gera exclusão social, mas também promove a violência, pois os conflitos sobre a posse da terra aumentam conforme as áreas disponíveis para a expansão agrícola se tornam escassas.

Direitos das Comunidades Indígenas e Quilombolas

A Constituição de 1988 reconheceu pela primeira vez os direitos territoriais das comunidades indígenas e quilombolas, estabelecendo que essas comunidades têm direito à posse de suas terras tradicionalmente ocupadas (BRASIL, 1988, art. 231). No entanto, apesar do reconhecimento constitucional, a demarcação e a regularização dessas terras têm sido processos extremamente lentos e

politicamente conturbados.

A falta de vontade política para implementar as disposições constitucionais relativas às terras indígenas e quilombolas tem perpetuado a marginalização dessas comunidades. A pressão exercida pelo agronegócio sobre áreas tradicionalmente ocupadas, associada à falta de proteção efetiva por parte do Estado, resulta em um aumento da violência no campo. As invasões de terras, o desmatamento ilegal e o uso intensivo de agrotóxicos nas áreas próximas às comunidades tradicionais são algumas das formas mais comuns de violação dos direitos dessas populações é o que discorre Vianna:

A falta de vontade política para a implementação das políticas públicas que garantam os direitos territoriais de comunidades indígenas e quilombolas tem levado à marginalização dessas populações, enquanto o agronegócio, pressionando por áreas de cultivo, frequentemente ignora as disposições constitucionais e contribui para um cenário de violência no campo, com invasões de terras, desmatamento ilegal e a contaminação por agrotóxicos" (VIANNA, 2013, p. 112).

José Afonso da Silva (2020) enfatiza que a ordem social, conforme delineada na Constituição de 1988, visa garantir o bem-estar e a justiça social a todos os cidadãos, especialmente aqueles em situação de vulnerabilidade. O autor destaca que a proteção dos direitos territoriais dessas comunidades é um elemento essencial para a concretização da ordem social no (Brasil, 1988).

Seguridade Social e Inclusão das Comunidades Vulneráveis

A ordem social constitucional também está intrinsecamente ligada à seguridade social, que compreende um conjunto integrado de ações voltadas para garantir direitos relativos à saúde, previdência e assistência social (BRASIL, 1988, art. 194). A inclusão das comunidades vulneráveis, como indígenas e quilombolas, nos programas de seguridade social é fundamental para assegurar sua dignidade e bem-estar.

A Emenda Constitucional n.º 114/2021, que estabelece uma renda básica para brasileiros em situação de vulnerabilidade, é um passo importante para garantir a subsistência dessas populações, mas a efetiva implementação desse direito ainda enfrenta desafios.

A Emenda Constitucional n.º 114/2021, ao estabelecer uma renda básica para os cidadãos em situação de vulnerabilidade, representa uma tentativa de garantir a dignidade e a subsistência das populações mais desfavorecidas. No entanto, a implementação deste direito enfrenta obstáculos significativos, como a carência de infraestrutura adequada nas áreas rurais, que impede o acesso efetivo a esses benefícios, e a ausência de uma política pública que articule a proteção territorial com os direitos sociais, tornando difícil promover uma justiça social verdadeiramente abrangente no Brasil" (SACHS, 2008, p. 135).

A falta de infraestrutura em muitas dessas áreas rurais dificulta o acesso a esses benefícios, e a ausência de uma política pública coordenada que integre a proteção territorial e os direitos sociais das comunidades é um dos principais entraves para a promoção da justiça social no Brasil.


DISCUSSÃO DO TEMA

A análise dos conflitos por terras no Brasil deve considerar a complexidade dos fatores envolvidos, que incluem questões sociais, econômicas e políticas. A Constituição de 1988 é clara ao estabelecer que a propriedade deve cumprir sua função social, mas o cumprimento desse princípio enfrenta obstáculos significativos, especialmente em regiões onde o agronegócio tem grande influência. A função social da propriedade, quando aplicada corretamente, poderia promover uma redistribuição mais equitativa das terras e reduzir as tensões sociais, mas a sua implementação tem sido ineficaz (VIANNA, 2013).

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De acordo com Lenza (2024), o direito constitucional é um ramo fundamental do direito que se ocupa da organização do Estado, da definição dos direitos e garantias individuais e coletivos, e da estruturação das relações entre os Poderes da República. A globalização e o crescimento do agronegócio intensificaram a demanda por terras, exacerbando os conflitos fundiários e a violência no campo. Essa dinâmica tem marginalizado ainda mais as comunidades tradicionais, que são frequentemente expulsas de suas terras ou têm seus direitos territoriais violados. As políticas públicas voltadas para a regularização fundiária e a proteção dessas comunidades têm sido insuficientes, e as legislações existentes são frequentemente desrespeitadas ou mal aplicadas (SANTOS, 2007).

Muitas vezes, os interesses políticos acabam por encerrar, modificar ou reestruturar as etapas citadas anteriormente, como o período de eleições e de mudança governamental. O sucesso dos resultados de uma política pública é legitimado embate dos diversos agentes que a constroem em conjunto. Essas políticas podem abranger a sociedade como um todo ou grupos e setores específicos, de ordem social ou econômica. Portanto, variam de acordo com as necessidades identificadas, podendo ser do campo da saúde, educação, distribuição territorial, tecnologia, economia, renda, infraestrutura, entre outras (SACHS, 2008).

A questão da propriedade e sua função social é central para a compreensão dos conflitos fundiários no Brasil. Segundo Marx (1867), "a propriedade privada é, portanto, o produto do trabalho, a forma na qual o trabalho se torna um valor" (p. 123). Essa visão crítica sobre a propriedade destaca a relação intrínseca entre trabalho e terra, enfatizando que a posse da terra não é um fim em si, mas sim um meio para garantir a dignidade e o bem-estar da coletividade. o direito de intervir nas políticas públicas por meio da criação de mecanismos de controle social. Controle social é uma forma de compartilhamento de poder de decisão entre Estado e sociedade sobre as políticas (TENÓRIO, 2024).

Para Mamede (2024), "o Estado deve atuar de forma a garantir não apenas a proteção dos direitos individuais, mas também a promoção da justiça social, respeitando as especificidades das comunidades que habitam o território" (p. xx). Isso implica na necessidade de políticas públicas que reconheçam e respeitem as estruturas sociais e culturais das comunidades, promovendo um diálogo que permita a construção de acordos e a resolução pacífica de conflitos.

Além disso, a função social da propriedade está intrinsecamente ligada à sustentabilidade ambiental, outro aspecto fundamental garantido pela Constituição de 1988. No entanto, as práticas predatórias do agronegócio, como o desmatamento e o uso intensivo de agrotóxicos, comprometem o meio ambiente e afetam diretamente as comunidades que dependem da terra para sua subsistência. Nesse sentido, Porto-Gonçalves (2013) ressalta que a expansão do agronegócio não apenas intensifica os conflitos fundiários, mas também contribui para a degradação ambiental, agravando os problemas sociais e econômicos.


CONCLUSÃO

Os conflitos por terras no Brasil refletem uma complexa interação de fatores históricos, sociais, econômicos e políticos. A Constituição de 1988, ao estabelecer a função social da propriedade, buscou promover a justiça social e reduzir as desigualdades, mas sua aplicação enfrenta sérios desafios. A concentração fundiária, o crescimento do agronegócio e a falta de vontade política para implementar políticas públicas de reforma agrária e regularização fundiária perpetuam a marginalização das comunidades tradicionais e a violência no campo.

A solução para esses conflitos passa, necessariamente, pela aplicação eficaz da função social da propriedade e pelo fortalecimento das políticas públicas de proteção às comunidades indígenas e quilombolas. Além disso, é necessário que o Estado adote uma postura mais firme em relação ao agronegócio, garantindo que suas práticas respeitem os direitos territoriais dessas comunidades e a sustentabilidade ambiental. Somente assim será possível promover uma verdadeira ordem social, baseada na justiça e na equidade.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado, 1988.

Garamond, 2008.

LENZA, Pedro. Direito constitucional. (Coleção esquematizado). Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024. E-book. ISBN 9788553621958. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553621958/. Acesso em: 20 set. 2024.

MAMEDE, Gladston. Direito Societário (Direito Empresarial Brasileiro). Rio de Janeiro: Atlas, 2022. E-book. ISBN 9786559772582. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559772582/. Acesso em: 19 set. 2024.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Danilo Pereira. Geografia dos conflitos por terra no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. rev. e reestruturada. São Paulo: Saraiva, 2010.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2007.

TENÓRIO, Fernando G. Controle Social de Territórios: Teoria e Prática – Volume 4. Ijuí: Editora Unijuí, 2018. E-book. ISBN 9788541902632. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788541902632/. Acesso em: 18 set. 2024.

VIANNA, Luiz Werneck. A luta pela terra no Brasil: conflitos e resistências. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora UnB, Saraiva. São Paulo, 1999.

Sobre as autoras
Mirian Mota da Silva Melo

Aluna do turno Noturno do Curso de Direito, FACSUR.︎

Elenise Éven Barros Chagas

Professora/ orientadora

Andressa Rafaele Vale Nogueira

Aluna do 4° período do turno Noturno do Curso de Direito, FACSUR.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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