Primeiros comentários sobre o novo tipo de Feminicídio

10/10/2024 às 18:14
Leia nesta página:

Foi recém sancionada a Lei nº 14994 de 09/10/2024, a qual, oferta tratamento particular aos atos de violência cometidos contra a mulher, entre outros pontos, alterando a disciplina do crime de Feminicídio.

Nesse aspecto, o Código Penal passa a contar com tipo específico no artigo 121-A, o qual assim disciplina a matéria no feminicídio:

Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino:

Pena - reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos.

§ 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

§ 2º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime é praticado:

I - durante a gestação, nos 3 (três) meses posteriores ao parto ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade;

II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental;

III - na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima;

IV - em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha);

V - nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 deste Código.

Coautoria

§ 3º Comunicam-se ao coautor ou partícipe as circunstâncias pessoais elementares do crime previstas no § 1º deste artigo."

A questão essencial para compreender o tipo de feminicídio, superando falso debate em torno da constitucionalidade do dispositivo, passa pela compreensão de que não é crime de feminicídio matar mulher, pois, assim o fosse, efetivamente haveria notória inconstitucionalidade, por estabelecer discriminação entre a punição ofertada pela morte de homem, em relação à ofertada pela morte de mulher.

A solução seria inviável, pois estaria sendo dada valoração diversa ao mesmo bem jurídico vida humana, em razão do sexo da vítima.

Além de claramente ferir a isonomia, criando inaceitável discriminação de gênero, a fórmula seria absolutamente perigosa, pois, permitiria, estendendo o raciocínio, estabelecer as mais diversas discriminações incidentes sobre o mesmo bem jurídico, assim, aumentar a pena no crime contra pessoas de determinada raça, etnia e reduzir em relação a outra.

Ad terrorem, dentro de uma lógica de preconceitos, ainda presentes nas estruturas punitivas, se aceito que a morte de mulher tivesse pena mais elevada que a de homem, nada obstaculizaria, por exemplo, alguém sustentar dever a pena nos crimes contra pessoas brancas ser maior ou que, os crimes contra nacionais devem ser mais graves que os contra estrangeiros.

A questão é outra, o crime não é de femicídio (matar mulher), mas o de feminicídio (matar mulher por menosprezo ao sexo feminino), sendo essa terminologia o resultado de intensos estudos, debates e avanços na matéria, para compreender que determinadas ações não se fazem aleatoriamente, mas, escolhem a vítima em razão do menosprezo existente por seu sexo feminino.

Nessa toada, matar mulher deve recair na regra geral do caput do artigo 121, porém, se o ato é em função da condição de ser a vítima do sexo feminino, ocorre a figura do feminicídio.

Sempre há dificuldades hermenêuticas na interpretação de conduta concreta que dá morte a uma mulher, se diante da figura geral do homicídio, tendo como vítima alguém do gênero feminino ou feminicídio, por ser a ação canalizada para a vítima em razão de ser do sexo feminino.

Com propriedade o novo artigo 121-A oferta linhas interpretativas importantes no seu parágrafo primeiro, deixando claro que para ser feminicídio deve, no aspecto subjetivo do agente, ter sido a conduta praticada por menosprezo ou discriminação à condição da mulher ou ser o ato praticado no contexto de violência doméstica ou familiar.

Tendo como base interpretativa a Lei Maria da Penha, a violência doméstica ou familiar é aquela que acontece dentro do âmbito domiciliar, praticada por membro da família ou pessoa que viva com a vítima.

Já a ação havida por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, envolve análise de aspecto subjetivo do agente, pois, há que se observar que, sob o ponto de vista de sua vontade, a escolha da vítima não é casual, mas a decorrência de visão que estabelece superioridade das pessoas do sexo masculino, em relação às do sexo feminino ou de um olhar negativo para a pessoa, pela simples pertenecência ao sexo feminino.

Ambos os critérios que deslocam a matéria do homicídio a ser punido, com base na disciplina do caput do artigo 121 para o feminicídio do artigo 121-A não são presumidos.

Em nenhuma hipótese, ao se tratar de tipo penal criminalizador, admitem-se presunções para fins de ajustamento da conduta, máxime por passar o feminicídio a ter pena entre 20 e 40 anos, enquanto o homicídio segue com pena entre 6 e 20 anos e mesmo na figura qualificada, entre 12 e 30 anos, ou seja, está se tratando de crime mais grave, de sorte que qualquer presunção seria in malam partem, portanto odiosa, sob o ponto de vista do Direito Penal Humanitário, vedada na legislação de todos os países do ocidente.

Um ponto, seguramente, pode conduzir ao debate sob o ponto de vista da pena abstratamente prevista, de 20 a 40 anos, qual seja, o atendimento ao princípio da proporcionalidade, em comparação com a figura do homicídio qualificado.

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Sem ainda um juízo de valor definitivo sobre a matéria, mas, realmente afigura-se plausível a discussão da temática, pois, estaria havendo desproporção com bases racionais ainda não claras, pois, várias das figuras qualificadas do homicídio o são por circunstâncias motivacionais, como o motivo torpe e o motivo vil, o que, aparentemente estaria em proporcionalidade com a motivação de sexo.

Igualmente, a ação no âmbito doméstico familiar parece apresentar proporcionalidade com a qualificação decorrente da surpresa ou do meio que impossibilita a defesa da vítima.

Assim em um primeiro momento, pareceria que a mais adequada proporcionalidade orientaria para a necessidade de ser a pena do feminicídio parametrizada com pena do homicídio qualificado, permitindo que as majorantes do§2º do artigo 121-A, possam conduzir a pena a um patamar superior, dentro de bases racionais.

Sobre as majorantes é relevante dizer que são fundamentalmente de ordem objetiva, destacando, com isso, a natureza implícita do tipo de feminicídio que tem sua ação a partir de traço de menosprezo com a condição da mulher.

Nesse sentido as qualificadoras dos incisos I, II, III e IV são absolutamente adaptadas às características da matéria disciplinada pelo tipo do artigo 121-A, pois, a prática do delito nas circunstâncias de gestação da mulher e meses posteriores ao parto, condição de mãe de menor, ser a própria vítima menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de doenças vulnerabilizantes degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental, justificam tratamento mais grave.

Igualmente, a prática feminicida produz efeitos mais gravosos, tornando-se mais reprovável, quando ocorre na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima, denotando maior desprezo pelo direito quando ocorre em em descumprimento das medidas protetivas de urgência.

Apenas, em relação às majorantes do inciso V do novo artigo 121-A do Código Penal, é que algumas considerações críticas podem ser realizadas, pois ao remeterem a hipóteses de qualificação do homicídio, podem gerar, no que tange à traição, a emboscada, ou à dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, questionamento sobre a ocorrência de bis in idem, quando o feminicídio for praticado no contexto de violência doméstica ou familiar.

Isso ocorre porque a violência doméstico/familiar se dá em contexto de confiança entre agente e vítima, portanto, em relação na qual a confiança é estruturante, de sorte que a prática feminicida nessa circunstância teria como inerente a traição, estando inserida por essência em conteúdo gerador da dificuldade de defesa da ofendida.

Em relação ao aumento da pena com base no emprego de determinados meios, parece não haver qualquer obstáculo, posto que esses dados objetivos, regra geral, aumentam o potencial lesivo da ação do agente, por isso, qualificam o homicídio e agora passam a permitir a majoração do feminicídio.

Por fim, evitando qualquer dúvida hermenêutica, o parágrafo terceiro comunica as circunstâncias de caráter pessoal aos coautores ou partícipes. A regra seria desnecessária , por força da disciplina geral do artigo 30 do Código Penal, o qual estabelece que não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal, salvo se elementares do tipo, sendo as circunstâncias §1º do artigo 121-A elementares do tipo de feminicídio, pois, são elas as condições essenciais para a própria tipificação da conduta, uma vez que ausentes, deve a hipótese incidir no caput do artigo 121.

É um excesso legislativo que não prejudica, apenas gera redundância, o que pode ser criticado, sob o ponto de vista metodológico das matérias a serem tratadas na Parte Geral do Código e aquelas que devem ser disciplinadas na Parte Especial, com preocupação em garantir respeito à isonomia e à proporcionalidade, mas que, no caso, como dito, não gera qualquer debate de mérito.

Sem dúvida o avanço estrutural da legislação penal, bem se amolda com a disciplina específica em um tipo próprio do delito de feminicídio, permitindo que a legislação penal brasileira sofra adaptação em razão das necessidades surgidas, a cada etapa do desenvolvimento da sociedade.

A modificação do Código, observadas algumas ressalvas feitas no corpo do presente texto, parecem conduzir a legislação penal a uma dinâmica mais adaptada às exigências contemporâneas, melhor espelhando o atual estágio de disciplina da punição aos atos praticados quando presente a violência com base no ataque à condição da mulher.


Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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