Resumo:Este artigo analisa como o feminicídio se desenvolve em uma sociedade marcada pela indiferença moral, explorando suas raízes históricas e culturais, o papel das instituições, as consequências sociais e a importância de uma transformação ética e cultural para combatê-lo nos termos da nova Lei nº 14.994/24.
Palavras-chave:Feminicídio. Femicídio. Indiferença Moral. Lei Maria da Penha. Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Políticas Públicas. Prevenção.
Mulheres são brutalmente assassinadas diariamente em nosso País, vítimas de ex ou atuais companheiros, maridos ou namorados. Contudo, muitas vezes antes que o assassinato efetivamente ocorra estas mulheres foram vítimas de algum outro tipo de violência que não foi observado, apurado ou coibido. A cada feminicídio podemos afirmar de forma segura e categórica que a família, a sociedade e o Estado falharam num contexto amplo, a falha se da tanto com a vítima quanto com o autor.
A morte de mulheres tem raízes históricas, assim como a indiferença moral decorrente de uma omissão e de uma invisibilidade que mata. O feminicídio tem relação íntima com a violência doméstica e familiar e com a violência de gênero, cabe referir que no Brasil a violência doméstica e a violência de gênero são sinônimas. As desigualdades de tratamento entre homens e mulheres fomentam e perpetuam os assassinatos de mulheres, pois a sociedade ainda não aceita as conquistas os desejos e as escolhas das mulheres.
Portanto, o feminicídio, a morte intencional de uma mulher pelo fato de ser mulher, representa um dos problemas mais graves e persistentes na sociedade contemporânea. Este crime não é apenas uma questão de violência física, mas também um reflexo da indiferença moral que permeia as relações familiares, sociais e institucionais.
A sociedade, ao longo dos séculos, tem se acostumado e muitas vezes silenciado a violência sofrida pelas mulheres, fomentando uma cultura de impunidade e insensibilidade em relação a estes atos brutais. Nesse contexto, a indiferença moral, atua como um estimulante que mantém acesa a chama do feminicídio, permitindo que ele continue a ser visto como um problema secundário ou privado, em vez de uma tragédia pública.
Assim, o conceito de feminicídio surgiu a partir de uma necessidade urgente de diferenciar os assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero dos demais homicídios, dentre eles o femicídio, que se constitui na conduta de matar uma mulher, sem relação com a questão de sexo ou gênero. O feminicídio não é um ato de violência isolado, é resultado de uma estrutura social profundamente patriarcal que legitima a dominação masculina e a submissão feminina.
No Brasil, o feminicídio foi incluído inicialmente no Código Penal pela Lei nº 13.104/2015 que alterou o artigo 121 para classificar e qualificar esse tipo de homicídio, sendo que objetivou afastar a invisibilidade e a omissão legislativa sobre o tema e enfim reprimir e afastar impunidade.
Nos termos da capitulação expressa no Código Penal vigente até o dia 09 de outubro de 2024, feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões de condição do sexo feminino”, quando o crime envolve “violência doméstica e familiar e oumenosprezo ou discriminação à condição de mulher.” A pena prevista no tipo penal era de 12 a 30 anos de reclusão,com possibilidade de reconhecimento de causas de aumento previstas na lei de regência, sendo considerado inclusive hediondo, nos termos da Lei nº 8.072/90.Ainda, em razão do advento da Lei nº14.994/2024 publicada em 09 de outubro de 2024, o feminicídio passa a ser crime autônomo com pena de 20 até 40 anos de prisão, sendo possível aplicar as causas de aumento previstas.
Embora a legislação represente um avanço, o reconhecimento legal não é suficiente para combater o problema, que ainda é amplamente invisibilizado e minimizado em diversas esferas da sociedade. Logo, em que pese a implementação de leis como a Lei Maria da Penha e do tipo penal feminicídio, a aplicação dessas medidas ainda enfrenta muitos desafios, especialmente em regiões onde uma cultura machista e patriarcal é profundamente enraizada.
A morte de uma mulher por razões de gênero carrega em si uma mensagem de controle e desvalorização, elementos que refletem a visão de que a vida da mulher é inferior à do homem. Casos de feminicídio, muitas vezes, estão relacionados ao rompimento de laços afetivos, como a decisão da mulher em deixar um relacionamento abusivo, e são considerados atos extremos de posse e controle. Ademais, o feminicídio resulta de uma morte que foi anunciada e não foi evitada, ou seja, se a violência antecedente não tivesse sido abafada pela indiferença moral tanto da família, quanto da sociedade e do próprio Estado, que teve o conhecimento da violência, seria possível evitar o crime.
Nesse cenário, a indiferença moral é uma postura que se manifesta quando a família, a sociedade e o Estado, coletivamente, falham em demonstrar proteção, empatia, compaixão e atitude ativa em agir de forma adequada diante de injustiças e violência. Portanto, a ineficiência e a omissão são circunstâncias covardes que colaboram com essa prática odiosa. No contexto do feminicídio, a indiferença moral se reflete na forma como muitos crimes de violência de gênero são tratados como incidentes privados ou passionais, desprovidos de uma crítica mais ampla sobre as causas sociais e estruturais que os sustentam.
Essa insensibilidade é visível em várias áreas: na mídia, que sensacionaliza esses crimes sem explorar suas raízes, ou seja, muitas vezes, os assassinatos de mulheres são apresentados como crimes passionais, romantizando a violência e desviando o foco das questões estruturais que os sustentam. Essa narrativa contribui para a desumanização das vítimas e minimiza a responsabilidade dos agressores e envia uma mensagem clara de que a violência contra as mulheres é aceitável, o que contribui para a normalização do abuso; nas instituições, que falham em proteger as mulheres e garantir a justiça, na medida em que muitas vezes são omissas e deixam a violência impune; e na cultura popular, que normaliza e glamouriza a violência contra as mulheres. A indiferença moral se reafirma quando uma sociedade deixa de ver as mulheres como sujeitas a direitos plenos e, em vez disso, trata a violência contra elas com banalidade, ignorância ou resignação.
Além disso, a cultura machista, presente em várias partes do mundo, reforça estereótipos de que o homem é o "dono" da mulher, especialmente no contexto de relacionamentos amorosos. Esse sentimento de posse é um dos fatores que muitas vezes resulta no feminicídio, principalmente quando a mulher tenta romper com essa dinâmica de poder ao deixar um relacionamento abusivo.
Ainda, a indiferença moral institucionalizada pode ser vista na forma como as forças de segurança lidam com casos de violência de gênero. Muitas vezes, mulheres que buscam ajuda para denunciar agressões enfrentam descaso ou revitimização. Policiais despreparados, julgam que minimizam a gravidade do problema e os sistemas judiciais ineficazes perpetuam a sensação de que a vida das mulheres vale menos.
Outro aspecto da indiferença institucional é a falta de investimento em políticas públicas externas para a proteção das mulheres. A escassez de abrigos para acolher vítimas de violência doméstica, a ausência de programas de reabilitação para agressores e a insuficiência de campanhas educativas sobre igualdade de gênero são exemplos claros de como o feminicídio é subvalorizado pelas autoridades.
Quando os crimes de feminicídio não são tratados com a devida seriedade ou, pior ainda, quando a vítima é culpabilizada, o agressor sente que seus atos são justificáveis ou aceitáveis. O aumento dos feminicídios reflete não apenas uma falha no sistema de proteção às mulheres, mas também uma falha ética mais ampla na sociedade, que não valoriza a vida e a dignidade das mulheres de maneira adequada.
Sendo assim, uma das formas mais eficazes de combater a indiferença moral em relação ao feminicídio é por meio da educação, sendo essencial que a sociedade promova a igualdade de gênero desde os primeiros anos de vida, ensinando meninos e meninas a respeitarem uns aos outros como iguais, desconstruindo estereótipos de gênero e promovendo o respeito mútuo para prevenir a violência no futuro.
A educação e a conscientização podem criar uma cultura de respeito e proteção às mulheres, minando a indiferença moral que sustenta o feminicídio. Neste sentido, campanhas de conscientização sobre o feminicídio podem ajudar a sensibilizar a população para a gravidade do problema, sendo crucial que a sociedade entenda que o feminicídio não é um “drama familiar” ou um “crime passional”, mas um reflexo de uma estrutura social que oprime as mulheres e permite que seus direitos sejam violados.