PJM e a Proteção dos direitos humanos do indiciado, das vítimas e das testemunhas

15/10/2024 às 14:18
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As atividades de Polícia Judiciária Militar e a necessidade de observação dos direitos humanos do investigado, da vítima e da testemunha

Luciano Moreira Gorrilhas-Subprocurador -Geral de Justiça Militar

Especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em Inteligência de Segurança Pública com Direitos Humanos pelo Centro Universitário Newton Paiva, em convênio com a Escola do Ministério Público de Minas Gerais. Curso Superior em Inteligência Estratégica da ESG. Diplomado em Direito Internacional Humanitário pelo International Institute of Humanitarian Law (IHL – Itália). Procurador de Justiça Militar. Coautor do livro “Polícia Judiciária Militar e seus desafios. Teoria e Prática”. Coautor do livro “A investigação nos crimes militares”. Integrante da Comissão Técnica que elaborou a proposta do Código Penal Militar da República de Angola.-

RESUMO: Este artigo analisa, além dos cuidados necessários atinentes aos direitos humanos do investigado, a proteção dos direitos humanos de outros personagens relevantes para o processo penal, vale dizer, vítimas e testemunhas. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica de leis e jurisprudências. A conclusão é de que, além do que estabelece a Constituição Federal de 1988 em relação à dignidade humana como princípio fundamental, leis penais também tipificam condutas que violam os direitos das vítimas. O grande desafio é conseguir que o respeito à dignidade humana seja observado, sem exceção, por todos órgãos de persecução penal que atuam na fase investigativa e na fase processual. Precisamos evoluir muito nesse sentido com a criação de programas de proteção aos direitos humanos mais abrangentes com alcance aos mais longínquos rincões do extenso território brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Polícia Judiciária Militar; direitos humanos; vítima; testemunha; investigado.

ENGLISH

TITLE: The activities of the Military Judiciary Police and the need to observe the human rights of the investigated, the victim and the witness.

ABSTRACT: This article analyses, in addition to the necessary precautions related to the human rights of the investigated person, the protection of the human rights of other characters relevant to the criminal process, that is, victims and witnesses. The methodology used was the bibliographic review of laws and jurisprudence. The conclusion is that, in addition to what the Federal Constitution of 1988 establishes in relation to human dignity as a fundamental principle, criminal laws also typify conduct that violates the rights of victims. The great challenge is to ensure that respect for human dignity is observed, without exception, by all criminal prosecution bodies that operate in the investigative and procedural phases. We need to evolve a lot in this sense with the creation of more comprehensive human rights protection programs that reach the most distant corners of the vast Brazilian territory.

KEYWORDS: Military Judiciary Police; human rights; victim; witness; investigated.

SUMÁRIO

1 Introdução – 2 Direitos humanos do investigado – 3 Direito humano das vítimas – 4 Direitos humanos das testemunhas – 5 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

Preliminarmente, é necessário assinalar que, em termos de investigação criminal, os focos de luzes são direcionados, normalmente, para iluminar somente as possíveis violações dos direitos humanos do investigado. São olvidados, nesse aspecto, os direitos humanos das vítimas e das testemunhas, atores importantes, quase sempre presentes no cenário de um crime. Assim, procurou-se no presente artigo trazer à tona, além dos cuidados necessários atinentes aos direitos humanos do investigado, a proteção dos direitos humanos de outros personagens relevantes para o processo penal, vale dizer, vítimas e testemunhas.

Como é cediço, de acordo com a natureza do crime praticado, a investigação dos fatos é atribuída por lei a um determinado órgão do Poder Executivo (Polícia Federal nos crimes federais, Polícia Civil nos crimes estaduais, oficiais da Polícia Militar nos crimes militares estaduais e oficiais das Forças Armadas nos crimes militares federais). O único órgão de investigação do Poder Executivo no qual o condutor da apuração da autoria e a materialidade de um crime não possui conhecimento jurídico é a Polícia Judiciária Militar da União (PJM).

Com efeito, os oficiais das Forças Armadas designados para atuarem como encarregados de inquérito policial militar (IPM), quando muito, estudam, de forma superficial, durante seus cursos de formação, temas cujo conhecimento são imprescindíveis para o exercício de uma investigação criminal de natureza militar, tais como: direito constitucional, direito penal (comum e militar) e direito processual penal (comum e militar).

Desse modo, a PJM da União, na maioria das vezes, encontra dificuldades em interpretar e enquadrar devidamente o fato objeto de investigação, bem como em empreender metodologia adequada durante a apuração. Não se pode esquecer de que oficiais do quadro de saúde das Forças Armadas também são designados para conduzirem inquéritos. Esses oficiais sequer recebem instruções superficiais de direito.

Assim, a probabilidade de desconhecerem os direitos humanos do investigado, das vítimas e das testemunhas é significativa. É oportuno salientar que houve um ingresso clandestino (art.302 do CPM) de três pessoas com mais de 18 anos e duas menores de idade em certa unidade militar no Rio de Janeiro em que o oficial de serviço era um tenente temporário, com pouco tempo de caserna. Foi lavrado um Auto de Prisão em Flagrante (APF) contra os cidadãos maiores de idade, procedimento considerado correto. Todavia, os adolescentes foram colocados na caçamba fechada de uma viatura militar, juntos com os agentes maiores, sendo todos conduzidos para delegacia.

Ao constatar que menores estavam na caçamba do veículo militar, o delegado notificou os condutores de que, embora os menores tivessem cometido ato infracional, não poderiam ter sido transportado naquelas condições, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 178. O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade.

Assinale-se que as dificuldades aumentaram sobremaneira para PJM com o advento da Lei 13.491 de 2017. Com efeito, atualmente, diante das hipóteses contidas no art. 9º do Código Penal Militar, fatos típicos previstos no Código Penal comum e em leis extravagantes passaram a configurar crime militar. Assim, episódios complexos que tipificam crimes licitatórios e crimes sexuais (assédio sexual, importunação sexual), quase sempre cometidos sem a presença de testemunhas, são conduzidos por oficiais das Forças Armadas sem conhecimento sobre direito penal/processual penal.

Ressalte-se que consultar modelos contidos em manuais sobre investigação pode, em certa medida, auxiliar ao encarregado de IPM nos casos mais simples. Sucede que, em algumas situações, há necessidade de conhecimentos jurídicos, geralmente, inexistentes na referida fonte de consulta. À guiza de exemplo, vale transcrever o seguinte caso concreto citado no livro “A investigação nos crimes militares” (GORRILHAS; BRITTO, 2019):

[…] houve uma denúncia pelo Ministério Público Militar na qual a narrativa apontou a prática de maus-tratos por parte de um comandante de OM contra subordinados durante acampamento militar. O tipo penal de maus-tratos possui a seguinte redação no CPM:

Art. 213. Expor a perigo a vida ou saúde, em lugar sujeito à administração militar ou no exercício de função militar, de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para o fim de educação, instrução, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalhos excessivos ou inadequados, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

Nesse compasso, é importante destacar que a prática do delito em questão revela um desrespeito de um superior hierárquico aos direitos humanos de seu subordinado, razão pela qual o infrator deve ser punido exemplarmente. Trata-se crime de perigo concreto, e, assim sendo, afigura-se imprescindível, durante o inquérito, a comprovação de que a conduta praticada, em tese, delituosa, expôs perigo à vida ou à saúde do militar que estava sob autoridade do autor do fato, por ocasião da instrução militar.

Não foi, contudo, no caso vertente, realizada perícia, por ocasião do IPM, a fim de que restasse demonstrado o perigo resultante da irregular conduta praticada pelo oficial comandante de OM. Tal omissão redundou na absolvição do réu, uma vez que um crime de perigo concreto só se perfaz com a demonstração do perigo. Situação como essa demonstra que a ausência de conhecimento jurídico do condutor de uma investigação pode contribuir para a não punição de um infrator.

Vale lembrar que no crime de perigo não é exigido a efetiva produção de um dano e, assim sendo, a consumação ocorre com a simples possibilidade de dano ao bem jurídico protegido. O crime de perigo subdivide-se em perigo abstrato e perigo concreto. No primeiro, o perigo ocorre no momento da conduta comissiva ou omissiva típica e é presumido pela lei (presunção absoluta) e, portanto, independe de prova pericial (omissão de socorro). Em contrapartida, no crime de perigo concreto é imprescindível que a investigação comprove, em regra, pela prova pericial, que o perigo resultante do comportamento delituoso praticado trouxe efetivo perigo de dano ou lesão a determinado bem jurídico.

Afora o caso concreto acima relatado, é comum ocorrer irregularidades de outras naturezas pela PJM, sendo imperioso elencar os seguintes dados técnicos que devem ser de conhecimento do encarregado de IPM:

(a) faz-se necessário que Polícia Judiciária Militar saiba, tecnicamente, identificar se um infrator penal está em estado de flagrância para lavrar um Auto de Prisão em Flagrante (APF) e, para tanto, precisa ter conhecimento se a infração penal cometida se constitui em um crime instantâneo, ocorrido em determinado instante e, por essa razão, a prisão em flagrante só poderá ocorrer dentro de uma das hipóteses elencadas no art.244 do CPPM (no instante em que o agente está cometendo o crime; acaba de cometê-lo; é perseguido logo após o ato delituoso em situação que faça acreditar que ele é o autor do crime ou é encontrado, logo depois, com instrumentos que façam presumir sua participação no delito) ou crime permanente, no qual a conduta delituosa permanece no tempo de acordo com a vontade do autor do fato e por isso o agente estará sempre em flagrante delito (v.g. porte de drogas e sequestro). A lavratura de um APF contra um agente que não esteja em flagrante configura, em tese, abuso de autoridade, além de violar direito humano;

(b) o encarregado de IPM, antes de proceder um despacho fundamentado de indiciamento (providência exigida pela Lei 12830/2013), deve perscrutar se o fato praticado está ou não prescrito (a prescrição inviabiliza o indiciamento do autor do fato). Além disso, não deve instaurar IPM e promover indiciamento de um cidadão com base em notícia anônima de crime, bem como instaurar procedimento investigatório de infração penal em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, sob pena de responder por abuso de autoridade;

(c) é recomendável que a PJM, antes de representar perante o judiciário, quando for o caso, acerca de uma medida cautelar (prisão preventiva, quebra de sigilo telefônico e outras), identifique se estão presentes os requisitos exigidos para cada cautelar. Gize-se que a quebra de sigilo telefônico só é prevista para crimes punidos com reclusão. Dessarte, uma ameça feita por um militar contra seu superior, via telefone, não comporta, de acordo com a Lei 9296/96, quebra de sigilo telefônico, uma vez que a pena cominada para esse crime é de detenção;

(d) é prudente que a PJM, antes de determinar por despacho a realização de qualquer diligência investigativa para obtenção de provas (elemento informativo), verifique se tal providência viola, em tese, algum direito humano do investigado, da vítima ou da testemunha, notadamente a privacidade e intimidade. A obtenção de prova nessas condições, além de ser considerada ilícita pelo judiciário, pode configurar abuso de autoridade por parte do investigador.

Feitas essas primeiras anotações, vejamos algumas necessárias considerações sobre a proteção dos direitos humanos dos envolvidos no cenário de um crime militar.

Dentre as sete Constituições do Brasil, a única que, de forma explícita, ressaltou o princípio fundamental da dignidade humana (art.1º, III), a prevalência dos direitos humanos (art.4 II), os direitos e garantias fundamentais e direito e garantias individuais (art. 5º) e os direitos sociais (art.6º), colocando-os, topograficamente, em local de destaque logo nos primeiros artigos da carta magna, foi a constituição de 1988.

Não obstante ser considerada muito extensa, a carta magna elencou, além dos direitos supracitados, tópicos relevantíssimos, como a proteção da família, do meio ambiente, educação e saúde, prestigiando, dessa forma, à dignidade humana. Nesse aspecto, impediu a aprovação de emenda constitucional que vise afastar direitos e garantias individuais, consideradas cláusulas pétreas.

Uma vez consagrado na Constituição Federal de 1988 como princípio fundamental, a dignidade humana deve nortear as atividades de todos os integrantes dos poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário). Dessa forma, a Polícia Judiciária (militar ou comum), o Ministério Público e o Judiciário devem velar pela proteção dos direitos humanos dos investigados, acusados, vítimas e testemunhas, seja na fase investigativa, seja durante o processo penal. Qualquer ato irregular praticado pelos aludidos protagonistas processuais que venha prejudicar o investigado, a vítima e a testemunha infringe, em tese, os direitos humanos.

Vale lembrar que, em 06 de novembro de 1992, o Brasil aderiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998. Aliás, o Brasil foi sentenciado em vários casos pela aludida corte.

2 Direitos humanos do investigado

Em regra, todas as ações investigativas são voltadas para coleta de provas (elementos informativos) em busca da autoria e da materialidade do fato delituoso. Destarte, é suscetível que o encarregado de IPM, até mesmo por desconhecimento, realize alguma diligência que viole os direitos humanos do investigado ou do suspeito. Dessa maneira, é aconselhável que o oficial das Forças Armadas, tão logo seja designado para atuar como encarregado de IPM, proceda um estudo prévio sobre a metodologia que adotará durante as investigações.

Pontue-se que o Código de Processo Penal Militar é de 1969 e contem artigos que não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, como por exemplo, a previsão de busca domiciliar determinada pelo encarregado de inquérito. Como dito alhures, não se pode perder de vista que todo procedimento irregular praticado pelo oficial que conduz um IPM e que redunde prejuízo para o investigado, vítima e testemunha caracteriza inobservância dos diretos humanos.

Constitui-se em ato ilegal a oitiva do investigado, sem a prévia advertência de seus direitos constitucionais, bem como a ausência de informação de que não está obrigado a produzir prova contra si (participar, de forma coercitiva, de reprodução simulada dos fatos ou ser obrigado a escrever em papel para fins de perícia de sua grafia em crimes de falsidade documental). Não é obrigado a participar ativamente de qualquer diligência que possa lhe prejudicar. É direito constitucional do investigado ficar em silêncio durante seu interrogatório, não podendo, portanto, ser ameaçado ou coagido a falar pela autoridade investigante ou em juízo. Destarte, caso o indiciado, embora notificado, não compareça para ser ouvido em inquérito, não pode ser conduzido a força para realização de tal ato, uma vez que o STF, no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 396 e 444, considerou a condução coercitiva do indiciado para prestar depoimento incompatível com a Constituição Federal. Ressalte-se que ausência voluntária do militar investigado para depor em IPM não pode ser considerada infração disciplinar e nem tampouco delito de insubordinação. De fato, se o investigado tem o direito constitucional de ficar em silêncio, não faz sentido conduzi-lo coercitivamente para esse ato, aliás medida considerada ilegal pelo Supremo Tribunal federal.

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Diante da necessidade de se proceder abordagem em um suspeito com a consequente revista pessoal, a PJM deve estar ciente de que tal procedimento não pode ser feito com suporte em apenas impressões subjetivas, conduta que tem sido considerada ilegal pelos tribunais, notadamente o Superior Tribunal de Justiça (HC 16349). A revista pessoal só será legítima diante de fundadas suspeitas de que alguém esteja ocultando arma, coisas obtidas por meios criminosos, instrumentos de falsificação e objetos falsificados. Havendo fundadas suspeitas e sendo encontrados com o suspeito, por hipótese, instrumentos de falsificação, o que legitima a prisão em flagrante do infrator, é preciso cautela quanto ao uso de algemas, pois só será possível seu uso em três hipóteses: (a) quando houver fundado receio de fuga; (b) quando houver resistência; e (c) quando houver risco à integridade física do próprio detido, da pessoa que realizou a prisão ou de terceiros. Esses requisitos estão previstos no art. 234 §1º do Código de Processo Penal Militar (CPPM), aliás, muito antes da edição da Súmula vinculante nº 11 do STF de 2008. O uso de algemas, fora das hipóteses legais, pode configurar abuso de autoridade e, sem dúvida, afeta a dignidade humana.

Tema da mais alta complexidade para os atores jurídicos em geral, e principalmente para Polícia Judiciária, diz respeito ao limite existente entre a licitude e a ilicitude da prova obtida. Há divergências entre a doutrina, tribunais superiores e o STF em relação a obtenção de provas ou de elementos informativos (inquérito) em questões que envolvem a privacidade e intimidade da pessoa, como por exemplo, dentre outras, a gravação de conversa entre interlocutores, o acesso ao conteúdo de celular ou aparelhos eletrônicos apreendidos e a utilização de meios tecnológicos não usuais para obtenção de provas.

O encarregado de IPM não pode, portanto, gravar, de forma clandestina, conversa com o investigado. É preciso informá-lo que a conversa está sendo gravada e adverti-lo previamente sobre seu direito de permanecer em silêncio. Do contrário, omitidas tais advertências e sendo eventualmente obtida a confissão, todo procedimento será considerado ilícito. Todavia, se um dos interlocutores gravar uma conversa havida entre ambos, fora de um contexto investigativo e, desde que não haja entre eles relação de confidencialidade (cliente e advogado), tal prova tem sido considerada lícita pelos tribunais, inclusive o STF.

O acesso aos dados contidos em celulares e em computadores só pode ser feito mediante autorização judicial. Da mesma forma, o eventual uso de aparelhos tecnológicos não usuais e invasivos para obtenção de provas é ilegal.

Constitui abuso de autoridade e violação dos direitos humanos não permitir que o defensor tenha acesso às peças documentadas nos autos de inquérito.

Uma vez encarcerado o autor de um fato delituoso, seja em decorrência de prisão preventiva decretada pelo judiciário, seja decorrente de prisão em flagrante, o tratamento a ele dispensado deve ser de acordo com os princípios inerentes à dignidade humana. Além de respeito e humanidade, ao preso deverá ser destinada uma cela higienizada com ventilação, banheiro adequado, roupa de cama limpa, pelo menos três refeições diárias e banho de sol diário.

Outras condutas, a seguir descritas, previstas na Lei 13869/2019, além de violarem flagrantemente os direitos humanos, merecem especial atenção por parte do encarregado de IPM, uma vez que configuram crime de abuso de autoridade:

- Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:

- Deixar injustificadamente de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal:

- Deixar de entregar ao preso, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão e os nomes do condutor e das testemunhas;

- Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

- Exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

- Submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;I

- Produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro

- Prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio; ou de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono.

- Deixar de identificar-se ao preso ou atribui a si mesmo falsa identidade, cargo ou função, como responsável por interrogatório em sede de procedimento investigatório de infração penal;

- Submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito ou se ele, devidamente assistido, consentir em prestar declarações:

- Impedir ou retardar, injustificadamente, o envio de pleito de preso à autoridade judiciária competente para a apreciação da legalidade de sua prisão ou das circunstâncias de sua custódia:

- Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado:

- Manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento:

- Manter na mesma cela, criança ou adolescente na companhia de maior de idade ou em ambiente inadequado;

- Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado:

- Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente;

- Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso as peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível.

Neste tópico, procurou-se abordar os procedimentos ilegais mais suscetíveis de ocorrer durante uma investigação. De certo, há outras medidas, porventura aqui não abordadas, com potencialidade de atingir os direitos humanos do investigado, da vítima e da testemunha, nomeadamente a intimidade e privacidade. Por essa razão, todo despacho para realização de qualquer diligência investigativa deve ser precedido de acurada atenção pelo encarregado de IPM, a fim de que não sejam aviltados os direitos humanos.

3 Direito humano das vítimas

É preciso destacar, de início, que a vítima de um crime não sofre apenas no momento da ação do fato delituoso (furto do objeto valioso ou de estimação, violência sofrida, ameaça, perseguição, estupro e outros crimes sexuais, sequestro, dentre outros). Há situações, a depender do crime praticado, que marcam, de forma indelével, a psique da vítima, mesmo que haja prisão e condenação definitiva do autor do crime. A pertubação psicológica remanescente do crime é um fator que não tem merecido a devida atenção pela sociedade. É fato que a situação psíquica da vítima tende a piorar quando ela, além de não se sentir acolhida, é tratada com desdém e sem o devido respeito pelos órgão de investigação e pelos sujeitos processuais, no momento em que presta seu depoimento, ensejo em que a vítima revive mentalmente todo episódio sofrido.

O sofrimento decorrente dos momentos difíceis vividos pela vítima durante a audiência, por vezes, não é levado em conta pelos sujeitos processuais (MP, JUIZ e DEFESA). Não raro, advogados de defesa, em juízo, no afã de inocentar o réu, tentam desqualificar o(a) ofendido(a), atacando seu comportamento e perfil com argumentos infundados e sem conexão com o delito praticado. À guisa de exemplo, vale trazer à colação o caso da vítima Mariana Ferrer, vítima de estupro e agressões sexuais por parte de um empresário. Durante a audiência de julgamento, o advogado de defesa, além de exibir fotos da rede social da vítima, mencionou: “que jamais teria uma filha do nível da jovem”, levando-a a lágrimas (canal de ciências criminais, acesso em 27 fevereiro 2023). O tormento da ofendida não para por aí, pois é suscetível que a vítima de um crime, notadamente de cunho sexual, venha a ficar estigmatizada no seu convívio social (trabalho e local onde estuda). Infelizmente o machismo estrutural ainda predomina no Brasil.

Em razão da globalização ocorrida no Brasil a partir de 1990, bem como a proliferação de casos noticiados pelas mídias sociais, percebe-se que o legislador, bem como outros agentes políticos (Ministério Público e Judiciário) estão, cada um dentro de suas respectivas esferas de atuações, mais atuantes na elaboração de Projetos de Lei (PL), Resoluções e outras normatizações com vistas à proteção das vítimas de crime, principalmente as mulheres, os adolescentes e as crianças. Assim sendo, tramita na Câmara dos Deputados o PL 3890/2020 (Estatuto da Vítima), que trata da proteção dos direitos das vítimas que sofrem danos físicos, emocionais ou econômicos. Em vigor temos a Lei 9807/99, que estabeleceu normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas e instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas. A Lei 14.245/2021, intitulada Lei Mariana Ferrer, inspirada no caso narrado alhures, em que a vítima sofreu humilhação durante uma audiência judicial, alterou o Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz- presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I- a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II- a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Logo após, veio a lume a Lei 14321/22, que tipificou o crime de violência institucional, inserida na lei de abuso de autoridade:

Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I - a situação de violência; ou

II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

O conceito sobre violência institucional consta no art. 4º, IV, da Lei 13431/ 2017, que, ao alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente Lei 8069/90, estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, nos seguintes termos:

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:

IV - violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.

O Decreto 9603/2018 regulamentou a supracitada lei com a seguinte redação:

Art. 5º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se: I – violência institucional – violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência.

Relativamente à proteção das mulheres, além dos tipos penais previstos na Lei Maria da Penha, a Lei nº 14.188/2021 incluiu no código penal a seguinte norma punitiva:

Art. 147-B.Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.

A Resolução nº 243/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estabelece Política Institucional de Proteção Integral e de Promoção de Direitos e Apoio às Vítimas. Há inclusive um Guia Prático de Atuação do Ministério Público na Proteção e Amparo às Vítimas de Criminalidade. Digno de ser ressaltado é o conceito abrangente de vítima estabelecido pelo CNMP, contido na Resolução supra: vítima direta, a que sofreu lesão direta pela ação ou omissão do agente; vítima indireta, pessoas que possuem relação de afeto ou parentesco com a vítima direta, até o terceiro grau, desde que convivam, estejam sob seus cuidados ou dependem dela, no caso de morte ou desaparecimento causado por crime; vítima de especial vulnerabilidade, aquela com uma fragilidade singular, resultante de idade, do gênero, do seu estado de saúde ou deficiência; vítima coletiva, grupo social, comunidades ou organizações sociais atingidas pela prática de crime ou ato infracional que ofenda bens jurídicos coletivos, tais como a saúde pública, o meio ambiente, o sentimento religioso, o consumidor, a fé pública e a administração pública.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da Resolução 253/2018, normatizou que as autoridades judiciárias deverão adotar providências necessárias para que as vítimas sejam ouvidas em condições adequadas para prevenir vitimização secundária e para evitar que sofram pressões, além de encaminhamento para rede de serviços público.

Louvável tem sido a iniciativa de diversos ramos do Ministério Público brasileiro que vêm atuando na criação de secretarias e programas assistenciais às vítimas. O Ministério Público Militar (MPM), por exemplo, criou recentemente uma Secretaria de Promoção dos Direitos da Vítimas. A Procuradoria-Geral de Tocantis criou um Núcleo de Atendimento às Vítimas de crime, O MP de Minas Gerais possui um Programa de Atenção Integral às Vítimas, O MP do Rio Grande do Sul criou o Projeto Voz e Vez da Mulheres em Santo Ângelo, O MP de São Paulo possui um Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos. Há tantos outros Ministérios Públicos espalhados pelo Brasil com iniciativas com os mesmos propósitos.

Relativamente às vítimas crianças e adolescentes que sofreram violência, bem como testemunhas crianças e adolescentes que presenciaram tais fatos, o art.12 da Lei 13.431/2017 estabelece o seguinte o rito:

Art. 12. :

I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;

II - é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;

III - no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.

§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.

§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.

§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.

§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.

§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.

A legislação processual penal militar possui somente um artigo alusivo à proteção da vítima e da testemunha: “art.13, i, tomar as medidas necessárias destinadas à proteção de testemunhas, peritos ou do ofendido, quando coactos ou ameaçados de coação que lhes tolha a liberdade de depor, ou a independência para a realização de perícias ou exames”. Não há, contudo, decreto regulamentando como seria feita essa proteção, razão pela qual, diante dessa lacuna, o encarregado de IPM deverá, por analogia (art.3º do CPPM), utilizar os procedimentos dispostos na Lei 9807/99. Assim, havendo crime praticado com violência contra criança e adolescente em ambiente militar, presenciado por outras crianças ou adolescentes, todos os depoimentos (vítima e testemunhas) deverão ser realizados em conformidade da Lei 13431/2017 (depoimento especial). Caso não haja local adequado para as oitivas na OM, o encarregado pode solicitar apoio às delegacias especializadas.

Outros cuidados deverão ser considerados pelo encarregado de IPM durante a oitiva da vítima. Tais providências constam no art. 201, §4º e 6º, do CPP, abaixo descritas:

§ 4o Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido.

§ 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.

Embora as referidas normas não estejam previstas no Código de Processo Penal Militar, todos os procedimentos previstos em legislação processual penal comum que visem a proteção de vítimas e testemunhas podem e devem, por analogia, ser utilizados pelo condutor de um IPM.

Há casos em que a mulher militar das Forças Armadas é agredida pelo seu marido, também militar, no interior de casa situada em Vila Militar. Situações como essas demandam pronta intervenção por parte da PJM a fim de evitar uma escalada das agressões que podem culminar, até mesmo, no crime de feminicídio. Desse modo, a seguinte medida cautelar urgente, prevista na Lei 13827/2019, deve ser realizada pelo comandante de OM (PJM) do local dos fatos, logo que tomar conhecimento do ocorrido:

Art. 12-C.  Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:

I - pela autoridade judicial;

II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca;

III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia

§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

A Lei em questão admite que a autoridade policial determine o afastamento imediato da pessoa agressora do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima, em casos excepcionais, especialmente quando for verificado risco à vida ou à integridade da mulher, mesmo que não haja autorização judicial prévia. Essa norma foi validada pelo STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6138.

Em termos de legislações internacionais, a preocupação com a proteção das vítimas de crimes vem sendo observada em alguns países da Europa, como Portugal e Espanha. Ambas nações possuem Estatutos da Vítima. A Assembleia Geral das Nações Unidas, por intermédio da Resolução 40/34 de 1985, declarou os Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. Há ainda a Declaração n º 60/147 (2005) da Organização das Nações Unidas fixando os princípios e diretrizes básicas sobre o direito a recurso e reparação para vítimas de violações e flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário.

De fato, é estarrecedor, nos dias de hoje, deparar-se com notícias publicadas nas mídias de que, quase metade das mulheres do Brasil sofreu algum tipo de assédio em 2022 (Universa uol, 2023, acesso em 02/03/2023). O mencionado noticiário, baseado em Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, relatou que, em 2022, 30 milhões de mulheres sofreram algum tipo de assédio, que vão desde de comentários constrangedores na rua a arrochadas no ônibus; 18,6 milhões de mulheres sofreram algum tipo de agressão ou violência; 11,9 milhões de mulheres foram alvos de assédio no trabalho (comentários constrangedores), fora os casos mais graves de violência, como espancamento, ameaça com arma e feminicídio.

A partir da década de 1980, com o ingresso da mulher nas Forças Armadas, houve, de forma paulatina, um aumento de crimes, de cunho sexual, em unidades militares praticados contra militares do corpo feminino, estagiárias e funcionárias terceirizadas. Vale transcrever a seguinte anotação feita por Gorrilhas e Brito, página 204 do Livro A Investigação Nos Crimes Militares:

Levantamento feito pela 1ª Procuradoria de Justiça Militar do Rio de Janeiro em processos eletrônicos da JMU registrados em diversas OM no Brasil, indicou 20 (vinte) ocorrências de crime de assédio sexual, 11 (onze) de atentado violento ao pudor, 8 (oito) casos de estupro e 3 (três) de importunação sexual, no período entre janeiro de 2018 a maio 2020. Dentre os crimes contra a dignidade sexual, os crimes de assédio sexual e de importunação sexual foram os mais praticados em ambiente militar durante a mencionada quadra.

Entendemos que, nos crimes militares, de natureza sexual, praticados contra mulher, o encarregado de IPM deveria ser uma oficial do quadro feminino das Forças Armadas. De fato, a vítima se sentiria, sem dúvidas, mais acolhida e confortável para expor com detalhes todo o ocorrido, por vezes doloroso, de rememorar e relatar para um homem.

Assinalo um caso de importunação sexual ocorrido em uma OM no Rio de Janeiro em que um cabo do Exército, após entabular uma conversa com uma mulher, empregada terceirizada do serviço de limpeza, aplicou um beliscão nas nádegas da funcionária, no momento em que esta se abaixou para pegar material de faxina, deixando-a estupefata e sem ação imediata. Na oportunidade, o encarregado de IPM, sem a devida atenção e respeito à vítima, referia-se a esta utilizando o neologismo: “sedizente” vítima (que se diz vítima). Por outro lado, ressaltava os elogios que o indiciado teve no decorrer de sua carreira militar. Ou seja, desacreditou da versão apresentada pela vítima.

O cuidado de designar mulher para ser encarregada de IPM em crimes sexuais foi observado durante uma missão de Paz no Líbano em um caso em que envolvia crime de atentado violento ao pudor praticado por um militar da Marinha contra duas libanesas.

4 Direitos humanos das testemunhas

Na maioria das vezes a cena do crime é composta por três atores: o autor do fato, a vítima e a testemunha. Assim sendo, esses personagens devem merecer acolhimento e respeito pelos diversos sujeitos processuais com atuação na área criminal. O ato de prestar depoimento em um inquérito ou em juízo é desconfortável para qualquer pessoa que não tem vivência nesse cotidiano, ambiente que, em geral, não é acolhedor. A testemunha e a vítima civil costumam perder um dia de trabalho para cumprir obrigação de prestar depoimento em inquérito ou em juízo. Não podem, em regra, se negar a comparecer para tal ato, sob pena de serem conduzidas, de forma coercitiva. O ideal seria que as audiências não demorassem tanto e que as testemunhas tivessem um local apropriado para ficar, antes de prestar depoimento. Em regra, não é isso que acontece. O importante, contudo, é que a testemunha seja tratada com respeito durante o seu depoimento. Não pode haver ameaças e nem coação à testemunha na fase investigatória e na fase processual. O respeito aos direitos humanos deve sempre nortear as ações dos sujeitos processuais. A grande problemática relativa à prova testemunhal ocorre nos crimes de alta potencialidade lesiva, que envolvem assassinatos, tráfico de drogas, dentre outros. Como é cediço, nesses casos, a testemunha, por pavor do que lhe possa acontecer, tende a omitir a verdade (prevalece a lei do silêncio imposta pelos criminosos de alta periculosidade), ficando assim o bandido impune. Por essa e por outras razões é que o Estado deve investir, de forma efetiva, em programas de proteção às testemunhas e às vítimas, promovendo, dessa forma, antes de tudo, a garantia dos direitos humanos, notadamente a vida, a integridade física e a liberdade daqueles cujos depoimentos são importantes e determinantes para a condenação de um criminoso de alto risco. Do contrário, a impunidade continuará reinando, caso o crime praticado dependa exclusivamente da prova testemunhal ou do depoimento da vítima. Como já visto alhures, há leis que protegem as testemunhas e as vítimas. Todavia, os programas de proteção às vítimas e às testemunhas ameaçadas precisam ser eficazes, com participação de todos os entes governamentais federais, estaduais e da sociedade. Há programas de proteção de vítimas e testemunhas, como o Provita/SC (Santa Catarina), considerado referência naquela cidade, que devem servir de paradigma.

5 Conclusão

Em derradeiro, não se pode negar que o Brasil carrega marcas sombrias de mais de três séculos de escravidão, e que, mesmo após abolida a escravatura em 1888, portanto, há 135 anos, ainda nos deparamos com episódios de desrespeitos à pessoa negra. Além disso, existem preconceitos religiosos, de gênero, étnicos, dentre outros.

Hoje, a Constituição Federal estabelece expressamente a dignidade humana como princípio fundamental. Ademais, temos leis normatizando a proteção dos direitos humanos de investigados, vítimas e testemunhas, bem como leis penais que tipificam condutas que violam os referidos direitos. O grande desafio é conseguir que o respeito à dignidade humana seja observado, sem exceção, por todos órgãos de persecução penal que atuam na fase investigativa e na fase processual. Precisamos evoluir muito nesse sentido com a criação de programas de proteção aos direitos humanos mais abrangentes com alcance aos mais longínquos rincões do extenso território brasileiro. Só assim, além de diminuir as violações à dignidade humana dos investigados, das vítimas e das testemunhas, evitaremos a condenação do país por qualquer corte internacional de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9603.htm. Acesso em: 9 mar. 2023.

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BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm. Acesso em: 9 mar. 2023.

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BRASIL. Lei nº 13.827, de 13 de maio de 2019. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para autorizar, nas hipóteses que especifica, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13827.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

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BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14245.htm. Acesso em: 9 mar. 2023.

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Sobre o autor
Luciano Gorrilhas

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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