5. Direito Penal e Cooperação Internacional
O Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma instituição independente, sendo o primeiro tribunal de justiça permanente do mundo criado para julgar crimes de direito internacional.
Em 2002, o Tribunal Penal Internacional foi estabelecido pelo Estatuto de Roma, tendo como propósito julgar pessoas acusadas de crimes graves cometidos em territórios internacionais, divididos em quatro categorias: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.
Quanto à estrutura, o Tribunal Penal Internacional é formado por quatro órgãos: i) a Presidência29, integrada por 3 juízes, responsáveis pela administração do Tribunal; ii) as Câmaras31, dividas em Câmara de Questões Preliminares, Câmara de Primeira Instância e Câmara de Apelações; iii) a Promotoria, órgão autônomo do Tribunal, competente para receber as denúncias sobre crimes, examiná-las, investigá-las e propor ação penal junto ao Tribunal; e iv) a Secretaria, encarregada de aspectos não judiciais da administração do Tribunal. No total, dezoito juízes compõem o Tribunal, sendo eleitos pela Assembleia dos Estados-partes segundo uma distribuição geográfica equitativa e uma justa representação de gênero.
No que tange ao crime de genocídio, o Estatuto acolheu a mesma definição estipulada pelo artigo 2º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio adotada pelas Nações Unidas, em 9 de dezembro de 1948, e ratificada pelo Brasil em 4 de setembro de 1951. Costumava-se diferenciar o crime de genocídio dos crimes contra a humanidade, pois esses últimos estavam restritos aos períodos de guerra. Com a ampliação do conceito de crimes contra a humanidade também para períodos de paz, o crime de genocídio passou a ser considerado a mais grave espécie de crime contra a humanidade. O fator distintivo do crime de genocídio frente a outros crimes é encontrado em seu dolo específico, tangente ao “intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. A destruição pode ser física ou cultural.
No que diz respeito aos crimes contra a humanidade, eles foram mais extensamente definidos no Estatuto de Roma do que em Nuremberg, tendo havido uma especial ampliação da tipificação quanto a crimes ligados ao gênero, compreendendo a agressão sexual, a prostituição forçada, a gravidez forçada, a esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável. A nota distintiva desses crimes está no fato de fazerem parte de um ataque sistemático, ou em grande escala, contra civis.
No que se refere aos crimes de guerra, derivam precipuamente das quatro Convenções de Genebra de 1949 e da Convenção de Haia IV de 1907, abarcando a proteção tanto a combatentes (Haia), quanto a não combatentes (Genebra). Como não se estabelece aqui qualquer restrição quanto à magnitude das ofensas, acredita-se, em princípio, que haveria jurisdição mesmo no que se refere a casos isolados45. O Estatuto inova, ainda, ao prever violações para as situações de conflitos internos, e não apenas para os internacionais.
Por fim, quanto ao crime de agressão, o crime de agressão compreende planejar, preparar, iniciar ou executar um ato de agressão, que, por sua natureza, gravidade e impacto, constitua uma manifesta violação à Carta da ONU, por parte de pessoa que esteja efetivamente no exercício do controle do Estado ou que diretamente tenha o controle político ou militar do Estado.
Atualmente, o Tribunal Penal Internacional tem 122 Estados-Partes, ou seja, países que aderiram ao Estatuto de Roma e aceitaram a jurisdição do TPI. Na África, temos 34 países; Já a América Latina e o Caribe têm 27 países (todos os da América do Sul fazem parte); 25 países Ocidentais e outros; Europa do Leste com 18 nações e, Ásia e Pacífico com 18 países.
Alguns dos países que são Estados-Partes do Tribunal Penal Internacional são: Alemanha, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, França, Itália, México, Holanda, entre outros. No entanto, alguns países importantes, incluindo Estados Unidos, China e Rússia, não são Estados-Partes do TPI e não reconhecem sua jurisdição.
O Tribunal Penal Internacional foi criado com o objetivo de proteger os direitos humanos e promover a justiça internacional, sendo sua competência limitada a indivíduos, não Estados. Isso significa que a jurisdição do TPI é obrigatória para os Estados-parte, ou seja, aqueles que assinaram e ratificaram o Estatuto de Roma, que é responsável pela criação do Tribunal Penal Internacional. No entanto, alguns países não fazem parte do TPI e isso limita sua capacidade, o impedindo de julgar crimes em todo o mundo.
Concebido como um foro de último recurso, o Tribunal Penal Internacional atua apenas quando os tribunais nacionais não são capazes ou não desejam realizar os processos criminais. O Estatuto de Roma estabelece a obrigação dos Estados-parte de realizar sua jurisdição penal em relação a crimes internacionais, mas também reconhece a função complementar do TPI aos tribunais nacionais.
6. Impacto dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário Internacional
O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) visa proteger os indivíduos contra violações cometidas pelo Estado ou por particulares com a conivência ou inatividade estatal, estabelecendo uma relação jurídica entre o indivíduo e o Estado ou entre indivíduos, especialmente em casos de omissão estatal. Em casos excepcionais, alguns direitos humanos podem ser derrogados, e é nesse campo que se destaca a inter-relação entre o DIDH e o Direito Internacional Humanitário (DIH). Diversos tratados internacionais, como o artigo 4º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o artigo 15º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, abrangem a possibilidade de suspensão de direitos (BRANT et. al, 2013).
O DIH rege normas relacionadas à condução das hostilidades e à proteção e distinção entre combatentes e civis em conflitos armados, estabelecendo uma relação jurídica entre as partes em conflito, sejam Estados, grupos insurgentes ou outros grupos armados organizados. Suas normas, que não podem ser derrogadas, representam o nível mínimo de humanidade que deve ser respeitado em conflitos. O princípio da humanidade, presente no artigo terceiro comum às Convenções de Genebra, proíbe tratamentos desumanos e refere-se à humanidade em geral, tratando de interesses comuns e diretos.
A aplicação do DIH por órgãos de proteção aos direitos humanos ocorre não apenas no Sistema Interamericano, mas também em decisões do Comitê de Direitos Humanos e da Corte Europeia de Direitos Humanos, evidenciando um processo de convergência contínua entre esses ramos do direito internacional. Esse processo está presente tanto nos sistemas regionais quanto no sistema universal de proteção do indivíduo (CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2004).
A evolução do DIDH e do DIH impacta profundamente as relações internacionais, influenciando a forma como os Estados interagem e cooperam para promover a justiça e proteger os direitos humanos globalmente. A inter-relação entre esses dois ramos do direito demonstra o compromisso crescente da comunidade internacional com a dignidade humana, a paz e a segurança, influenciando significativamente a política externa e as alianças entre os países.
Um dos principais efeitos dessa inter-relação é a promoção de um padrão mínimo de humanidade que todos os Estados devem respeitar, independentemente de seu sistema político ou cultural. Esse padrão global facilita o diálogo internacional e a resolução de conflitos, promovendo a cooperação em questões de direitos humanos e humanitárias. A aceitação universal das normas de DIDH e DIH ajuda a prevenir abusos e responsabilizar os perpetradores de crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, fortalecendo a confiança e a colaboração entre as nações (Gouveia, 2005).
No contexto dos crimes contra a soberania nacional, como a espionagem, o DPI é crucial. A espionagem compromete a segurança e a confiança entre Estados, sendo uma ameaça significativa à soberania nacional. O DPI facilita a cooperação entre países na identificação e punição de espiões, além de proteger informações classificadas. Tratados internacionais e acordos de assistência mútua permitem que Estados compartilhem informações e recursos para combater a espionagem de maneira eficaz, reforçando a integridade das soberanias nacionais.
Além disso, a aplicação de normas de DIDH e DIH por órgãos internacionais e regionais, como o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Comitê de Direitos Humanos da ONU, reforça a ideia de que a proteção dos direitos humanos é uma responsabilidade coletiva. Esses órgãos não só oferecem um mecanismo de responsabilização, mas também incentivam os Estados a harmonizarem suas legislações nacionais com os padrões internacionais. Essa harmonização contribui para a estabilidade e a previsibilidade nas relações internacionais, garantindo que os direitos humanos básicos sejam respeitados e protegidos globalmente.
7. Crime Contra a Soberania Nacional: A Espionagem
O conceito de crime contra a soberania nacional inclui atos que comprometem a autoridade e integridade de um Estado, como invasões militares, golpes de Estado, espionagem e interferências externas nos processos políticos. Na era da globalização, o Direito Penal Internacional (DPI) é fundamental para lidar com esses crimes, fornecendo um quadro jurídico para a cooperação internacional e aplicação de sanções.
Especificamente sobre espionagem, este crime ameaça a soberania nacional ao comprometer a segurança e confiança entre os Estados. Espiões estrangeiros podem obter informações sensíveis que são usadas para desestabilizar governos ou manipular políticas internas. O DPI facilita a cooperação entre países na identificação e punição de espiões, além da proteção de informações classificadas. Tratados internacionais e acordos de assistência mútua são essenciais nesse contexto, permitindo que Estados compartilhem informações e recursos para combater a espionagem de maneira eficaz.
A Lei de Acesso à Informação do Brasil estabelece que o acesso a certas informações deve ser restrito para proteger a segurança do Estado e da sociedade. Informações relacionadas a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico cujo sigilo é imprescindível, como o desenvolvimento de um submarino nuclear, são protegidas automaticamente, sem necessidade de ato administrativo de classificação.
Informações sigilosas também incluem aquelas transmitidas por outros países ou organismos internacionais, sob acordo ou ato internacional, e são protegidas conforme o regime de sigilo previsto na Lei de Acesso à Informação. O crime de divulgação de segredo de Estado, previsto no art. 153, § 1º-A, do Código Penal, sanciona a divulgação sem justa causa de informações sigilosas, com pena de detenção e multa. Este crime destaca a importância de proteger informações classificadas, cuja exposição pode resultar em danos à Administração Pública e comprometer a segurança nacional.
Além disso, o art. 325 do Código Penal trata da violação de sigilo funcional, punindo a revelação de informações sigilosas por servidores públicos. A legislação exige medidas rigorosas para proteger informações classificadas, como o uso de criptografia e canais seguros, e limita o acesso a pessoas com necessidade e credenciamento de segurança.
No contexto internacional, a espionagem é um ato controverso, especialmente em tempos de paz. No direito interno brasileiro, há uma sobreposição de normas relacionadas à segurança nacional e legislação penal militar. Uma reforma legislativa é necessária para integrar essas normas e evitar conflitos, garantindo a proteção eficaz contra crimes de espionagem e manutenção da soberania nacional.
A relevância do Direito Penal Internacional (DPI) no combate à espionagem é evidente, pois ele estabelece normas e procedimentos que permitem a cooperação entre países na identificação e punição de espiões, além de proteger informações classificadas. Instrumentos como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) proporcionam um mecanismo para responsabilizar os autores de espionagem, independentemente de sua nacionalidade ou posição, reforçando a integridade das soberanias nacionais. Através do DPI, Estados podem trabalhar em conjunto para enfrentar as ameaças transnacionais, garantindo que a segurança e a estabilidade global sejam mantidas.
Ademais, o DPI facilita a harmonização das legislações nacionais com padrões globais, promovendo uma resposta uniforme e eficaz contra crimes de espionagem. A colaboração internacional é essencial para rastrear e punir espiões, assim como para prevenir atividades que comprometam a segurança de várias nações. Através de tratados como a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (UNTOC) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), os países se comprometem a adotar medidas legislativas compatíveis e a cooperar em investigações e processos, fortalecendo a capacidade global de combate à espionagem e outros crimes transnacionais que ameaçam a soberania nacional.
A espionagem continua sendo uma prática recorrente e inevitável nas relações internacionais, tanto em tempos de paz quanto em tempos de guerra. Embora a moralidade e a legalidade dessas atividades sejam frequentemente questionadas, elas desempenham um papel central na proteção de interesses estratégicos e na segurança nacional dos Estados. Contudo, os avanços tecnológicos e o ciberespaço expandiram significativamente as fronteiras da espionagem, tornando-a mais complexa e desafiadora de regular.
Referências Bibliográficas
Accioly, Hidelbrando. Manual de Direito Internacional Público. 11. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 1995.
Alves Júnior, Silvio Moreira. Teoria dos jogos na guerra: Uma análise da teoria dos jogos e da teoria da guerra no atual cenário mundial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7718, 18 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110307. Acesso em: 22 out. 2024.
Basso, Marco Antônio. Organização dos Estados e dos Poderes I. São Caetano do Sul – SP: Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 2012.
Boas Neto, Francisco José Vilas. Soberania e tratados internacionais. 2000. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,soberania-e-tratadosinternacionais,42981.html. Acesso em: 20 de junho de 2024.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: Congresso Nacional, 1988.
Brant, L. N. C., et al. (2013). A inter-relação entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional humanitário na perspectiva universal e interamericana. Disponível em: http://corteidh.or.cr/docs/libros/r23546.pdf. Acessado em: 20 de junho de 2024.
CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2004). Direito Internacional Humanitário e o direito internacional dos direitos humanos: Analogias e diferenças. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/direito-internacional-humanitario-e-o-direito-internacional-dos-direitos-humanos-analogias-e. Acessado em: 19 de junho de 2024.
Galícia, C. (2018). Crime e Globalização: Reflexões sobre Crimes Transnacionais e a Cooperação Jurídica Internacional na Contemporaneidade. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, 12(19), 1. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/324233096. Acessado em: 18 de junho de 2024.
Gouveia, J. B. (2005). Manual de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar. Disponível em: https://www.scribd.com/document/389073825/Manual-de-Direito-Internacional-P%C3%BAblico-J-Bacelar-Gouveia-PDF. Acessado em: 20 de junho de 2024.
Medeiros, Antônio Capachuz de. O que é Tribuna! Penal Internacional. Brasília, 2000, Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, p. 15.
Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2004.
ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas (1966). Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0592.htm. Acessado em: 20 de junho de 2024.
Silva, A. P. (2013). Direito Internacional Penal (Direito Penal Internacional?): Breve ensaio sobre a relevância e transnacionalidade da disciplina. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, 62, pp. 53-83. Disponível em: https://revista.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/183. Acessado em: 21 de junho de 2024.