A repercussão geral enquanto manifestação do uso virtuoso do não decidir

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I) EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA: DO COGNITIVISMO AO CETICISMO

Por alguns séculos, prevaleceu, na tradição do Civil Law, a aplicação do cognitivismo interpretativo, aqui compreendido enquanto a caracterização da interpretação como atividade descritiva e avalorativa, “cujo resultado é a declaração de uma norma pré-existente e unívoca para a solução do caso concreto” (Mitidiero, 2022, p. 21).

A propósito do tema, Herbert Hart, em provocativo artigo (“American Jurisprudence Through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream[1]), destaca que teoria do direito possui dois extremos: o “Sonho Nobre” e o “Pesadelo”. O traço distintivo entre ambos se ergue a partir das expectativas que as partes nutrem em relação ao processo judicial. O Sonho Nobre “é concebido como a crença de que os juízes apenas aplicam a lei existente- e não que se façam novas leis- ao julgarem os casos”, ao passo que, para o Pesadelo, “a decisão judicial é um ato juridicamente não controlado de atividade criadora de direito (law-making) ” (Rodrigues; Serbena, 2018, p. 274).

Bem vistas as coisas, o cognitivismo possui grande correspondência com o Sonho Nobre, reduzindo a figura do juiz a uma bouche-de-la-loi, para empregar as palavras de Montesquieu. A atividade do Judiciário deve restringir-se, em grande medida, à declaração da intenção do legislador. Todavia, conforme se verá adiante, um juiz autômato, que não participa da atividade criativa do Direito, não contribui com o desenvolvimento da ciência jurídica, não sendo esse, portanto, o melhor caminho a ser trilhado.

De outro giro, após longo percurso histórico, passou-se a entender de que a interpretação deve ser

“percebido a partir do movimento que vai da prévia determinação à dupla indeterminação do direito. Vale dizer: da suposição de que o direito é algo totalmente determinado em um momento prévio à interpretação à percepção de que o direito é duplamente indeterminado, sendo justamente o papel da interpretação precisar conceitualmente o seu significado” (Mitidiero, 2022, p. 30).

É em torno dessa ideia que gravita o ceticismo.

Ainda no escólio de Hart, que se debruçou sobre o estudo do “ceticismo em relação às regras”, não se nega a existência de leis, mas aduz-se “que as mesmas constituem meras fontes do direito, lhes recusando o caráter de direito até que sejam aplicadas pelos tribunais” (Rodrigues; Serbena, 2018, p. 282). O Judiciário (e a atividade interpretativa) é realocado da periferia para o centro do sistema jurídico.

Estabelecidas essas premissas básicas, não é despiciendo tecer breves considerações acerca das Cortes de Vértice.


II) AS MISSÕES DAS CORTES DE VÉRTICE

Acaloradas discussões existem na doutrina a respeito das funções exercidas pelos Tribunais Superiores. Num esforço de síntese, pode-se dizer, com relativa tranquilidade, que são quatro: nomofilática, uniformizadora, dikelógica e paradigmática.

Neste caldo de ideias, a nomofilática é assim delineada por Mundim (2019, p. 64): “O interesse primário das partes em ver suas pretensões acolhidas se converte no veículo do interesse do Estado em controlar a aplicação do direito objetivo”.

Com a uniformizadora, por sua vez, “busca-se a uniformidade na aplicação e interpretação das regras e princípios jurídicos em todo o território submetido à sua vigência” (idem, p. 64).

A dikelógica, de outra banda, é uma “função associada à busca de justiça no caso levado ao Tribunal, mediante a correta aplicação do direito; tutela do jus litigatoris” (idem, p. 64).

Em arremate, na paradigmática, “as decisões judiciais exercem relevante função na construção do direito, na versão final da norma, que significa orientação para os demais tribunais e pauta de conduta para os jurisdicionados” (idem, p. 64).

Em que pese a controvérsia, não é incorreta afirmar que a maneira como está estruturado o Poder Judiciário brasileiro (art. 92 da Constituição Federal) permite entrever que existem duas Cortes de Precedentes, a saber, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Conforme dicção de Marinoni (2019, p. 98),

"O Supremo Tribunal Federal, enquanto Corte que profere a última palavra acerca das questões constitucionais postas nos casos concretos, não pode elaborar precedente que possa deixar de ser observado pelos juízes e tribunais, sob pena de o sentido da Constituição não ter unidade. De igual modo, tendo em vista que a própria Constituição Federal atribui ao Superior Tribunal de Justiça a tarefa de definir a interpretação da lei federal, garantindo a unidade do direito infraconstitucional em todo o país, as decisões dessa Corte, quando configuram precedentes, também não podem deixar de ser respeitadas pelos juízes e tribunais inferiores”.

Do exposto, salta aos olhos que os Tribunais ora mencionados, Cortes de Vértice que são, possuem a hercúlea tarefa de uniformização do Direito (seja em relação ao direito constitucional, seja no que concerne ao direito infraconstitucional). O exercício dessa atividade, nada obstante, deve se dar com temperamento. Afinal, “a partir das constantes notícias de que há quantia elevada de processos endereçada às Cortes Superiores, os numerosos feitos são comparados a um feixe de luz muito intenso e brilhante, que é capaz de ofuscar a visão, talvez até mesmo de danificá-la, razão pela qual o estreitamento do acesso à luz é reputado uma proteção, ou blindagem preventiva”.

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Trocando em miúdos, não decidir, desde que com a densidade argumentativa suficiente para assim proceder, pode ser estratégico (e compatível com a missão de Corte de Vértice).


III) O USO VIRTUOSO DO NÃO DECIDIR

Aproveitando o fio condutor do tópico anterior, não é desarrazoado trazer a proscênio a perspectiva dos diálogos institucionais.

É de sabença geral que o STF possui o papel de guardião da Constituição (art. 102 da Lei Maior de 88), ao tempo que o STJ salvaguarda a tutela do direito infraconstitucional (art. 105).

Pois bem. Por meio dos diálogos ora referidos, permite-se enxergá-los como mais uns atores, mas não exclusivos. Confere-se, destarte, maior legitimidade democrática às suas decisões, de tal sorte que se pode exercer essa mesma competência “de forma mais dialógica, interativa, educativa, pedagógica, apontando falhas, invalidades, e até mesmo suprindo eventuais omissões, mas sempre de modo respeitoso, mantendo aberta a possibilidade de interação, participação, complementação ou mesmo retificação de sua decisão” (Godoy; Machado Filho, 2022, p. 122).

É a partir desse horizonte que se arvora o uso virtuoso do não decidir. Em alguns momentos, diante da natural restrição inerente a esses órgãos (que não são dotados de expertise, como multiplamente assentado em suas próprias decisões), deve-se abster de julgar, notadamente nos casos em que não haja suficiente amadurecimento da questão.

Tomando de empréstimo as palavras de Marinoni (2024, p. 195),

“Quando os fatos ainda não foram esclarecidos, ou ainda devem mais bem discutidos pelas pessoas e pelo Parlamento, a Corte pode deixar de decidir ou entender ser adequado excluir a força vinculante da sua decisão, evitando inibir o prosseguimento da discussão e da deliberação e, assim, prejudicar não apenas o esclarecimento dos fatos, mas também o desenvolvimento do processo democrático”.

Neste desiderato, pode-se dizer que “o Supremo Tribunal Federal foi autorizado a não decidir quando se instituiu a repercussão geral” (idem, p. 195). Ao não decidir casos não transcendentes, deixa-se de decidir casos que em nada agregam ao desenvolvimento do Direito Constitucional, ou, para que melhor seja decidido, exija um maior debate entre as pessoas, o Parlamento e os juízes (idem, p. 195).

E não se trata, deve-se destacar, do non liquet estampado no art. 140 do CPC, “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”. Cuida-se, isso sim, de uma racionalidade que permite enxergar o STF enquanto ator que divide o palco com os demais, emprestando maior legitimidade democrática às suas [não] decisões.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GODOY, Miguel Gualano de; MACHADO FILHO, Roberto Dalledone. Diálogos institucionais: Possibilidades, limites e o importante alerta de Roberto Gargarella. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 233, p. 117-133, jan./mar. 2022.

MARINONI, Luiz Guilherme. A zona de penumbra entre o STF e o STJ: A função das Cortes Supremas e a delimitação do objeto dos recursos especial e extraordinário. 1° ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.

MARINONI, Luiz Guilherme. Fatos constitucionais? A (des)coberta de uma outra realidade do processo. 1° ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2024.

MITIDIERO, Daniel. Relevância no recurso especial. 1° ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.

MUNDIM, Eduardo Lessa. Juízo de excepcionalidade do STJ. 1° ed. Salvador: Juspodivm, 2019.

RODRIGUES, Renê Chiquetti; SERBENA, Cesar Antonio. Formalismo jurídico e "interpretação literal" no Direito: uma abordagem a partir de dois estudos de H.L.A. Hart. In: DIDIER JR., Fredie et al (org.). Diálogos de teoria do direito e processo. Salvador: Juspodivm, 2018, pp. 267-290.


[1]https://digitalcommons.law.uga.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1032&context=lectures_pre_arch_lectures_sibley. Acesso em 26 out. 2024.

Sobre os autores
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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