O Cartório pode recusar a Usucapião Extrajudicial pelo fato do imóvel usucapiendo não ter matrícula registral?

31/10/2024 às 16:07
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USUCAPIÃO é apenas uma das formas de REGULARIZAR a titularidade de um imóvel que, constando no RGI em nome de outra pessoa vem sendo ocupado por um posseiro que pode comprovar seu tempo de posse qualificada (com "ânimo de dono" - ou seja, como se "dono" fosse) sobre o bem, que precisa ser suscetível aos efeitos da Usucapião. Temos nesse contexto os requisitos básicos deste instituto reconhecido pela Constituição Federal e pelo Código Civil, quais sejam: POSSE qualificada, TEMPO necessário e COISA hábil. Como dito, a Usucapião se destina a regularizar a titularidade do imóvel em favor de quem o ocupa preenchendo os requisitos exigidos e seus efeitos serão projetados também no RGI de modo a sobrepor, digamos assim, a verdade real (baseada no fato da posse qualificada) sobre a verdade formal (já não tão verdade assim, pelo visto) extraída dos assentos do Registro de Imóveis (RGI). Mas e quando o imóvel pretendido não tem origem registral? Será que ainda assim terá cabimento a USUCAPIÃO, especialmente a Usucapião EXTRAJUDICIAL?

Como já dissemos por muitas vezes aqui, a USUCAPIÃO até o advento do Código de Processo Civil de 2015 era manejada apenas através de Processo Judicial (aliás, um longo e cansativo Processo Judicial, que poderia levar anos para seu desfecho - nem sempre favorável, como acontece com todo processo judicial onde nenhum Advogado pode garantir o resultado, frise-se). Por ocasião da Lei 13.105/2015 foi autorizada no ordenamento jurídico brasileiro a USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL realizada diretamente nos Cartórios Extrajudiciais (Tabelionato de Notas, Registro de Imóveis e com participação inclusive do Registro de Títulos e Documentos, como veremos adiante) e tudo isso dispensando a presença de um Juiz de Direito, mas com participação obrigatória de ADVOGADO.

A Usucapião feita em Cartório já foi regulamentada pelo Provimento CNJ 65/2017 que foi substituído em 2023 pelo atual Provimento CNJ 149/2023 que em seu artigo 399 decreta:

"Art. 399. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA USUCAPIÃO formulado pelo requerente — representado por ADVOGADO ou por DEFENSOR PÚBLICO, nos termos do disposto no art. 216-A da LRP —, que será processado diretamente no ofício de registro de imóveis da circunscrição em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele".

Dentre as etapas do Procedimento podemos em resumo destacar que a primeira delas será resolvida no TABELIONATO DE NOTAS onde a ATA NOTARIAL - peça obrigatória para o procedimento - deverá ser lavrada para ser utilizada na próxima etapa, no REGISTRO DE IMÓVEIS, encartando requerimento assinado pelo ADVOGADO ou Defensor Público que conterá toda a exposição do caso. No âmbito do RGI a etapa das notificações e intimações poderá ser feita pelo REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS, como destacam os artigos 407 e 412 da regulamentação. Ao final, tudo cumprido e bem resolvido, deverá ser reconhecido pelo Oficial do RGI a aquisição do imóvel em favor do posseiro/ocupante via usucapião de forma extrajudicialmente.

Como acontece no procedimento judicial, é preciso também na via extrajudicial indicar, por óbvio, o imóvel a ser usucapido. Uma questão importante em todo processo de Usucapião, seja ele judicial ou extrajudicial, é apurar a MATRÍCULA já que a origem e assentos registrais são importantes pois podem indicar, por exemplo, que se trata de um imóvel NÃO USUCAPÍVEL o que compromete irremediavelmente a pretensão autoral. Ademais, como considerar a possibilidade de Usucapião de um imóvel sem matrícula se a própria Lei dos Registros Publicos exige matrícula para que um registro seja feito? O artigo 236 da LRP sentencia:

"Art. 236 - Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado".

A bem da verdade, o fato de não ter matrícula ou origem registral NÃO poderá representar obstáculo para a pretensão de regularização via usucapião tanto pela via judicial quanto pela via extrajudicial. Em tais casos o mandado judicial (ou o reconhecimento extrajudicial, feito pelo Registrador nos moldes do art. 216-A da LRP) terá o condão de autorizar a abertura da nova matrícula para o imóvel objeto da Usucapião. A própria regulamentação da Usucapião Extrajudicial já possui tratamento para a abertura/criação de matrícula assegurando com isso a possibilidade da Usucapião em Cartório sobre imóveis sem origem registral (o que também vale para imóveis que são decotados de áreas maiores), senão vejamos:

"Art. 417. O registro do reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel IMPLICA ABERTURA DE NOVA MATRÍCULA.

§ 1.º Na hipótese de o imóvel usucapiendo encontrar-se matriculado e o pedido referir-se à totalidade do bem, o registro do reconhecimento extrajudicial de usucapião será AVERBADO na própria matrícula existente.

§ 2.º Caso o reconhecimento extrajudicial da usucapião atinja FRAÇÃO DE IMÓVEL MATRICULADO ou imóveis referentes, total ou parcialmente, a duas ou mais matrículas, SERÁ ABERTA NOVA MATRÍCULA para o imóvel usucapiendo, devendo as matrículas atingidas, conforme o caso, ser encerradas ou receber as averbações dos respectivos desfalques ou destaques, dispensada, para esse fim, a apuração da área remanescente.

§ 3.º A abertura de matrícula de imóvel edificado independerá da apresentação de habite-se.

§ 4.º Tratando-se de usucapião de unidade autônoma localizada em condomínio edilício objeto de incorporação, mas ainda não instituído ou sem a devida averbação de construção, A MATRÍCULA SERÁ ABERTA para a respectiva fração ideal, mencionando-se a unidade a que se refere.

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§ 5.º O ato de abertura de matrícula decorrente de usucapião conterá, sempre que possível, para fins de coordenação e histórico, a indicação do registro anterior desfalcado e, no campo destinado à indicação dos proprietários, a expressão “adquirido por usucapião”.

Cabe por fim destacar que em casos assim, na prática, as pesquisas sobre a origem registral devem fazer parte também da cautela do Registrador Imobiliário responsável pelo procedimento, sendo que o Advogado deverá juntar as competentes Certidões de NADA CONSTA para atestar a inexistência de matrícula sobre o imóvel dando cumprimento ao inc. IV do art. 400 da regulamentação - NÃO SENDO ADMITIDO JAMAIS que o Cartório do RGI recuse o procedimento pelo simples fato de inexistir matrícula imobiliária como deixa claro irretocável decisão do CONSELHO DA MAGISTRATURA do TJRJ, senão vejamos:

" TJRJ. 0068552-77.2021.8.19.0001 - J. em: 10/10/2024 - CONSELHO DA MAGISTRATURA. APELAÇÃO. DÚVIDA REGISTRAL. REQUERIMENTO DE REGISTRO DE ATA NOTARIAL DE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. IMÓVEL USUCAPIDO NÃO POSSUI MATRÍCULA. REGISTRO ADIADO COM A FORMULAÇÃO DE DIVERSAS EXIGÊNCIAS. SUSCITADO QUE SE INSURGIU SOMENTE CONTRA AS DUAS EXIGÊNCIAS, RELATIVAS À INEXISTÊNCIA DE MATRICULA E CERTIDÃO DE ÔNUS REAIS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DA DÚVIDA. INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO. PARECER DA PROCURADORIA PELA REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA. O REQUERIMENTO DE SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA FOI SOMENTE EM RELAÇÃO A DUAS EXIGÊNCIAS. A LEGISLAÇÃO PERMITE A USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL DE IMÓVEL QUE NÃO POSSUI MATRÍCULA. IMPOSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO DE ÔNUS REAIS DE IMÓVEL QUE NÃO POSSUI MATRÍCULA IMOBILIÁRIA. RECURSO DE APELAÇÃO A QUE SE DÁ PROVIMENTO, PARA REFORMAR A SENTENÇA".

Sobre o autor
Julio Martins

Advogado (OAB/RJ 197.250) com extensa experiência em Direito Notarial, Registral, Imobiliário, Sucessório e Família. Atualmente é Presidente da COMISSÃO DE PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS da 8ª Subseção da OAB/RJ - OAB São Gonçalo/RJ. É ex-Escrevente e ex-Substituto em Serventias Extrajudiciais no Rio de Janeiro, com mais de 21 anos de experiência profissional (1998-2019) e atualmente Advogado atuante tanto no âmbito Judicial quanto no Extrajudicial especialmente em questões solucionadas na esfera extrajudicial (Divórcio e Partilha, União Estável, Escrituras, Inventário, Usucapião etc), assim como em causas Previdenciárias.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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