ABUSO DE DIREITO EM PROCESSO ADMINISTRATIVO: ESTUDO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO INSTAURADO PELA SUSEP
Gabriel Martins Teixeira Borges1
RESUMO
O presente estudo objetiva analisar o fenômeno do abuso de direito em processo administrativo, especialmente em situações em que a duração processual é excessiva, comprometendo os direitos dos administrados. Esse tema é relevante ao abordar a garantia de direitos fundamentais, como a razoável duração dos processos e o dever de boa-fé administrativa, essenciais para a justiça e eficiência na administração pública. O artigo aborda em específico processo administrativo instaurado pela Superintendência de Seguros Privados -SUSEP, a utilização de um processo em sentido amplo para preparação de ação coletiva contra associação de proteção veicular.
Palavras-chave
Abuso de Direito, Processo Administrativo, Duração Razoável, Boa-Fé Administrativa, Direitos dos Administrados.
ABSTRACT
This study aims to analyze the phenomenon of abuse of rights in administrative proceedings, particularly in situations where the procedural duration is excessive, compromising the rights of those administered. This topic is relevant as it addresses the guarantee of fundamental rights, such as the reasonable duration of processes and the duty of administrative good faith, both essential for justice and efficiency in public administration. The article specifically discusses an administrative process initiated by the Superintendence of Private Insurance (SUSEP), involving the broad use of an administrative procedure to prepare a collective action against a vehicle protection association.
Keywords
Abuse of Rights, Administrative Process, Reasonable Duration, Administrative Good Faith, Rights of the Administered.
1. INTRODUÇÃO
O abuso de direito em processos administrativos caracteriza-se pela utilização indevida de prerrogativas administrativas de maneira que prejudica os direitos dos administrados, especialmente no que tange à duração indeterminada dos processos. Este trabalho pretende analisar a relevância do tema no contexto da administração pública e a necessidade de proteger os administrados contra práticas abusivas.
Sobre a origem do abuso de direito, a doutrina entende que tem origem no direito romano, Maximiliano2 menciona que foi “CÍCERO quem teve a intuição do abuso ao afirmar: Summum jus, summa injuria” (“do excesso de direito resulta a suprema injustiça”), querendo demonstrar que a justiça exagerada se transforma em injustiça”
Por outro lado, Luiz Sergio Fernandes de Souza3, expõe outras origens do abuso de direito:
“Com efeito, alguns autores veem na Idade Média a origem mais remota da doutrina do abuso do direito, lastreada na aemulatio. Luis Alberto Warat, entretanto, identifica na ideia da separação de poderes o pressuposto para o florescimento da teoria do abuso do direito, condição esta que não havia no direito romano, tampouco no direito medieval, e que somente irá surgir com a Revolução Francesa . Fernando Augusto Cunha de Sá, por sua vez, entende que somente se pode falar de uma teoria do abuso do direito no contexto histórico-social do liberalismo capitalista da segunda metade do séc. XX, que coincide com a derrocada do formalismo jurídico.
O abuso de direito pode ser compreendido como o uso excessivo de direitos, de modo a comprometer os direitos alheios. Para António Menezes Cordeiro4, o abuso de direito é caracterizado como o “exercício disfuncional de posições jurídicas”, mais especificamente como o “concreto exercício de posições jurídicas que, embora correto em si, é inadmissível por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade”
A obra portuguesa de Susana Teresa Moreira Vilaça da Silva Barroso5, O abuso de direito de ação, faz a indicação das teorias sobre o abuso de direito:
“As Teorias negativistas, que se distinguem por não admitirem a ideia de abuso de direito, e nas quais se destacam Leon Deguit5 - que defende não poder haver abuso de uma coisa que não existe (direito), concretizando que não é possível abusar de um direito e se se abusa é porque não há direito – e Marcel Planiol (1903, p. 284) – que aponta para a oposição entre os conceitos abuso e direito, ou seja, para este autor, não há abuso de direito porque um ato não pode ser contrario e conforme ao direito ao mesmo tempo, “o direito acaba onde começa o abuso”. 2. As Teorias externas, que preconizam que a origem do abuso é externa ao direito em causa, e que se subdividem entre: * Teoria subjetiva, que entende o abuso de direito como exercício de um direito com propósito de prejudicar outrem, i.e., dando enfoque ao elemento subjetivo – a intenção. Neste contexto refira-se Georges Ripert6 que entende abuso de direito como “a condenação contra quem exerce um direito imoralmente”, com intenção de prejudicar, esta figura adquire assim um caracter de natureza moral ou ética” e Manuel de Andrade e Vaz Serra7, que entendem haver abuso de direito quando “o autor exercita o seu direito contra a consciência jurídica dominante, o limite está assim fora do direito, é-lhe externo.” * Teoria objetiva, que define abuso de direito como o exercício anormal de um direito, dando enfoque já não à intenção mas à circunstância factual de um exercício anormal. A este propósito, nega Rotondi8 a autonomia jurídica da figura do abuso, concluindo que conduta abusiva é aquela que apesar de conforme ao direito é reprovada pela comunidade, critério que reside no sentimento jurídico dominante. 3. As Teorias internas ou afirmativas, que de acordo com vários autores, foram determinantes no impulso de reconhecimento da existência e autonomia do instituto do abuso de direito e que preconizam a origem do abuso interna ao próprio direito. Também neste sentido, Louis Josserand defendeu que sendo os direitos subjetivos concedidos com uma determinada função, mormente proteger um determinado interesse, o abuso deriva do desrespeito por esse espirito do direito, ou pelo fim para o qual foi concedido, ou melhor dito, deriva do desrespeito pelo conteúdo do direito. Está assim em causa, a distinção entre ato ilegal (o ato incorreto em si mesmo) e ato abusivo (aquele que só é incorreto se violar esse espirito, que é aferido face à finalidade ou função do direito em concreto). Também Castanheira Neves (1967, p. 518), nesta linha de pensamento, defende que “o abuso de direito não é mais do que um comportamento que apenas tenha a aparência de licitude jurídica” (formal), i.e. um “ato que obedece à estrutura formal do direito todavia não observa o seu fundamento axiológico-normativo”
No Brasil, o instituto do abuso do direito está previsto no art. 187, que prescreve “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”
A questão tem aplicação no tocante o direito material, conforme previsto no Código Civil, o ponto em debate é a aplicação do instituto na área processual e processo administrativo. Será que comete ilícito o administrador que abusa do direito ao instaurar um processo administrativo que não garanta defesa e que não tem prazo de finalizar?
Sobre a aplicação no âmbito processual, Fábio Lima Quintas6, menciona uma dúvida inicial:
“Considerar a aplicação do instituto do abuso do direito no âmbito do processo não é, todavia, algo que se possa reputar natural ou evidente por si mesmo. Para além da autonomia do processo civil (campo do direito público) em relação ao direito civil (campo do direito privado), poder-se-ia objetar que a projeção do abuso do direito como princípio no campo processual representaria uma extrapolação não permitida pelo direito positivo e uma perigosa incursão do processo num caminho autoritário, em especial considerando a garantia constitucional do acesso à justiça, prevista no texto constitucional de ambos os países”
Em continuidade, sobre a aplicação do instituto, expõe Fábio Lima Quintas7
“Paradigmático, a respeito, o julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RESP 1.817.845, no qual se reconheceu o instituto do abuso de direito de litigar “não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utiliza- ção dos direitos fundamentais processuais”, fixando-se indenização por dano moral em favor daqueles que sofreram os efeitos da litigância abusiva. A razoável duração do processo é garantida pela Constituição Federal, assegurando que os administrados não sejam prejudicados por delongas injustificadas”.
O acordão citado:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. […] ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E DE DEFESA. RECONHECIMENTO COMO ATO ILÍCITO. […].4 – Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. 5 – O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça(...) RESP 1.817.845”
Com base no julgamento citado, aplicado o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. Nesse caso, podemos estender a aplicação ao processo administrativo?
2. IMPACTOS DO ABUSO DE DIREITO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO
A atuação do administrador público deve estar em acordo com a legalidade, ele está restrito apenas ao que a lei permite, como sabemos. O ato pode ser considerado ilícito a partir do momento que foge do princípio da legalidade, entretanto, o que busca neste artigo é o debate sobre o ato dentro da legalidade, mas que extrapola os limites esperados.
A aplicação do art. 187 do Código Civil, ao prescrever que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Destaca a conduta do administrador quando se faz uso excessivo de recursos legais e instrumentos processuais para atrasar ou impedir a justiça ou para comprometer os direitos, como a razoável duração do processo e direito de defesa.
Para ficar claro, deve ser distinta a má-fé do abuso de direto, para tanto, segue os ensinamentos de Rui Stoco8:
“A má-fé no curso do procedimento pode constituir fato isolado que, em alguns casos, não contamina a higidez do processo como um todo, embora em alguns casos isso possa ocorrer. Conduto, o abuso de direito de demandar significa que a própria ação intentada é temerária, sem origem ou com suporte em fatos inexistentes ou diversos daqueles expostos”
Maria Neves de Araujo9, em sua obra Responsabilidade Civil do Estado por atos praticados com abuso de poder, explica:
“No Brasil, ainda hoje se discute se o abuso de direito é um ato ilícito ou uma categoria jurídica autônoma. Uma primeira linha de raciocínio, sustentada por Maria Helena Diniz4 afirma, com base em uma interpretação literal do disposto no art. 187 do Código Civil, que a sua natureza é de ato ilícito ao lado da outra modalidade de ilicitude prevista pelo art. 186 do mesmo código. Outro entendimento, sustentado por Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes5, é no sentido de que o ato abusivo representa uma categoria jurídica autônoma e determinaria uma análise objetiva da conduta, aproximando-se da responsabilidade objetiva. Corroborando com este segundo entendimento, Azevedo explica que: O ato ilícito representa a inobservância de um limite lógico-formal, pois o comando legal é violado. No abuso de direito há a violação do limite axiológico-material, pois o sujeito age no exercício do seu direito, embora agredindo os valores que inspiraram a sua criação”
Com a ideia de uma categoria jurídica autônoma, aplicando o instituto ao processo administrativo, o abuso de direito por parte do administrador público, por ordem, tem que gerar a nulidade do processo, tendo em vista ter sido iniciado foram dos limites legais.
Nesse sentido leciona José Luiz Levy10:
“Como se verifica, pois, o abuso de direito é figura jurídica passível de ser aplicada não somente no âmbito do direito civil, mas em todos os ramos do direito (direito processual, direito trabalhista, direito administrativo, direito tributário, direito comercial, direito financeiro, etc), com as ressalvas já assinaladas anteriormente, atinentes ao abuso de direito stricto sensu (Capítulo 5.5).O autor da presente obra escreveu um artigo publicado em revistas especializadas de direito administrativo, intitulado Das restrições ao pedido de informações a órgãos públicos, que trata da abusividade de pedidos de informação fundados no art. 5°, inciso XIII da Constituição Federal, em número muito elevado em um mesmo dia, objetivando esclarecimentos variados e minuciosos, abrangendo prolongado período de tempo3. Quanto ao direito do consumidor, Cláudia Lima Marques reconhece que o abuso de direito se relaciona "com a função social do contrato, com a boa-fé objetiva e com os bons costumes", e "permeia, implicitamente, as normas do Código de Defesa do Consumidor"
Quando o ato administrativo não obedece à Lei, fica demonstrado o abuso de autoridade ou exercício irregular do poder de polícia. A instauração pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP do processo administrativo sem direito de defesa e de forma ampla e sem previsão legal, prova a arbitrariedade e ilegalidade, sendo um verdadeiro exercício irregular do poder de polícia e, de forma mais grave, a ação em abuso de direito, aquela que está em excesso aos limites legais.
A prática de prolongar processos administrativos sem justificativa causa impactos severos nos direitos dos administrados. A ausência de finalidade e o uso desnecessário de recursos processuais criam uma disfuncionalidade administrativa que fere a eficiência e a boa-fé exigidas dos órgãos públicos.
A conduta abusiva do administrador será analisada pela boa-fé e princípios, diferente de uma análise de ato ilícito. Para ficar claro, José Luiz Levy11:
“Com efeito, o ato abusivo nem sempre acarretará dano material ou moral, exigência indeclinável do ato ilícito, em virtude dos expressos termos do art. 186 do Código Civil. Evidentemente, o ato abusivo causa prejuízos à vida individual e coletiva das pessoas, e é por esse motivo que o direito se arma para combatê-lo, como a um corpo estranho. Mas o prejuízo nem sempre enseja-rá indenização, mesmo porque os interesses contrariados poderão ser difusos, ou poderá haver dificuldade de individuação ou comprovação. A melhor doutrina reconhece que, no direito brasileiro "o ato abusivo pode, até, não causar dano e nem por isso deixa de ser abusivo”
Trata de um fato que vai além do processo administrativo, em que se discute a possibilidade via ação autônoma de responsabilizar o administrador pelo ato praticado com abuso de direito.
Fica abrangente a análise do ato, como exemplo o administrador que faz a abertura de várias ações civis públicas que tem um único objeto, com o objetivo de possibilitar julgamentos diferentes a depender de cada magistrado. Tal conduta em ajuizar não há impedimento, mas, o de fazer a divisão com intuito claro de exceder do seu direito?
A administração pública pode ser responsabilizada por práticas abusivas que causam prejuízos aos administrados, segundo o princípio da responsabilidade objetiva. Além disso, a duração indefinida de processos pode gerar danos psicológicos e econômicos, resultando em um ônus excessivo aos cidadãos envolvidos.
3. ESTUDO DE CASO
O caso a ser indicado neste artigo é um processo administrativo instaurado pela SUSEP em desfavor de uma associação de proteção veicular, o processo teve origem de uma denúncia genérica, realizada por meio de prints de um site. A partir da denúncia, apenas com os prints, foi instaurado um processo administrativo.
O objeto do processo é a verificação da atividade da referida associação, se pode ser caracterizado ou não como atividade exclusiva de uma seguradora, que pratica os contratos de seguro ou se apenas é uma associação civil que realiza rateio de despesas já ocorridas.
A autarquia apresentou um parecer sobre a atividade, apenas com imagens obtidas pela internet (site), sem nenhuma análise acerca da natureza das mensalidades da associação, se o valor recebido é realmente entendido como o prêmio do seguro ou melhor, se o valor recebido é prévio aos eventos e para garantia futura de sinistros.
A associação não foi intimada a apresentar a defesa sobre os fatos contra ela alegada.
Posterior ao parecer unilateral da SUSEP sobre a suposta natureza da atividade da associação, foi realizado um novo parecer, requerendo o envio do caso a procuradoria, para o ajuizamento de ação civil pública, com o pedido de suspensão das atividades associativas.
Nesse primeiro momento já é possível verificar uma conduta abusiva, tendo em vista que a autarquia, sem o poder de suspender a atividade na via administrativa e, sem finalizar o processo, faz o envio do caso a procuradoria de um processo sem contraditório e sem finalização com a sanção administrativa.
Os mecanismos de controle da duração processual existentes na legislação brasileira ainda apresentam fragilidades. A aplicação do princípio da boa-fé administrativa também enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à falta de eficácia em órgãos de controle para garantir a celeridade e transparência.
Primeiro ponto, as instâncias são autônomas, possuem naturezas distintas e não há qualquer indicação de texto legal que fundamente uma nota da AGU com a informação de que deve manter o processo administrativo em virtude da existência de uma ação civil pública. Com base no princípio da legalidade e Lei nº 9.784/1999, os atos administrativos devem ser motivados, com a indicação dos fundamentos jurídicos, neste caso, sem a indicação dos artigos específicos que embasam a decisão, o que afeta a transparência, segurança jurídica e clareza.
O Art. 8º da Lei 7.347/85 prescreve que “para instruir a inicial, o interessado poderá requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15 (quinze) dias”, sem qualquer exposição de manutenção de processo em razão de ação em curso.
Caso fosse manter o posicionamento acima, deveria o administrado público fazer a indicação do fundamento legal que garanta a Autarquia a manutenção de processo em virtude de ação civil pública em curso, até mesmo para eventual apuração conduta de proceder à persecução administrativa sem justa causa fundamentada.
Acerca do inquérito administrativo, a RESOLUÇÃO CNSP Nº 393, DE 30 DE OUTUBRO DE 2020 determina a indicação de prazo de conclusão do procedimento. No caso em estudo, foi requerido o arquivamento em virtude de finalização, porém, com o pedido, foi colocada a NOTA de manutenção sem fundamentação legal, o que contraria o Art. 92 da RESOLUÇÃO CNSP Nº 393/20:
Art. 92. O inquérito administrativo será arquivado sempre que: I - não houver infração administrativa; II - não houver indícios suficientes para formular a acusação; ou III - verificar-se a ocorrência de alguma causa extintiva da punibilidade. Não foi indicado na via administrativa indícios suficientes para formular a acusação e em virtude da informação de conclusão pela própria SUSEP, sem razão para indeferir o arquivamento, não pode a parte ficar a mercê da Administração.
Nesse sentido, existe jurisprudência sobre o tempo de duração do processo, não existindo processo por prazo indeterminado ou vinculado ao trâmite de uma ação civil pública:
REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PRAZO PARA CONCLUSÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. 1. O princípio da razoável duração do processo tem sede constitucional e também se aplica aos processos administrativos, de modo que não é admissível que o particular fique à mercê da Administração indefinidamente para a obtenção de uma resposta. 2. Preceitua o inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição da Republica que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". (…) 3. Reexame necessário desprovido. (TRF-2 - REOAC: 01388888620144025101 RJ 0138888-86.2014.4.02.5101, Relator: EDNA CARVALHO KLEEMANN, Data de Julgamento: 04/02/2016, 7ª TURMA ESPECIALIZADA)
O posicionamento adotado, além de estar sem fundamento legal é contra a Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Com base na Lei nº 9.784/99, que regula processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, o processo deve ser concluído em até trinta dias:
Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.
O despacho sobre o prazo do processo administrativo foi da seguinte forma:
“(...)Por outro lado, a interessada, tomando conhecimento do referido processo administrativo, apresentou requerimento de arquivamento dele, o que restou refutado pelos termos da NOTA 1. 00261/2024/CGAEVPRE-SUSER-SEDE/PGE/AGU aprovada pelo DESPACHO n. 00594/2024/GABIN/PEE-SUSER-SEDE/PGE/AGU. Insatisfeita, a interessada apresentou nova PETIÇÃO (SEI 2101859) com reiteração do pedido de arquivamento, considerando a referência do Art. 92 da Resolução CNSP N° 393/20 e também com o fundamento do art. 49 [21 da Lei n° 9.784/99. Ao nosso sentir, nenhum dos dois argumentos é capaz de modificar a decisão anterior, 1 uma, o citado Art. 92 da Resolução CNSP N° 393/20 cuida de um procedimento específico - o inquérito administrativo para o processo administrativo sancionador - que não se confunde com este. Na verdade, não se pode perder de vista que a atuação da Superintendência de Seguros Privados não se limita a utilização de processos administrativos sancionadores, tendo uma série de outras medidas e atribuições que possam ser adotadas. E, em todas elas, para registro dos atos, adequada instrumentalidade e obediência ao mínimo de forma, são abertos "processos administrativos" (aqui entendidos em sentido amplo) como é a melhor prática de toda a Administração Pública. E, como dito na NOTA n. 00261/2024/ CGAFI/PFE-SUSEP-SEDE/PGF/AGU, os elementos contidos no referido processo administrativo se prestam para registro de subsídios e elementos para instruir a ação civil pública em curso, justificando-se, por assim, a necessidade de que o mesmo se mantenha ativo. Por tal motivação afasta-se igualmente a referência ao art. 49 da Lei n° 9.784/99 que versa sobre processos administrativos que tenham sua instrução concluída. Estando este procedimento como elemento de registro de subsídios ao citado feito judicial, não se pode dizer ter sido o mesmo concluído ou algo similar. Diante de tudo isto, não assiste razão à pretensão da interessada em encerrar este procedimento administrativo de lastreio de ação judicial. Na medida em que se submete tal conclusão a revisão hierárquica, recomenda-se o retorno do feito para a CGSUC/DISUC de forma que se leve ciência disto ao interessado. Por outro lado, recomenda-se que a referida Coordenação CGSUC identifique se existe alguma outra medida a ser adotada nos poderes de supervisão e, em caso, negativo, sugerimos que este procedimento seja anexado ao dossiê 15414.615422/2023-94 que contém outros dados destinados ao acompanhamento/instrução da Ação Civil Pública ajuizada (ACP 080XX7-10.2023.4.05.8300)”
Sobre o despacho, destaca o seguinte trecho:
E, em todas elas, para registro dos atos, adequada instrumentalidade e obediência ao mínimo de forma, são abertos "processos administrativos" (aqui entendidos em sentido amplo) como é a melhor prática de toda a Administração Pública
Coloca entre aspas o procurador que são abertos “processos administrativos”, em um sentido de que existe um processo da sua forma e, por ser da administração, intitula como um meio de processo. Mas, como sabe, a administrador público está restrito ao princípio da legalidade, não é conduta esperada, a criação, por sua vontade e estratégia, de criar um modelo.
Ao compulsar os autos, percebe apenas a criação de um argumento para remeter o caso a área judicial, sem qualquer definição legal.
Com base no instituto do abuso de direito, percebe-se claramente a ação fora da boa-fé do administrador em criar um artifício para chegar a sua vontade, o que não se espera de qualquer administrador. Para corroborar a lição de José Luiz Levy12:
Os atos abusivos podem ser comparados a um nocivo "vírus" introduzido por um hacker no sistema jurídico, "vírus" que não pode ser eliminado por meio de critérios abstratos previamente fixados pelo próprio sistema violado. Pode-se afirmar que o ato abusivo é o exercício de um direito que na realidade não existe. A rigor, a injuridicidade do ato não consiste no "exercício abusivo de um direito subjetivo", mas sim na ausência de direito constatada por meio do "exercício de um aparente direito subjetivo". O exame da juridicidade de um ato concreto corresponde a um controle de legitimidade que, em última instância, destina-se a assegurar o respeito ao próprio homem, em suas dimensões individual e social.
A instauração de um processo administrativo em sentido amplo, ou melhor, sem vinculação legal, é um exemplo evidente de ausência de direito por meio do exercício de um aparente direito subjetivo. Utilizar de um suposto direito para agir de forma abusiva contra o administrado.
4. CONCLUSÃO
A conclusão deste estudo sobre o abuso de direito no contexto de processos administrativos, exemplificado pelo caso da SUSEP, traz à tona a necessidade de rigor e clareza na aplicação das normas processuais administrativas para a proteção dos direitos dos administrados.
Primeiramente, é evidente que o abuso de direito, embora seja um conceito oriundo do direito privado, pode e deve ser aplicável aos processos administrativos como forma de coibir práticas que extrapolem a função legal do administrador. O caso abordado demonstra a importância de evitar que a Administração Pública prolongue processos ou utilize de seus poderes de forma injustificada, o que pode resultar em danos tanto psicológicos quanto econômicos aos administrados.
O abuso de direito na espera processual administrativa caracteriza-se pelo desrespeito aos limites éticos e funcionais do exercício de um direito, sendo, nesse contexto, a razoável duração do processo e a transparência administrativa princípios essenciais a serem garantidos. A prolongação indevida de um processo administrativo ou a ausência de fundamentos claros e legais para a sua continuidade refletem uma postura que contraria os princípios de boa-fé e legalidade que devem guiar a atuação pública.
O trabalho evidencia que, em situações em que há um abuso de direito, como nos casos em que a SUSEP inicia e mantém processos administrativos com base em indícios frágeis e sem uma análise completa dos fatos, ocorre uma violação aos direitos fundamentais dos administrados.
A análise aponta para a necessidade de fortalecer os mecanismos de controle sobre a duração dos processos e garantir que as decisões administrativas estejam embasadas em fundamentos jurídicos claros, respeitando os prazos legais estabelecidos. A legislação vigente, como o artigo 49 da Lei nº 9.784/99, já prevê limites para a duração do processo, indicando a necessidade de encerramento em prazo razoável ou motivação explícita para a prorrogação.
Outro ponto relevante é a questão da responsabilidade objetiva da Administração Pública em casos de abuso de direito. Quando se ultrapassam os limites legais e a boa-fé administrativa, os administrados podem sofrer prejuízos de diversas naturezas, sendo a Administração Pública passível de responsabilização. Esse entendimento busca assegurar que o Estado seja responsável por ações abusivas, especialmente quando estas envolvem a manutenção de processos sem justificativa legal e o uso excessivo de recursos processuais.
No caso específico da SUSEP, o uso de uma denúncia genérica e de provas insuficientes para instaurar um processo administrativo revela uma abordagem que compromete a integridade dos direitos dos administrados e a transparência administrativa.
A ausência de um contraditório e a utilização do processo administrativo como um artifício para viabilizar a ação judicial refletem a aplicação inadequada do direito de ação e defesa no âmbito administrativo.
Por fim, este estudo propõe que o aprimoramento da legislação e o fortalecimento de práticas de transparência e responsabilidade administrativa são essenciais para garantir uma administração pública eficiente, justa e que respeite os direitos fundamentais dos cidadãos. Além disso, a utilização do instituto do abuso de direito de forma autônoma para o debate judicial acerca dos atos do administrar púbico, a responsabilização dele pelo ato abusivo que pode ser além da via do processo administrativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Maria Neves de. Responsabilidade Civil do Estado por atos praticados com abuso de poder. Rio de Janeiro: 2012.
BARROSO, Susana Teresa Moreira Vilaça da Silva. O abuso de direito de ação. Porto: 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 1985.
BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 fev. 1999.
LEVY, José Luiz. A vedação ao Abuso de Direito como Princípio Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2015.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 8. ed. 19-
MENEZES CORDEIRO, António. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. Disponível em: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=%2045614. Acesso em 05/11/2024.
QUINTAS, Fábio Lima. Abuso de Direito de Litigar e Tutela Coletiva. Almedina, 2023.
SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS. Resolução CNSP nº 393, de 30 de outubro de 2020. Dispõe sobre normas e procedimentos para o processo administrativo sancionador no âmbito da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 nov. 2020
STOCO, Rui. Abuso de Direito e má-fé processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria pragmática. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2019.
Advogado. Advogado inscrito na OAB/GO 33.568, OAB/PE 53.536 e OAB/RN 20.516. Pós-graduado em Direito Civil, Processo Civil, Direito Tributário e Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás. Jurídico da Força Associativa Nacional-FAN. Presidente da Federação Centro Oeste das Mútuas -FECOM. Jurídico do Instituto do Nordeste de Autorregulação das Associações de Rateio - INAR. Membro da Associação Internacional de Direito Seguro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Diretor da Organização Internacional de Economia Social – OIES.︎
-
MAXIMILIANO, Carlos – Hermenêutica e aplicação do direito. 8 ed.p.182︎
SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria pragmática. 2. Ed. autal, Curitiba: Juruá, 2019, p.17.︎
MENEZES CORDEIRO, António – Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. Disponível na internet em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=%2045614.︎
BARROSO, Susana Teresa Moreira Vilaça da Silva. O abuso de direito de ação. Porto, 2016. P. 12 a 13.︎
QUINTAS, Fábio Lima. Absuso de Direito de Litigar e Tutela Coletiva, Almedina, 2023, p.99︎
Op.cit.p.117︎
STOCO, Rui. Abuso de Direito e má-fé processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.77︎
ARAUJO, Maria Neves de. Responsabilidade Civil do Estado por atos praticados com abuso de poder. Rio de Janeiro, 2012, p. 6.︎
LEVY, Jose Luiz. A vedação ao Abuso de Direito como Princípio Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p.342.︎
LEVY, Jose Luiz. A vedação ao Abuso de Direito como Princípio Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p.347.︎
LEVY, Jose Luiz. A vedação ao Abuso de Direito como Princípio Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p.358.︎