Da restituição das coisas apreendidas

09/11/2024 às 19:14
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Da restituição das coisas apreendidas

Sumário. De regra, as coisas apreendidas não se restituem enquanto interessarem ao processo-crime (art. 118 do Cód. Proc. Penal). Há casos, porém, em que a constrição legal pode e deve ser atenuada.

I. Se já não interessarem ao processo nem caírem sob o preceito do art. 91, nº II, do Código Penal,1 as coisas apreendidas ao réu poderão ser-lhe restituídas, nos termos do art. 119 do Código de Processo Penal.

Vem a ponto a lição de Tourinho Filho:

“Dominando o instituto da restituição das coisas apreendidas, há uma regra muito importante que deflui do art. 118 do Cód. Proc. Penal: antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo” (Processo Penal, 1999, vol. III, pp. 5-7).

Cai a lanço notar ainda que o mandado de segurança é meio idôneo para obter a liberação de coisas irregularmente apreendidas em inquérito policial (cf. Rev. Tribs., vol. 749, p. 675).

Ao demais, é direito do proprietário reaver a coisa “de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228 do Cód. Civil).

II. Decidiu de conformidade com esse magistério — de sã doutrina e estrita observância de veneranda tradição do foro — o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua 5a. Câmara de Direito Criminal, ao julgar mandado de segurança em que se pleitava a restituição (a seu proprietário) de bem apreendido. Transcreve-se abaixo o respectivo acórdão:

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Quinta Câmara – Seção Criminal

Mandado de Segurança nº 915.868/3-8-00

Comarca: Avaré

Impetrante: ACC

Impetrado: Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Avaré

Voto nº 7137

Relator

– Mandado de Segurança – Impetração por terceiro contra ato judicial – Interposição de recurso – Desnecessidade – Súmula nº 202 do STJ.

– Dispõe expressamente a Súmula nº 202 do STJ que “a impetração de mandado de segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condiciona à interposição de recurso”.

– Em caráter excepcional, por evitar dano de difícil reparação, admite-se mandado de segurança contra decisão impugnável mediante recurso ordinário.

– Mandado de segurança é “remédio judicial restrito à proteção daqueles direitos cuja certeza e liquidez sejam manifestos e que resistam a uma contestação razoável” (Themistocles Brandão Cavalcanti, Do Mandado de Segurança, 1957, p. 123).

– Poderá o juiz ordenar a restituição de coisa apreendida, se não existir “dúvida quanto ao direito do reclamante” (art. 120 do Cód. Proc. Penal).

– Pode e deve o Juiz “optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum” (Min. Sálvio de Figueiredo, Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 26, p. 384).

– Se já não interessarem ao processo nem caírem sob o preceito do art. 91, nº II, do Cód. Penal, as coisas apreendidas ao réu podem ser restituídas a seu dono, nos termos do art. 119 do Cód. Proc. Penal.

1. Da r. decisão que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Avaré, indeferindo-lhe pedido de restituição de veículo, impetra ACC Mandado de Segurança a este egrégio Tribunal, levando a mira em reformá-la.

Afirma, na petição de fls. 2/13, que policiais apreenderam a motocicleta Honda/CG 150 Titan, placa DNC-5355, de sua propriedade, que estava em poder de RMC, suspeito de crime de tráfico de entorpecentes.

Alega que a arrendara a Rodrigo, e não tinha ciência de que esse a usava para praticar ilícitos penais.

Acrescenta que o nobre Juízo não se dignou liberar-lhe o bem, o que lhe está causando dano excessivo, por sua desvalorização e deterioração.

Pleiteia, portanto, à colenda Câmara seja servida conceder a segurança para o efeito de restituir-lhe o veículo de sua propriedade (fls. 2/13).

Acompanha-se o pedido de numerosas cópias de peças processuais e outros documentos (fls. 15/33).

O r. despacho de fl. 36, proferido pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça, Des. Luiz Carlos Ribeiro dos Santos, denegou a medida liminar pleiteada.

A mui digna autoridade impetrada prestou as informações de praxe (fls. 39/40), nas quais confirmou os termos da petição inicial e esclareceu ter indeferido o pedido de devolução do veículo ao impetrante, em razão do disposto no art. 34 da Lei nº 6.368/76 (Lei de Tóxicos).

Ao ofício de informações foram acostadas novas cópias de peças dos autos da ação penal (fls. 41/67).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e abalizado parecer do Dr. Raul de Godoy Filho, opina pelo não conhecimento do pedido (fls. 76/78).

É o relatório.

2. Da denúncia juntada a estes autos por cópia (fls. 41/42) consta que, no dia 26 de outubro de 2005, pelas 17h30, na Rodovia SP-255, em Avaré, RMC transportava, para entregar a consumo de terceiros, sem autorização legal, 730 g de “Cannabis sativa L” (maconha), substância entorpecente que determina dependência física ou psíquica.

Foi o caso que policiais militares, em patrulhamento ordinário no local dos fatos, interceptaram a marcha do veículo conduzido por RMC: motocicleta Honda/CG 150 Titan, placa DNC-5355.

O motociclista logrou evadir-se. Foram-lhe, todavia, os policiais no encalço e lograram deitar-lhe a mão. Durante a fuga, lançara de si um embrulho, que os policiais apreenderam e verificaram tratar-se de substância entorpecente.

Instaurada ação penal para apuração de crime de tráfico de entorpecente, o impetrante, invocando a condição de seu legítimo dono, requereu a restituição da motocicleta; o que o MM. Juízo de Direito indeferiu.

Pleiteia, destarte, a concessão de segurança, a fim de que lhe seja restituído o bem apreendido.

3. Não entra em dúvida que tradicional jurisprudência de nossos Tribunais tem consagrado o entendimento de que é defeso à parte substituir por mandado de segurança o recurso próprio para impugnar ato que considere ofensivo de seu direito.

Esta, com efeito, é a substância da Súmula nº 267 do colendo Supremo Tribunal Federal: “Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”.

Por esse mesmo estalão têm decidido nossos Tribunais:

“Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição previstos na lei processual” (TJSP; Jurisprudência do Tribunal de Justiça, vol. 141, p. 442; rel. Nélson Fonseca).

Ainda:

“Consoante jurisprudência assente, em face da legislação em vigor, somente em casos excepcionais, de dano dificilmente reparável e teratologia manifesta da decisão, se admite da impetração da segurança contra ato judicial com dispensa da interposição de recurso próprio” (Rev. Tribs., vol. 715, p. 270; rel. Min. Barros Monteiro).

No caso de que se trata, porém, não se mostrava de todo incurial pudesse o impetrante, pela via heroica do mandado de segurança, conjurar alegada afronta a direito seu.

É que — e aqui bate o ponto — o impetrante não se entende por parte no processo, senão terceiro. A essa conta, para prover à defesa de seus direitos e interesses não lhe era vedado socorrer-se do remédio legal do mandado de segurança.

Nesse sentido, o próprio colendo Superior Tribunal de Justiça, na Súmula nº 202 de sua jurisprudência, proclama que: “A impetração de segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condiciona à interposição de recurso”.

Os brilhantes arestos, abaixo comemorados por suas ementas, fazem muito ao propósito:

a) “O terceiro atingido pelo ato judicial pode impugná-lo por meio de mandado de segurança, ainda que não haja interposto o recurso cabível” (STJ; ROMS nº 4.069-ES; 2a. Turma; rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro; j. 26.10.94);

b) “O princípio de que o mandado de segurança não pode ser utilizado como sucedâneo recursal aplica-se entre partes, mas não incide em se cuidando de segurança impetrada por terceiro, prejudicado em seu patrimônio pelo ato judicial” (STJ; ROMS nº 1.114-SP; 4a. Turma; rel. Min. Athos Carneiro; j. 8.10.91);

c) “O princípio de que o mandado de segurança não pode ser utilizado como sucedâneo recursal aplica-se entre as partes, não incidindo quando se tratar de segurança impetrada por terceiro com objetivo de impedir lesão a direito seu provocada por ato judicial” (STJ; ROMS nº 3.725-SP; 4a. Turma; rel. Min. Barros Monteiro; j. 12.12.94).

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Assim, em que pese aos raros predicados de espírito do douto subscritor do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, conheço do pedido à luz do Direito Positivo, do magistério da Jurisprudência e dos ditames da razão lógica.

4. Salvo o respeito devido ao nobre Magistrado prolator da decisão impugnada (fl. 22), tenho por mui digno de acolher o pedido formulado pelo impetrante, sem violar as regras de Direito nem ofender o zelo da Justiça, antes com bom crédito seu.

O argumento-aríete para indeferir a restituição do veículo ao impetrante foi a norma do art. 34 da Lei nº 6.368/76 (Lei de Tóxicos), a qual reza que os veículos utilizados para a prática dos crimes definidos no citado diploma legal deverão ser entregues à custódia da autoridade judiciária.

A lei, no entanto, deve interpretar-se de conformidade com as circunstâncias do caso concreto e em termos hábeis.

Por oportunas, reproduzo estas palavras do Min. Sálvio de Figueiredo:

“A interpretação da lei não deve ser formal, mas antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (…) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando contra legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum” (Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 26, p. 384).

No que toca à espécie sujeita, cumpre atender a que não foi o impetrante autor do crime de tráfico de entorpecentes: apenas arrendara sua motocicleta ao acusado RMC.

As cópias do Certificado de Registro (fl. 20) e do Contrato de Arrendamento (fls. 23/25) comprovam-lhe o alegado e induzem a boa-fé. Tem jus, pois, à restituição do veículo.

Assim tem decidido esta colenda Corte de Justiça:

a) “Restituição de coisa apreendida — Veículo — Bem utilizado para a prática de tráfico de entorpecente — Automóvel locado — Restituição pretendida pela empresa locadora — Admissibilidade — Terceiro de boa-fé — Coisa que deverá ficar depositada à impetrante até o trânsito em julgado da decisão final no processo criminal — Art. 119 do Cód. Proc. Penal — Segurança concedida em parte” (TJSP; Mandado de Segurança nº 413.857-3/8 – Santa Rita do Passa Quatro; rel. Raul Motta, j. 15.09.2003);

b) “Tráfico — Apreensão de veículo, objeto de alienação fiduciária, utilizado na prática do delito — Bem que não se sujeita ao confisco, por pertencer a terceiro de boa‑fé — Inteligência e aplicação dos arts. 243, parág. único, da CF; 34, § 2º, da Lei 6.368/76 e 91, II, a, do CP (TJSP; Rev. Tribs., vol. 661, p. 265).

5. De outra parte, segundo teor da disposição preceptiva do art. 120 do Código de Processo Penal, a restituição das coisas apreendidas “poderá ser ordenada pela autoridade policial ou juiz, mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante”.

É o que ensina Tourinho Filho em sua estimada obra:

“Dominando o instituto da restituição das coisas apreendidas, há uma regra muito importante que deflui do art. 118 do Cód. Proc. Penal: antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo. Contrario sensu: se não interessarem, poderão (…). Se os instrumentos do crime não se amoldarem à letra a do inc. II do art. 91 do Cód. Penal, isto é, não se tratando de coisas confiscáveis, nada impede a sua restituição ao criminoso e, com muito mais razão, ao lesado ou terceiro de boa-fé, pouco importando haja sentença condenatória trânsita em julgado. Assim, se a esposa fere o marido com uma tesoura, se o camponês agride o colega com a sua enxada, se o médico fere o colega com o bisturi, se o estudante bate no colega com um livro, se alguém é atropelado por uma bicicleta, motocicleta ou qualquer veículo automotor, por exemplo, é evidente que esses instrumentos do crime pelo fato de não serem coisas cujo fabrico, uso, porte, alienação ou detenção constitua fato ilícito, poderão ser restituídos” (Processo Penal, 1997, vol. 3º, pp. 5-7).

Destarte, por desnecessária a subsistência da constrição judicial do bem de sua propriedade, além de presentes a liquidez e certeza de seu direito, afigura-se legítima a pretensão do impetrante.

6. Pelo exposto, concedo a segurança para determinar a restituição ao impetrante de seu veículo apreendido (motocicleta Honda/CG 150 Titan, placa DNC-5355).

São Paulo, 4 de agosto de 2006

Des. Carlos Biasotti

Relator

Nota:


  1. “São efeitos da condenação:

    II – a perda em favor da União (…):

    a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção não constitua fato ilícito;

    b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso” (art. 91, nº II, do Cód. Penal).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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