Capa da publicação Fungibilidade e erro grosseiro no processo penal
Capa: DepositPhotos

O princípio da fungibilidade e o erro grosseiro no processo penal

11/11/2024 às 17:52

Introdução

O princípio da fungibilidade recursal é um dos pilares que norteiam a atuação do sistema processual penal brasileiro, em que a eficiência e a efetividade são perseguidas ao máximo, sempre tendo em mente a proteção dos direitos e garantias processuais das partes envolvidas. A fungibilidade refere-se à possibilidade de admitir e processar um recurso errado como se fosse o recurso correto, desde que a parte recorrente atue de boa-fé, dentro do prazo legal e sem que se configure um erro grosseiro. Em outras palavras, trata-se de uma garantia processual voltada a evitar a perda de direitos devido a pequenos equívocos formais no manejo dos recursos.

O conceito de fungibilidade é intrinsecamente relacionado ao sistema de justiça penal, pois visa a uma prestação jurisdicional mais célere e justa, evitando que questões meramente técnicas e processuais impeçam o exame de mérito de determinada decisão. No entanto, há a necessidade de um critério delimitador que estabeleça quando o erro na escolha do recurso não pode ser admitido como passível de correção. Esse limite é, geralmente, demarcado pelo conceito de erro grosseiro, o qual, se configurado, inviabiliza a aplicação do princípio da fungibilidade.

Neste artigo, analisaremos com relativa profundidade o princípio da fungibilidade no processo penal, a exigência de ausência de erro grosseiro para a sua aplicação e como a jurisprudência tem interpretado esses critérios na prática.


O Princípio da Fungibilidade: Conceito e Aplicação no Direito Brasileiro

O princípio da fungibilidade pode ser entendido como uma norma processual que permite a substituição de um recurso inadequado por aquele que seria o correto, visando evitar a perda do direito de recorrer por equívocos na escolha do meio recursal. Sua base legal encontra-se no artigo 579 do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre a ausência de prejuízo em casos onde um recurso é interposto por outro, desde que não haja má-fé.

O objetivo deste princípio é promover a efetividade da tutela jurisdicional, evitando a perda de direitos por erro no tipo de recurso, especialmente quando tal erro não causa danos irreparáveis e o recurso errado é interposto dentro do prazo do recurso correto. A jurisprudência e a doutrina também sustentam que a fungibilidade visa a concretizar os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, de modo que o recorrente não seja penalizado por eventuais confusões técnicas.


A Condição de Boa-Fé como Requisito

Um dos elementos essenciais para a aplicação do princípio da fungibilidade é a demonstração de que a parte atuou de boa-fé ao interpor o recurso incorreto. A boa-fé significa que o recorrente não tinha a intenção de fraudar o processo ou de utilizar o recurso de maneira desleal. Segundo o artigo 80 do Código de Processo Civil (CPC), que é aplicado ao processo penal por analogia, a má-fé é caracterizada por atos como a oposição injustificada ao andamento do processo ou o uso do processo para atingir objetivos ilegais. Ou seja, a parte deve demonstrar que o recurso foi interposto com o objetivo legítimo de obter uma revisão da decisão judicial, sem práticas abusivas.


Erro Grosseiro: Definição e Limites na Aplicação do Princípio

Embora o erro grosseiro não seja equivalente à má-fé, ele é um obstáculo à aplicação da fungibilidade. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem delimitado o conceito de erro grosseiro como um erro evidente, que qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento jurídico seria capaz de evitar. O erro grosseiro ocorre, por exemplo, quando se interpõe um recurso manifestamente inadequado sem nenhuma justificativa razoável.

A interposição de um agravo regimental em face de uma decisão colegiada, por exemplo, é um caso clássico de erro grosseiro, uma vez que a sistemática processual claramente determina que o recurso cabível em tais situações é o agravo interno.

Contudo, a identificação do erro grosseiro demanda uma análise circunstancial de cada caso. Se o erro tiver fundamento razoável – ou seja, se houver algum argumento jurídico que possa confundir quanto ao recurso cabível – o erro pode não ser considerado grosseiro e, portanto, não impedirá a aplicação da fungibilidade.


Tempestividade como Requisito Essencial

A tempestividade é um requisito implícito para a aplicação do princípio da fungibilidade. Isso significa que, para que o recurso incorreto seja convertido no recurso correto, ele deve ter sido interposto dentro do prazo do recurso adequado. Esse critério visa impedir que a fungibilidade seja utilizada como um mecanismo para sanar a inércia ou negligência da parte, promovendo a eficiência processual e a segurança jurídica.

De acordo com a jurisprudência do STJ, se o recurso for interposto após o prazo do recurso correto, a fungibilidade não será aplicável, ainda que os demais requisitos, como boa-fé e ausência de erro grosseiro, estejam presentes.


O Princípio da Fungibilidade no Procedimento do Júri: Análise de um Caso Hipotético

No contexto do procedimento do Tribunal do Júri, há uma situação recorrente que exemplifica a aplicação do princípio da fungibilidade. Suponhamos que, ao final da primeira fase do procedimento, o juiz profere uma sentença de absolvição sumária com fundamento no artigo 415 do CPP. O recurso cabível para impugnar essa decisão é a apelação, conforme o artigo 416 do CPP. Entretanto, o Ministério Público, equivocadamente, interpõe um recurso em sentido estrito (RESE) em vez da apelação.

Neste caso, o Tribunal de Justiça poderia aplicar o princípio da fungibilidade e conhecer o RESE como se fosse apelação, desde que o recurso tenha sido interposto no prazo correto, não haja erro grosseiro e seja constatada a boa-fé do recorrente. A ausência de erro grosseiro se justifica, pois, embora o artigo 416 do CPP seja claro quanto ao cabimento de apelação, o procedimento do Tribunal do Júri pode suscitar dúvidas em razão de suas peculiaridades.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O Entendimento do STJ sobre Fungibilidade e Erro Grosseiro

A jurisprudência do STJ tem sido consistente ao afirmar que o erro grosseiro obsta a aplicação do princípio da fungibilidade. Em julgamento recente, a Corte destacou que a fungibilidade deve ser aplicada com parcimônia, observando o requisito da ausência de má-fé e de erro grosseiro, além da tempestividade do recurso. O STJ ressalta que a fungibilidade não deve servir para sanar erros evidentes que demonstrem desatenção ou desconhecimento técnico, mas sim para preservar direitos quando o erro for justificável.


A Perspectiva Doutrinária sobre o Princípio da Fungibilidade

Doutrinadores renomados defendem que a aplicação do princípio da fungibilidade não deve ser restrita a um formalismo exacerbado. Segundo tais autores, a fungibilidade é uma expressão de boa-fé e flexibilidade no processo, que devem ser privilegiadas para evitar que meros formalismos esvaziem o direito ao contraditório e à ampla defesa. Contudo, eles também reconhecem que o princípio não pode ser usado para justificar qua


Considerações finais

O princípio da fungibilidade recursal tem um papel relevante no processo penal brasileiro ao proporcionar a substituição de um recurso inadequado pelo recurso correto, desde que preenchidos determinados requisitos, como a ausência de má-fé, tempestividade e a não caracterização de erro grosseiro. Esse princípio visa assegurar que as partes tenham acesso à tutela jurisdicional e que equívocos técnicos não impeçam o exercício do direito de recorrer. A jurisprudência, especialmente do STJ, tem delineado o alcance e os limites desse princípio, enfatizando que o erro grosseiro obsta sua aplicação.

A análise da fungibilidade e do erro grosseiro revela a tensão entre os princípios da segurança jurídica e da instrumentalidade do processo. O equilíbrio entre esses valores é essencial para um sistema de justiça eficiente e justo, que busca resolver os conflitos sem sacrificar a legalidade e o devido processo legal. Em última análise, o princípio da fungibilidade continua sendo uma ferramenta importante para garantir a efetividade e o acesso à justiça, mas com cautela para evitar que seja banalizado ao ponto de comprometer a previsibilidade e a segurança do processo.

Sobre o autor
André Jales Falcão Silva

Advogado (OAB/CE: 29.591). Possui uma ampla formação acadêmica incluindo Bacharelado em Direito e Licenciatura em Sociologia e diversas especializações nos campos do Direito e da Educação. Atua profissionalmente como Professor de disciplinas do eixo das ciências sociais e aplicadas e como Perito Judicial, em diversos tribunais, com ênfoques em Documentoscopia e Grafoscopia. É Psicanalista vinculado ao Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos