Introdução
O princípio da fungibilidade recursal é um dos pilares que norteiam a atuação do sistema processual penal brasileiro, em que a eficiência e a efetividade são perseguidas ao máximo, sempre tendo em mente a proteção dos direitos e garantias processuais das partes envolvidas. A fungibilidade refere-se à possibilidade de admitir e processar um recurso errado como se fosse o recurso correto, desde que a parte recorrente atue de boa-fé, dentro do prazo legal e sem que se configure um erro grosseiro. Em outras palavras, trata-se de uma garantia processual voltada a evitar a perda de direitos devido a pequenos equívocos formais no manejo dos recursos.
O conceito de fungibilidade é intrinsecamente relacionado ao sistema de justiça penal, pois visa a uma prestação jurisdicional mais célere e justa, evitando que questões meramente técnicas e processuais impeçam o exame de mérito de determinada decisão. No entanto, há a necessidade de um critério delimitador que estabeleça quando o erro na escolha do recurso não pode ser admitido como passível de correção. Esse limite é, geralmente, demarcado pelo conceito de erro grosseiro, o qual, se configurado, inviabiliza a aplicação do princípio da fungibilidade.
Neste artigo, analisaremos com relativa profundidade o princípio da fungibilidade no processo penal, a exigência de ausência de erro grosseiro para a sua aplicação e como a jurisprudência tem interpretado esses critérios na prática.
O Princípio da Fungibilidade: Conceito e Aplicação no Direito Brasileiro
O princípio da fungibilidade pode ser entendido como uma norma processual que permite a substituição de um recurso inadequado por aquele que seria o correto, visando evitar a perda do direito de recorrer por equívocos na escolha do meio recursal. Sua base legal encontra-se no artigo 579 do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre a ausência de prejuízo em casos onde um recurso é interposto por outro, desde que não haja má-fé.
O objetivo deste princípio é promover a efetividade da tutela jurisdicional, evitando a perda de direitos por erro no tipo de recurso, especialmente quando tal erro não causa danos irreparáveis e o recurso errado é interposto dentro do prazo do recurso correto. A jurisprudência e a doutrina também sustentam que a fungibilidade visa a concretizar os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, de modo que o recorrente não seja penalizado por eventuais confusões técnicas.
A Condição de Boa-Fé como Requisito
Um dos elementos essenciais para a aplicação do princípio da fungibilidade é a demonstração de que a parte atuou de boa-fé ao interpor o recurso incorreto. A boa-fé significa que o recorrente não tinha a intenção de fraudar o processo ou de utilizar o recurso de maneira desleal. Segundo o artigo 80 do Código de Processo Civil (CPC), que é aplicado ao processo penal por analogia, a má-fé é caracterizada por atos como a oposição injustificada ao andamento do processo ou o uso do processo para atingir objetivos ilegais. Ou seja, a parte deve demonstrar que o recurso foi interposto com o objetivo legítimo de obter uma revisão da decisão judicial, sem práticas abusivas.
Erro Grosseiro: Definição e Limites na Aplicação do Princípio
Embora o erro grosseiro não seja equivalente à má-fé, ele é um obstáculo à aplicação da fungibilidade. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem delimitado o conceito de erro grosseiro como um erro evidente, que qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento jurídico seria capaz de evitar. O erro grosseiro ocorre, por exemplo, quando se interpõe um recurso manifestamente inadequado sem nenhuma justificativa razoável.
A interposição de um agravo regimental em face de uma decisão colegiada, por exemplo, é um caso clássico de erro grosseiro, uma vez que a sistemática processual claramente determina que o recurso cabível em tais situações é o agravo interno.
Contudo, a identificação do erro grosseiro demanda uma análise circunstancial de cada caso. Se o erro tiver fundamento razoável – ou seja, se houver algum argumento jurídico que possa confundir quanto ao recurso cabível – o erro pode não ser considerado grosseiro e, portanto, não impedirá a aplicação da fungibilidade.
Tempestividade como Requisito Essencial
A tempestividade é um requisito implícito para a aplicação do princípio da fungibilidade. Isso significa que, para que o recurso incorreto seja convertido no recurso correto, ele deve ter sido interposto dentro do prazo do recurso adequado. Esse critério visa impedir que a fungibilidade seja utilizada como um mecanismo para sanar a inércia ou negligência da parte, promovendo a eficiência processual e a segurança jurídica.
De acordo com a jurisprudência do STJ, se o recurso for interposto após o prazo do recurso correto, a fungibilidade não será aplicável, ainda que os demais requisitos, como boa-fé e ausência de erro grosseiro, estejam presentes.
O Princípio da Fungibilidade no Procedimento do Júri: Análise de um Caso Hipotético
No contexto do procedimento do Tribunal do Júri, há uma situação recorrente que exemplifica a aplicação do princípio da fungibilidade. Suponhamos que, ao final da primeira fase do procedimento, o juiz profere uma sentença de absolvição sumária com fundamento no artigo 415 do CPP. O recurso cabível para impugnar essa decisão é a apelação, conforme o artigo 416 do CPP. Entretanto, o Ministério Público, equivocadamente, interpõe um recurso em sentido estrito (RESE) em vez da apelação.
Neste caso, o Tribunal de Justiça poderia aplicar o princípio da fungibilidade e conhecer o RESE como se fosse apelação, desde que o recurso tenha sido interposto no prazo correto, não haja erro grosseiro e seja constatada a boa-fé do recorrente. A ausência de erro grosseiro se justifica, pois, embora o artigo 416 do CPP seja claro quanto ao cabimento de apelação, o procedimento do Tribunal do Júri pode suscitar dúvidas em razão de suas peculiaridades.
O Entendimento do STJ sobre Fungibilidade e Erro Grosseiro
A jurisprudência do STJ tem sido consistente ao afirmar que o erro grosseiro obsta a aplicação do princípio da fungibilidade. Em julgamento recente, a Corte destacou que a fungibilidade deve ser aplicada com parcimônia, observando o requisito da ausência de má-fé e de erro grosseiro, além da tempestividade do recurso. O STJ ressalta que a fungibilidade não deve servir para sanar erros evidentes que demonstrem desatenção ou desconhecimento técnico, mas sim para preservar direitos quando o erro for justificável.
A Perspectiva Doutrinária sobre o Princípio da Fungibilidade
Doutrinadores renomados defendem que a aplicação do princípio da fungibilidade não deve ser restrita a um formalismo exacerbado. Segundo tais autores, a fungibilidade é uma expressão de boa-fé e flexibilidade no processo, que devem ser privilegiadas para evitar que meros formalismos esvaziem o direito ao contraditório e à ampla defesa. Contudo, eles também reconhecem que o princípio não pode ser usado para justificar qua
Considerações finais
O princípio da fungibilidade recursal tem um papel relevante no processo penal brasileiro ao proporcionar a substituição de um recurso inadequado pelo recurso correto, desde que preenchidos determinados requisitos, como a ausência de má-fé, tempestividade e a não caracterização de erro grosseiro. Esse princípio visa assegurar que as partes tenham acesso à tutela jurisdicional e que equívocos técnicos não impeçam o exercício do direito de recorrer. A jurisprudência, especialmente do STJ, tem delineado o alcance e os limites desse princípio, enfatizando que o erro grosseiro obsta sua aplicação.
A análise da fungibilidade e do erro grosseiro revela a tensão entre os princípios da segurança jurídica e da instrumentalidade do processo. O equilíbrio entre esses valores é essencial para um sistema de justiça eficiente e justo, que busca resolver os conflitos sem sacrificar a legalidade e o devido processo legal. Em última análise, o princípio da fungibilidade continua sendo uma ferramenta importante para garantir a efetividade e o acesso à justiça, mas com cautela para evitar que seja banalizado ao ponto de comprometer a previsibilidade e a segurança do processo.