Negrofobia x caricatura: Métodos restaurativos para tratamento do conflito

12/11/2024 às 17:29
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Em 31 de outubro de 2024, a Éditions Dupuis, editora franco-belga, famosa por suas revistas em quadrinhos (bandes déssinées), manifestou-se publicamente nas redes sociais, informando que cessaria as vendas e retiraria do mercado o álbum Spirou et La Gorgone bleue, publicado em setembro de 2023, da série de aventuras de Spirou et Fantasio, personagens principais dos quadrinhos com mesmo nome. O referido álbum foi acusado de “conter caricaturas racistas de personagens negras, desenhadas como macacos, e de representar personagens femininas de forma bastante sexualizada” [1].

O comunicado da Editora Dupuis informou: "Mais do que nunca conscientes de nosso dever moral e da importância dos quadrinhos como editores e, mais amplamente, dos livros na evolução das sociedades, agora assumimos total responsabilidade por esse erro de julgamento. É por isso que gostaríamos de apresentar as nossas mais sinceras desculpas. Implementamos a retirada do livro de todos os pontos de venda" [2]. Complementou a Editora que “este álbum se insere em um estilo de representação caricatural herdado de outra época” [3].

Várias críticas foram levantadas contra a Depuis, uma vez que a mesma só veio a público um ano após a publicação, seguida de inúmeras manifestações negativas nas mídias sociais - especialmente a X (antiga twitter) - sobre a BD (tira de quadrinhos) La Gorgone bleue, por apresentar elementos expressos de negrophobie (negrofobia) [4] e do imaginário colonial franco-belga [5].

Aqui, mais uma vez se apresentam questões étnico-raciais e direitos fundamentais, referindo-se também aos limites da liberdade de expressão em confronto com práticas de discurso de ódio e racismo, inseridos no contexto dos direitos culturais em sua dimensão artística e de liberdade de expressão.

Nesse ponto, tanto no comunicado da Editora quanto no debate do canal da televisão pública francesa, falou-se em “caricatura” e “estereótipo”, enquanto expressões culturais de determinada época, como justificativa para validar a peça artística de outrora, ou, no mínimo, amenizar o impacto de sua interpretação considerada de cunho racista na atualidade.

No que se refere à caricatura, foi promulgada no Brasil, em 15 de outubro de 2024, a Lei nº 14.996, que “reconhece as expressões artísticas, charge, caricatura, cartum e grafite como manifestações da cultura brasileira”; e, em seu art. 1º, “cabendo ao poder público garantir sua livre expressão artística e promover sua valorização e preservação”, em perfeita harmonia com o disposto nos arts. 215, da Constituição Federal, que se refere aos direitos culturais, e art. 5º, IV – liberdade de expressão do pensamento.

Quanto ao conceito de caricatura, dispõe o art. 2º, II, da Lei 14.996/2024, que é um “tipo de desenho que, caracterizado pelos excessos, pelas formas e pelos traços deformados, apresenta uma pessoa ou situação de forma grotesca ou cômica”.

E quando a representação se refere especificamente não a uma pessoa, mas a um grupo étnico (estereotipia com macaco), em um contexto com personagens “brancos”, realçando a mimetização com primatas apenas dos negros [6], não estaria a expressão artística mais próxima da discriminação racial do que da mera caricatura? Seria o pedido de desculpas, imediato ou tardio, o suficiente para abrandar a conduta racista e afastar a responsabilidade (penal, civil e administrativa) dos autores? [7]

Na França, mais especificamente, há previsão de proteção da caricatura no Code de la propriété intellectuelle (Código da Propriedade Intelectual), art. L122-5, em face da intervenção do autor, após a publicação da obra, garantindo a expressão caricatural independentemente de autorização prévia [8]. Todavia, o mesmo debate sobre os limites do uso da caricatura e a prática do racismo também está presente, haja vista, a título de exemplo de repercussão mundial, o ataque ao jornal Charlie Hebdo (2015) [9].

No caso Júlio Cocielo, em julgado de primeira instância, entendeu o magistrado que “utilizar da ‘zombaria de estereótipos’, inclusive para, dentro do papel social do humorista, levar a sociedade a refletir sobre o ranço discriminatório que ainda existe e que precisa ser superado dentro de uma coletividade que se diz fraterna, mas que também prima pela liberdade e que jamais pode compactuar com a imposição do “discurso politicamente correto” [10].

E que o posicionamento do STF, guardião da Constituição Federal (e dos Direitos Fundamentais), é o de que o combate ao racismo não pode se dar simplesmente pelo cerceamento da liberdade de expressão, mas “analisa o contexto, a situação, a pragmática da linguagem a fim de evitar que se tenha essa apriorística e horizontal análise do discurso”.

Fato é que o racismo está fortemente presente na vida das pessoas negras de forma estrutural, com alcances sociocultural e individual, nas sociedades humanas. E que, diante do embate entre expressões culturais, tal como a caricatura, e o respeito à dignidade humana de tais pessoas, somos surpreendidos, quer por decisões a favor de um ou de outro, acerca dos limites entre ambos os direitos – a liberdade de expressão e a não discriminação.

Então, qual seria um possível caminho para aplicar uma justiça adequada? Consideramos que os princípios do “método restaurativo” tenham maior efetividade no tratamento de tais conflitos do que a mera justiça retributiva, uma vez que, para o primeiro, prevalecem o diálogo entre possível ofensor e possível vítima (direta e indiretamente), considerando a interdependência humana, em um ambiente de confiança, respeito e confidencialidade, permitindo a expressão dos sentimentos e dos valores dos envolvidos, em busca de ampliar a percepção das consequências das condutas do suposto ofensor, na construção de uma sociedade mais fraterna, dialógica e pacífica.

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Notas:

[1] Aqui, vale conferir texto nosso publicado no blog do IBDCult, que aborda o caso Júlio Cocielo e o racismo, disponível em: <https://www.ibdcult.org/post/di%C3%A1logo-e-afeto-para-bem-decidir-no-direito>.

[2] Disponível em: <https://www.lemonde.fr/societe/article/2024/10/31/un-album-de-spirou-retire-de-la-vente-pour-des-dessins-a-caractere-raciste-les-editions-dupuis-presentent-leurs-excuses_6369313_3224.html?lmd_medium=social&lmd_campaign=trf_edito_lmfr&lmd_source=whatsapp>.

[3] Disponível em: <https://www.europe1.fr/culture/cette-bd-spirou-est-retiree-des-librairies-pour-ces-dessins-a-caractere-raciste-4276131>.

[4] “Entre a negrofilia e a negrofobia: caricaturas dos anos 1920 em perspectiva transnacional”, disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbh/a/3q4kJSsFj9bhb3j6Nh4LSBD/abstract/?lang=pt>.

[5] Para melhor situar a questão, verificar debate no canal do youtube da France Télévisons, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=b4VPrYhBDYk>.

[6] Para compreender a associação com o macaco: “A discriminação racial partir da associação da pessoa humana ao macaco”, disponível em:

<https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/987/pdf>.

[7] Conferir “autoidentificação caricatural” apresentada pelo governo brasileiro em: “Olimpíada: Ministério do Esporte publica post racista com imagem de macaco em referência à delegação do Brasil”, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/olimpiada-ministerio-do-esporte-publica-post-racista-com-imagem-de-macaco-em-referencia-a-delegacao-do-brasil/

[8] Código da Propriedade Intelectual francês, disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000006069414/LEGISCTA000006114031/#LEGISCTA000006114031>.

[9] A Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos, órgão do Governo Francês, a partir de relatório publicado em 2022, indicando um “parâmetro de tolerância”, informa que a tolerância em relação às minorias tem evoluído; mas também que o racismo permanece subestimado na França. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/07/18/racismo-e-xenofobia-diminuem-na-franca-mas-preconceito-contra-ciganos-segue-alto-diz-relatorio.ghtml>.

[10] Decisão de 07 de julho de 2021, Processo Digital nº: 1095057-92.2018.8.26.0100, em sede de Ação Civil Pública Cível - Indenização por Dano Moral; Requerente: Ministério Público do Estado de São Paulo; Requerido: Julio César Pinto Cocielo; Juiz de Direito Dr. Caramuru Afonso Francisco, da 18ª Vara Cível da Comarca de São Paulo.

Sobre o autor
Marcus Pinto Aguiar

Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado. Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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