Nos últimos anos, a interpretação da obrigatoriedade de cobertura ilimitada de terapias por operadoras de planos de saúde para pacientes com Síndrome de Down tem sido pautada em julgamentos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e diretrizes emitidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A complexidade dos transtornos associados à Síndrome de Down, juntamente com a necessidade de tratamentos multidisciplinares e prolongados, resultou em um cenário onde o debate jurídico e normativo sobre a extensão da cobertura ganha cada vez mais importância. Este artigo tem como objetivo discutir as bases legais que sustentam a cobertura ilimitada, a aplicação das normas da ANS e o entendimento do STJ quanto ao direito desses pacientes ao tratamento adequado.
1. A Síndrome de Down e as Necessidades Terapêuticas
A Síndrome de Down é uma condição genética que resulta em várias manifestações de saúde, exigindo terapias multidisciplinares para o desenvolvimento e a manutenção da qualidade de vida do paciente. Pessoas com essa condição costumam necessitar de terapias de fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e fisioterapia, entre outras, que, quando adequadamente administradas, promovem melhora significativa no desenvolvimento físico e cognitivo.
Embora a Síndrome de Down não esteja classificada entre os “transtornos globais do desenvolvimento” (CID-10 F84), ela pode estar associada a dificuldades de desenvolvimento que tornam necessárias essas terapias. Essa especificidade impulsiona a necessidade de interpretação normativa e judicial para garantir acesso amplo a tratamentos, visto que o enquadramento na CID-10 F84 é um dos fatores tradicionalmente utilizados pelas operadoras de saúde para limitar a cobertura.
2. Posicionamento da ANS: Resolução Normativa 539/2022
Com a publicação da Resolução Normativa 539/2022, a ANS ampliou a cobertura para terapias destinadas a pacientes com transtornos globais do desenvolvimento (CID-10 F84). A resolução estabelece a obrigatoriedade de cobertura ilimitada de sessões, assegurando que pacientes com transtornos do espectro autista e outras condições semelhantes possam receber tratamento multidisciplinar sem limitações.
Embora a Síndrome de Down não esteja na classificação CID-10 F84, a ANS, em suas diretrizes, reconhece a necessidade de estender a cobertura também a esses pacientes, especialmente quando associados a algum transtorno global do desenvolvimento. A RN 539/2022 é, portanto, uma referência normativa que, por interpretação, também subsidia o direito de pacientes com Síndrome de Down a um atendimento adequado e integral, mesmo sem um enquadramento direto na CID-10 F84.
3. Entendimento do STJ sobre a Cobertura para Pacientes com Síndrome de Down
O Superior Tribunal de Justiça tem manifestado, de forma reiterada, que a recusa à cobertura de terapias prescritas para pacientes com condições que necessitam de tratamento contínuo, como a Síndrome de Down, caracteriza prática abusiva. Em julgados recentes, a Terceira Turma do STJ reafirmou a necessidade de cobertura ilimitada para terapias multidisciplinares quando prescritas por profissional especializado.
Em decisões como o AgInt no AREsp 2.543.020/SP (julgado em 24/06/2024), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o STJ consolidou o entendimento de que o fato de uma condição não estar na CID-10 F84 não desobriga o plano de saúde de arcar com o tratamento multidisciplinar e ilimitado, caso necessário para a saúde do beneficiário. Esse posicionamento se baseia na visão de que a negativa de cobertura contraria o princípio da função social dos contratos e a proteção ao consumidor, especialmente em relação à sua saúde.
Além disso, no REsp 2.049.092/RS (julgado em 11/04/2023), também relatado pela Ministra Nancy Andrighi, o STJ reafirmou que as operadoras de planos de saúde devem fornecer cobertura sem limitações para terapias prescritas a pacientes com Síndrome de Down, demonstrando a consolidação desse entendimento.
4. A Interpretação do Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O CDC estabelece diretrizes que visam proteger o consumidor contra práticas abusivas, o que inclui a recusa injustificada de coberturas que são essenciais para o tratamento de saúde do beneficiário. Os artigos 4º e 6º do CDC, que preveem o direito à saúde e à segurança dos consumidores, são frequentemente invocados nas decisões judiciais para garantir a cobertura plena de tratamentos prescritos por especialistas.
O artigo 51 do CDC também prevê que cláusulas que restringem direitos essenciais do consumidor, como a limitação de terapias para condições que exigem tratamento multidisciplinar, são nulas de pleno direito. Esse embasamento normativo reforça o direito de pacientes com Síndrome de Down a receber o tratamento necessário, mesmo que o plano de saúde argumente que a cobertura é limitada a um número específico de sessões.
5. Comparação com a Cobertura para Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA)
O entendimento consolidado pelo STJ nos casos de transtorno do espectro autista (TEA) tem servido como referência para os julgamentos relativos à Síndrome de Down. Pacientes com TEA também necessitam de terapias multidisciplinares e, em muitos casos, as operadoras tentam limitar o número de sessões. Contudo, o STJ tem decidido de maneira firme que essa limitação é abusiva e que a cobertura deve ser ilimitada, atendendo às prescrições do profissional de saúde.
A jurisprudência e as resoluções da ANS para o TEA têm sido aplicadas por analogia em casos de Síndrome de Down, com o entendimento de que as necessidades terapêuticas são semelhantes e devem ser garantidas em sua integralidade. A RN 539/2022 corrobora essa analogia ao estabelecer que a cobertura deve atender à integralidade das necessidades de desenvolvimento do beneficiário, o que, por interpretação, abrange casos de condições fora do CID-10 F84, mas que igualmente exigem tratamento contínuo.
6. Implicações Jurídicas e Práticas para as Operadoras de Planos de Saúde
As decisões do STJ e as normas da ANS impõem desafios significativos para as operadoras de planos de saúde, especialmente no que se refere ao controle dos custos de terapias prolongadas. Para os planos de saúde, a obrigação de cobertura ilimitada representa um compromisso financeiro adicional, mas, ao mesmo tempo, é uma medida que visa a proteção do consumidor e a função social do contrato.
As operadoras devem estar atentas às diretrizes normativas e jurisprudenciais para evitar condenações por práticas abusivas. A jurisprudência do STJ tem sido firme em penalizar as operadoras que recusam a cobertura de tratamentos essenciais, e os órgãos reguladores, como a ANS, têm reiterado a importância de se seguir as diretrizes de cobertura ilimitada em casos que envolvem transtornos globais do desenvolvimento e condições associadas.
7. Considerações Finais: A Defesa do Direito ao Tratamento Integral
O entendimento consolidado do STJ e as diretrizes da ANS representam uma importante vitória para os pacientes com Síndrome de Down e seus familiares, que encontram respaldo jurídico para assegurar o tratamento necessário para o desenvolvimento pleno e a qualidade de vida de seus entes queridos. A interpretação do CDC, somada à RN 539/2022, destaca a relevância da proteção ao consumidor em um setor tão sensível como o da saúde suplementar.
Para a comunidade jurídica, o entendimento de que o plano de saúde deve garantir cobertura ilimitada de terapias para pacientes com Síndrome de Down reforça a importância da advocacia em prol dos direitos dos consumidores e evidencia o papel do Judiciário em zelar pela saúde dos mais vulneráveis. A defesa desse direito é uma das formas de assegurar que os contratos de plano de saúde não se tornem um instrumento de exclusão, mas sim um meio de garantir o acesso justo e igualitário aos tratamentos essenciais.
As decisões do STJ devem continuar sendo monitoradas e analisadas, pois têm o potencial de influenciar outras áreas do direito à saúde e podem servir de base para futuras regulamentações que ampliem ainda mais os direitos dos beneficiários de planos de saúde. Em suma, a garantia da cobertura ilimitada para tratamentos prescritos a pacientes com Síndrome de Down representa um avanço significativo na proteção dos direitos do consumidor e na promoção da dignidade dos indivíduos em situação de vulnerabilidade.