É indene que a liberdade de expressão é um dos pilares dos regimes aos quais se pode associar a ideia de democracia. Carlos de Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, foi preciso ao entronizar- na máxima que se coloca como título- a liberdade de expressão como o princípio de mais valia decorrente da ideia de liberdade. Sob análise perfunctória, conveniente é a conclusão de que esse tema está ultrapassado, de que isso era problema realmente relevante nos sombrios tempos de Inquisição, de Fascismo e de Ditadura Militar, por exemplo.
Enganam-se, porém, aqueles cujo pensamento reside na ideia de que a temática respeitante à liberdade de expressão é pacífica; este pensamento, ainda, traz conclusões intuitivas, comezinhas e, por decorrência lógica, inverossímeis. Nas democracias mais relevantes do mundo, acirram-se ódios e paixões quando se trata de tal questão, mormente a extensão do condão que ela tem de agasalhar e garantir o direito de manifestação de determinados grupos. Uns argumentam que ela salvaguarda o pleno exercício do direito de expressar as ideias mais torpes, cediças e licenciosas com as quais a humanidade, infelizmente, já teve (algumas ainda tem) de conviver (como o racismo e os ideais nazistas), ao passo que, para outros, balizas devem ser precisamente concatenadas. A discussão, em síntese, diz respeito à possibilidade de limitar ou não da liberdade de expressão. As duas vertentes que disputam o tema, contudo, para exasperar sua complexidade, têm, como perspectiva fundamental, a própria liberdade.
Pela profundidade, pela relevância e pela legitimidade de algumas linhas argumentativas dos dois lados desse cabo de guerra, o tema insta reflexão matizada que prestigie todos os meandros desse debate e que consiga, pelo menos, nortear uma perspectiva sobre o exercício da liberdade de expressão- sempre, é premente ressaltar, desvinculado de qualquer tipo de tentativa de encastelar e fazer exsurgir uma conclusão absoluta e imutável que interdite a discussão, mas sim guiado pelo desejo de contribuir para o debate.
Nesse sentido, é necessário o olhar ao passado que ajudou a construir a noção- compartilhada pelos dois lados da discussão- de que a liberdade de expressão é direito fundamental. Como ensina Daniel Sarmento1:
A liberdade de expressão é peça essencial em qualquer regime constitucional que se pretenda democrático. Ela permite que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias, em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar, seja para exprimir seus pontos de vista, seja para ouvir os expostos por seus pares.
Como a pessoa humana- mais precisamente os direitos fundamentais dela- é, verdadeiramente, o pano de fundo dessa discussão, haja vista que a ideia de liberdade é a mais importante e intuitiva forma que o indivíduo tem à disposição para exercer sua subjetividade e, logo, sua dignidade, necessita-se, por mais resumidamente que aqui se faça, refletir sobre quais noções colmataram o terreno que deu origem à ideia da dignidade da pessoa humana.
Desassociar a construção dessa noção da religiosidade, sob o argumento de que a Igreja contribuiu para muito derramamento de sangue humano durante os séculos, desvela, em verdade, olhar pouco acurado. Apesar disso, os primeiros discursos que entoavam pela valorização da subjetividade do homem foram concebidos por pessoas que estavam solidamente associadas à Igreja. Giovanni Pico dela Mirandola é, por exemplo, um desses nomes. Na sua obra “Discurso pela Dignidade do Homem”, consegue-se perceber a devoção de Pico pela figura divina e, por conseguinte, pelo fato de termos sido criados por Deus, ao homem:
§ 4. Deus um arquiteto sem arquétipos
10. Logo, o supremo Deus, Mestre arquiteto de tudo que jaz no mundo, o venerável templo da divindade, o construiu com leis da arcana Sapiência.
12. Mas, finda a obra, o Artífice desejou apreciar a razão de tanto trabalho, alguém que pudesse amar a sua beleza de toda a creação e admirar a sua grandeza.
Somos tão veneráveis quanto Deus, afinal, somos criação tão única, especial e valiosa que Ele nos concedeu a capacidade de autodefinição (exatamente a noção de liberdade):
20. Tu, não submetido a quaisquer limites, só mercê do arbítrio que em tuas mãos coloquei, definas a ti próprio.
Do ser fruto unicamente do pecado, o homem passou a ser digno de admiração e contemplação, uma vez que feito à imagem e semelhança de Deus. Muito representativo dessa assemelhação e proximidade homem-Deus é o quadro “A Criação”, do genial Michelangelo, no qual homem e Deus quase se tocam.
O protraimento do tempo serviu exatamente para secularizar isso; desassociar a concepção do homem digno de delibar o que Deus lhe possibilitou do pensamento centralmente religioso. Os diversos eventos históricos que nos sobrevieram ajudaram a consolidar isso- dentre eles, a desassociação do Estado à Igreja; as revoluções liberais e os princípios delas que até hoje vigoram; os movimentos no início do século XX, a Revolução Russa, mormente; e a derrota dos regimes autocráticos da primeira metade do mesmo século. Em suma, a concepção do homem ligado inextrincavelmente a uma série de prerrogativas fundamentais- por ser expressão única da vontade do Divino-, ao ser positivada, deu espaço à perspectiva de que há direitos inerentes à condição de humano e, assim, inalienáveis. E a ideia de liberdade seria exatamente a corifeia desses direitos inalienáveis.
O ponto crucial do debate sobre a liberdade de expressão é justamente esse: se a liberdade- no sentido amplo-, por ser pedra angular desses direitos inafastáveis da condição humana, pode ou não ser limitada. Diversos autores dedicaram-se à temática. Dentre esses, cabe aqui destacar Karl Popper, cujas ideias são solidamente concatenadas.
Popper2, na sua obra “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, define o que seria o célebre paradoxo da tolerância:
A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemos-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, ao começar por criticar todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos ou pistolas. Devemos-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa, da mesma forma que no caso de incitação ao homicídio, sequestro ou tráfico de escravos.
A tolerância- que seria critério para a liberdade-, nesses termos, salvaguarda o que não a solape; caso contrário, ela estaria avalizando seu fim. Pertinentes são as observações de Popper, uma vez que, para ele, lutar contra certos pensamentos não constituiria atentado à “sociedade aberta”, mas sim um mecanismo de autodefesa.
Difícil, há de se concordar, porém, é o estabelecimento de critérios idôneos utilizados para mensurar a intolerância de determinado pensamento, pois o que falamos tem interferência direta naquilo que não nos compete- qual seja, o outro. E é exatamente nisso que reside a dificuldade: como, incontestavelmente, dizer que certos pensamentos e falas transpassam a barreira da tolerância, que não estão associados ao exercício da liberdade e, portanto, merecem ser combatidos? A própria ciência da neurolinguística, que explora a forma de processamento da informação, de interpretação do que se expõe e da reprodução disso (a fala), vaticina que, muitas vezes, podemos, por exemplo, expressar o que não pretendemos.
Com efeito, pode-se mencionar, também, a ideia do véu da ignorância, compartilhada por diversos pensadores ao longo dos séculos (Kant, Locke, Hobbes, Rousseau e Rawls, por exemplo), como parâmetro que possa vir a perfazer a aplicação prática do conceito de Popper, sempre visando à indenidade do compromisso com uma sociedade plural, justa, respeitosa e inclusiva.
Noutra senda, a defesa da impossibilidade de limitação da liberdade de expressão tem como “cláusula geral” a célebre frase que Evelyn Beatrice Hall, na tentativa de resumir os pensamentos de Voltaire, construiu: “Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte teu direito de dizê-lo”. A interpretação superficial dessa máxima, em verdade, pode até denotar empatia ou reconhecimento à importância do contraditório na construção de um pensamento; contudo, uma vez que o tema é demasiadamente caro à sociedade que se pretende constituir, superficialidades devem ser rejeitadas.
Na vida em sociedade, pela simples- e lógica- percepção de que ela é compartilhada, não existe direito ou prerrogativa que seja objetivamente absoluto(a). Isso deriva da compreensão de que há algo maior que a volição individual, que é a coletividade. Rousseau3, em “O Contrato Social”, ao conceituar a passagem do ‘estado natural’- em que a força e a vontade individual prevaleciam- ao ‘estado civil’, destrincha:
Essa passagem do estado natural ao estado civil, produzindo homem uma mudança considerável, substituindo em sua conduta a justiça ao instinto, imprimindo a suas ações a moralidade que lhe faltava anteriormente. Foi somente então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e o direito ao apetite, fizeram com que o homem, que até esse momento só tinha olhado para si mesmo, se visse forçado agir por meio de outros princípios e a consultar a razão antes de seguir seus pendores.
Embora se prive, nesse estado, de diversas vantagens recebidas da natureza, ganha outras tão grandes, suas faculdades se exercitam e desenvolvem, suas ideias que ampliam, seus sentimentos se enobrecem, toda sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não degradassem com frequência a uma condição inferior àquela de que saiu, deveria abençoar incessantemente o ditoso momento em que foi desarraigado disso para sempre e que, de um animal estúpido e limitado, fez dele ser inteligente e um homem.
No ‘estado civil’, o homem passa a albergar uma moralidade- decorrente do exercício das faculdades- no seu vivar; e essa moralidade, a partir dessa virada, erige-se como fundamental ao convívio social, em moldes diversos- e essencialmente opostos- daquela vivência no ‘estado natural’ em que a força- per si, ilegítima- predominava.
Ainda, a “lógica voltairiana”, levada a cabo, vai de encontro à própria noção de Direito enquanto técnica que visa à elaboração de regras para trazer, por mais aberta que seja, ordem à sociedade que o constitui: se se pode dizer tudo, e se qualquer tentativa de limitação afronta a liberdade do falar, para quê o dispendioso trabalho de criar regras?
É preciso, nessa toada, trazer à baila exemplos que clarifiquem o que essa exasperação da liberdade poderia salvaguardar. Imagina-se judeus convivendo com nazistas, mulheres com misóginos, negros com racistas? Ainda que isso, por força da dicotomia formal-material- que demanda esforços de toda a sociedade para ser superada-, subsista, não se pode vislumbrar racionalidade nem moralidade em avalizar- por meio das regras (o Direito) que se cria- convivências que dão guarida à opressão no sentido mais puro da palavra. Ressalte-se, também, que não é qualquer tipo de limitação, como já se aludiu, que pode descambar sobre a liberdade de expressão: por ser tão valiosa à sociedade que se almeja, as limitações têm de ser precisas.
Ex positis, a liberdade de expressão, por derivar da dignidade da pessoa humana, principal desdobramento da secularização da admiração ao homem enquanto manifestação única e perfeita de Deus no mundo material, demanda tratamento que não agrilhoe demasiadamente o falante (impedindo-o de falar) nem o ouvinte (fazendo-o suportar consequências do que a seu respeito é dito). Embora seja necessário algum tipo de freio, a única via que, implacavelmente, tratará esse conflito da forma mais holística possível é o debate fortemente comprometido com o progresso e com o desenvolvimento da sociedade, e não com as posições que melhor aprouverem a quem fala, afinal, o compromisso com o outro exige que a existência dele seja reconhecida. Como tudo na vida: ao mar se morre afogado e à terra se morre de sede. Contudo, em face das limitações existentes- desejo e a necessidade do primado da coexistência, portanto, avesso à permissão de convivências inegavelmente perniciosas-, parece que viver na terra e, oportunamente, ir à praia, é mais auspicioso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1SARMENTO. Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Disponível em:
http://professor.pucgoias.edu.br/sitedocente/admin/arquivosUpload/4888/material/a- liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf
2POPPER. Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos
3ROUSSEAU. Jean-Jacques. O Contrato Social