O colete do suicídio

15/11/2024 às 17:17
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Treze anos depois que o ChatGPT foi apresentado ao mundo, conquistando os corações e mentes dos usuários de internet e captando rapidamente somas impressionantes de investimento, todo um novo ecossistema econômico surgiu. Fazendas de computadores brotaram do chão como se fossem cogumelos, expandindo e modernizando a indústria de microchips e de computadores.

Nem mesmo o estouro da bolha financeira criada em torno do ChatGPT e seus concorrentes foi capaz de abortar ou interromper a quarta revolução industrial. As Inteligências Artificiais vieram para ficar. Elas invadiram todos os ramos da atividade humana provocando um ciclo virtuoso na indústria de robôs e de próteses. A tecnologia empoderava exoesqueletos que aumentavam a força e a produtividade de operários e aumentava a eficiência e segurança dos sistemas de justiça dos países mais desenvolvidas.

Entretanto, não muito distante do mundo tecnologicamente excitante que estava sendo criado um inferno começou a surgir. A jogatina e a indústria pornográfica não demoraram a se reinventar com base na nova tecnologia, armamentos autônomos empoderados por IA se tornaram um pesadelo para os países ricos à medida que se tornaram mais baratos, miniaturizados e letais. A espionagem não era mais uma exceção e estava ao alcance de agências estatais, corporações privadas e do crime organizado. A exploração de grupos populacionais vulneráveis se tornou uma triste realidade.

Foi nesse contexto que o colete do suicídio foi inventado e patenteado. A primeira versão do produto era baseada nas próteses e exoesqueletos industriais e funcionava com uma IA rudimentar. Colocado na vítima previamente sedada, quando era ligado o colete do suicídio automaticamente levava a mão com a arma de fogo até a têmpora dela e pressionava o gatilho. A cena do suicídio era então abandonada após o colete ser removido pelo agente secreto.

Esse produto foi criado para resolver na segunda guerra fria um dos maiores problemas que existia durante a primeira guerra fria. Na URSS os dissidentes podiam ser e eram abatidos a tiros de Makarov pelos agentes da KGB. Mas nos EUA os indesejados, especialmente se fossem diplomatas, militares, políticos, artistas famosos e agentes de segurança não podiam ser simplesmente assassinados sem despertar suspeitas e levar à realização de Inquérito Policiais incontroláveis que poderiam apontar os responsáveis. Essa foi a razão pela qual a CIA optou pelas overdoses, que se tornaram mais comuns em virtude da popularização do uso de drogas. Todavia, se a vítima não fosse usuária de drogas essa técnica de suicídio forçado não podia ser utilizada. Colocar a arma na mão de uma pessoa e dispará-la para encenar um suicídio não era tarefa fácil se ela estivesse desperta e isso se tornava impossível se a vítima estivesse sedada. Mas isso era coisa do passado.

A quarta revolução industrial levou naturalmente ao desenvolvimento do colete do suicídio, um equipamento eficiente cujo desenvolvimento foi possibilitado por empregos lícitos da robótica, de algoritmos e do aprendizado de máquina. Versões mais modernas do produto rapidamente surgiram, foram treinadas e colocadas em uso. Uma delas, muito popular nos EUA e na Inglaterra, era capaz de fazer a vítima escrever uma nota curta de suicídio antes dele ser comedido com auxílio do equipamento. Bastava o agente mostrar algo escrito manualmente pela vítima à câmera acoplada ao colete do suicídio e posicionar a pessoa sentada em frente a uma mesa com papel e caneta. Nem mesmo o mais experiente cientista forense empregando tecnologias modernas poderia afirmar, com certeza absoluta, que um suicídio forçado não poderia ter sido cometido voluntariamente pela vítima. E isso era o bastante para garantir segurança aos agentes secretos encarregados de eliminar inimigos do Estado e pessoas consideradas perigosas.

A princípio, as listas dessas pessoas eram feitas de maneira cuidadosa e os alvos eram escolhidos após uma investigação meticulosa. Mas com o tempo até mesmo isso foi automatizado. Uma IA vasculhava o oceano de dados, invadia computadores e telefones pessoais e após um cálculo probabilístico cuspia a lista de pessoas que deveriam ser assassinadas de acordo com uma ordem. Os agentes só precisavam estudar a melhor oportunidade para pegar a vítima sozinha a fim de vestir o colete do suicídio dela e voilà...

Mas então algo imprevisível aconteceu. Um hacker descobriu por acaso que áudios, vídeos e dados geolocalização gerados em segredo pelos coletes de suicídio estavam sendo coletados, transmitidos pela Internet e armazenados em segredo no servidor da empresa que fabricava o produto e o fornecia às agências estatais de segurança e de espionagem. Esse dispositivo de última segurança havia sido criado para o caso de o Estado ter que lidar com a rebeldia de algum agente que decidiu usar de maneira não autorizada o colete de suicídio ou para silenciar e comprometer os próprios agentes caso eles começassem a tentar obter vantagens indevidas ou vazar informações de operações realizadas.

O escândalo dos coletes de suicídio foi imenso. Desde que Edward Snowden havia revelado a conspiração da NSA para espionar todo mundo o tempo todo em todos os lugares nada parecido havia acontecido. O hacker se tornou uma celebridade após sua campanha em favor da abolição do uso daquele produto ser bem-sucedida. Mas a vida dele foi tragicamente abreviada por uma overdose.

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A empresa que fabricava e comercializava o produto nos EUA foi fechada. Banidos e destruídos, os coletes do suicídio se tornaram uma lenda urbana. Dizem que alguns deles continuam sendo usados ilegalmente, mas ninguém pode confirmar ou negar essa informação.  

No Brasil os suicídios mais ou menos forçados começaram a ocorrer dez anos atrás, quando um certo capitão boquirroto inelegível se tornou líder de um culto exotérico político de extrema direita aplaudido ou tolerado pela imprensa e ferozmente espalhado na internet com ajuda de bots. Dizem que em novembro de 2024 um membro da seita dele, um sujeito introvertido com autoestima baixa, problemas cognitivos e borderline, foi levado a explodir seu carro nas imediações da Suprema Corte. Talvez isso seja mentira, não sei. Na verdade a história brasileira não me interessa. A única coisa que aprendi sobre aquele país asiático é que ele faz fronteira com o Irã e a China. Mas me parece evidente que aquele pobre coitado também foi obrigado a vestir um colete do suicídio virtual parecido com aquele que felizmente foi proibido nos EUA recentemente.  

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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