A (i)legalidade da autolavagem de dinheiro no Brasil

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17/11/2024 às 12:02
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A (I)LEGALIDADE DA AUTOLAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL

RESUMO

Os crimes de lavagem de dinheiro vêm recebendo a cada dia maior atenção de juristas e aplicadores do Direito. O avanço exponencial da tecnologia e a abertura dos mercados facilitam a ocultação e a dissimulação de bens, direitos e valores obtidos pelo cometimento infrações penais. É nesse contexto que diversas iniciativas internacionais vêm sendo adotadas e, no mesmo passo, legislações internas dos Estados vêm sendo elaboradas. No Brasil, foi editada em 1998 a Lei nº 9.613, que passou a criminalizar as condutas caracterizadoras da lavagem de dinheiro. A possibilidade de o autor do crime antecedente ser punido autonomamente pela lavagem de dinheiro, conduta conhecida como autolavagem de dinheiro, é objeto de calorosas discussões. O presente estudo aborda as principais teses doutrinárias, além de importantes e recentes decisões dos tribunais superiores brasileiros sobre o tema.

PALAVRAS CHAVE: crimes econômicos, lavagem de dinheiro, autolavagem.

ABSTRACT

The crimes of money laundering is receiving more and more attention from jurists and law enforcers. The exponential advancement of technology and the opening of markets facilitate the layering and dissimulation of assets, rights and values ​​obtained by committing criminal offenses. It is in this context that several international initiatives have been adopted and, at the same time, internal legislation of the States has been elaborated. In Brazil, Law No. 9,613 was enacted in 1998, which criminalized conduct that characterizes money laundering. The possibility of the perpetrator of the antecedent crime being punished autonomously for money laundering, a conduct known as self-money laundering, is the subject of heated discussions. The present study addresses the main doctrinal theses, as well as important and recent decisions of the Brazilian superior courts on the subject.

KEYWORDS: economic crimes, money laundering, self-laundering.

INTRODUÇÃO

Com o passar do tempo, os estudiosos, legisladores e aplicadores do direito penal deixaram de tratar exclusivamente de crimes violentos, também chamados de crimes de sangue, e passaram a voltar os olhos aos crimes econômicos.

Enquanto em um homicídio uma vida é ceifada, incontáveis vidas podem ser rebaixadas à miséria ou, do mesmo modo, ceifadas, em decorrência do desvio criminoso de verbas públicas destinadas, por exemplo, à construção de hospitais, à compra de merenda escolar ou de remédios para pessoas de baixa renda.

O exponencial avanço tecnológico, a abertura dos mercados e a expansão vertiginosa do acesso à internet facilitaram o cometimento de crimes econômicos, expandido, da mesma forma, os seus efeitos deletérios.

Nesse contexto, convenções internacionais foram elaboradas e leis internas promulgadas, inclusive no âmbito criminal, para a proteção dos bens jurídicos direta ou indiretamente lesionados.

Em 1998, foi promulgada no Brasil a Lei nº 9.613/1998, que passou a tipificar a ocultação e dissimulação de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, condutas também denominadas de lavagem de dinheiro.

Um dos aspectos mais debatidos, nacional e internacionalmente, acerca da lavagem de dinheiro, é a possibilidade de se punir os autores dos crimes antecedentes, de forma autônoma, também pelos crimes de lavagem de dinheiro, conduta que passou a ser chamada de autolavagem de dinheiro.

Parte dos estudiosos e aplicadores do direito pregam a legalidade da punição, com a justificativa de não haver coincidência dos bens jurídicos tutelados entre os crimes antecedentes e os crimes de lavagem de dinheiro. Sustentam, ainda, não haver óbices legais à dupla punição.

Por outro lado, há quem defenda a ilegalidade da responsabilização criminal dos autores dos crimes antecedentes pelo posterior crimes de lavagem dos bens, direitos e valores criminosamente obtidos. Para estes, o bem jurídico tutelado pelos crimes de lavagem de dinheiro é o mesmo do crime antecedente. Em outras palavras, aquele que “lava” o dinheiro que obteve mediante conduta criminosa estaria aprofundando a lesão ao mesmo bem jurídico e, dessa forma, sua punição pelos crimes de lavagem configuraria bis in idem, vedado pela legislação brasileira. Argumentam, ainda, que a punição pelo posterior crimes de lavagem de dinheiro dependeria, necessariamente, de previsão expressa nesse sentido, o que não é o caso da Lei nº 9.613/1998.

No presente estudo será abordada a proteção de bens jurídicos como finalidade do Direito Penal, apresentada a definição e breve histórico da evolução legislativa sobre os crimes de lavagem de dinheiro, passando pelas importantes convenções das Nações Unidas, contra o crime organizado transnacional (Convenção de Palermo) e contra a corrupção (Convenção de Palermo) e, no âmbito nacional, pela Lei nº 9.613/1998, com suas posteriores alterações. Em seguida, será abordada a polêmica definição acerca do bem jurídico tutelado pelos crimes previstos na Lei nº 9.613/1998 e, por fim, a legalidade ou não da autolavagem de dinheiro no Brasil.

1. Direito Penal e proteção de bens jurídicos

Conforme sólido entendimento doutrinário, ao Direito Penal cabe a proteção aos bens jurídicos mais caros à sociedade. Segundo ROXIN, “as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos”. Para tanto, explica o jurista alemão que se deve garantir condições individuais (como a vida) e instituições estatais adequadas (como a administração da justiça), objetos de proteção por ele denominados de bens jurídicos.1 ROXIN conclui o seu raciocínio “a proteção de bens jurídicos não só governa a tarefa político-criminal do Direito penal, mas também a sistemática da teoria do injusto”2.

Conforme explica EISELE, “um bem é um objeto apto a satisfazer uma necessidade humana”. E continua o autor: “o bem jurídico é um bem socialmente valorado (em relação ao qual pode estabelecer-se um interesse), que é objeto de regulamentação jurídica e fundamenta uma norma de conduta”. 3

Assim, temos que bem jurídico é aquele regulamentado pelo direito e, a depender de sua natureza e grau de importância ao ser humano, merecerá maior ou exclusiva atenção por dado ramo do direito.

Considerando o alto grau de intervenção do Direito Penal na vida das pessoas, deixando, por vezes, marcas e estigmas indeléveis em suas vidas públicas e privadas, sua aplicação pelo Estado, a fim de se garantir o controle social, se dá de forma excepcional. Nessa toada, aplica-se ao Direito Penal os princípios da fragmentariedade e subsidiariedade. Pelo primeiro, entende-se que apenas a lesão aos bens jurídicos mais importantes para a pessoa humana será tratada pelo Direito Penal. Pelo segundo, entende-se que para atuação do Direito Penal, não basta a lesão a bem jurídicos de primeira ordem, mas que os demais ramos do direito, menos invasivos e intervencionistas, não tenham sido suficientes para o seu controle.

É inegável que os bens jurídicos tradicionalmente protegidos pelo Direito Penal são aqueles cuja lesão alcança mais direta e individualmente às pessoas, tais como a vida, a integridade física, o patrimônio e a dignidade sexual.

Ocorre que, com o passar dos anos, os vínculos intersubjetivos deixaram de se verificar apenas em um âmbito local ou regional. Com a globalização, a abertura dos mercados o avanço da tecnologia e, mais modernamente, a inteligência artificial, as relações humanas atravessam as fronteiras.

Nesse sentido, ensina BAUMAN que vivemos na “modernidade líquida”, sendo a fluidez, associada à ideia de leveza, a principal metáfora para o estágio presente da era moderna, diante de sua extraordinária mobilidade. De acordo com o sociólogo polonês, “em seu estágio pesado, o capital estava tão fixado ao solo quanto os trabalhadores que empregava. Hoje o capital viaja leve – apenas com a bagagem de mão”4.

Ainda de acordo com BAUMAN, na modernidade liquida, o vínculo entre Estado e nação foi enfraquecido. Para ele:

O Estado pode não esperar muito do potencial mobilizador da nação de que ele precisa cada vez menos, à medida que os massivos exércitos de conscritos, reunidos pelo frenesi patriótico febrilmente estimulado, são substituídos pelas unidades high-tech elitistas, secas e profissionais, enquanto a riqueza do país é medida, não tanto pela qualidade, quantidade e moral de sua força de trabalho, quanto pela atração que o país exerce sobre as forças friamente mercenárias do capital global.5

Essa fluidez trabalhada por BAUMAN não se limita à área econômica, mas a todas as relações humanas, como aquelas que dizem respeito ao círculo comunitário das pessoas. É nesse sentido que ele discorre sobre a comunidade, no sentido de um lugar confortável e aconchegante, mas fora de nosso alcance:

A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida. (...) Pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertar-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e arriscadas, serão desapontadas. A paz de espírito, se alcançarem, será do tipo “até segunda ordem”.6

BECK, por sua vez, denomina o atual contexto histórico como “modernidade tardia”, onde a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. De acordo com o sociólogo alemão, “a reboque das forças produtivas exponencialmente crescentes no processo de modernização, são desencadeados riscos e potenciais de autoameaça numa medida até então desconhecida”7.

É nesse contexto da modernidade líquida de BAUMAN, ou da modernidade tardia de BECK, que novas condutas e novos bens jurídicos passaram a merecer a atenção do Direito Penal. Algumas dessas novas condutas, consistentes em ocultar ou incorporar na economia bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, originaram em nosso país a Lei nº 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências.

2. Crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores

2.1. Breve escorço histórico

Não há na doutrina informações precisas sobre a origem do termo lavagem de dinheiro. Segundo FERNANDES, há quem atribua a origem do termo às atividades levadas a cabo por Al Capone, em 1928, que comprara uma rede de lavanderias para lavar dinheiro oriundo do tráfico de bebidas, cuja venda era proibida à época, durante a vigência da “lei seca” americana. Segundo o autor, o termo foi consolidado na década de 1970, com o caso de corrupção americano conhecido como Watergate8.

No final dos anos 1980, o tema recebeu ainda maior atenção, diante do grande poder de organização e articulação demonstrado por organizações criminosas, notadamente àquelas voltadas ao tráfico de drogas.9

No âmbito internacional, alguns tratados internacionais trataram do assunto, merecendo destaque:

  1. a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, conhecida como Convenção de Viena, que determina, em seu Artigo 3, que cada um dos Estados Partes caracterizará como delito, dentre outras condutas: I) a conversão ou a transferência de bens, com conhecimento de que tais bens são procedentes do tráfico ilícito de drogas, com o objetivo de ocultar ou encobrir a origem ilícita dos bens, ou de ajudar a qualquer pessoa que participe na prática do delito ou delitos em questão, para fugir das consequências jurídicas de seus atos e II) a ocultação ou o encobrimento, da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens, sabendo que procedem do tráfico ilícito de drogas e, em seu Artigo 5, o confisco do produto derivado dos delitos nela estabelecidos;

  2. a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, de 2000, conhecida como Convenção de Palermo, que prevê em seu Artigo 6, a criminalização da lavagem do produto do crime pelos Estados Partes, e

  3. a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada em 2003, conhecida como Convenção de Mérida, que prevê, em seu Artigo 14, medidas para prevenir a lavagem de dinheiro e, em seu Artigo 23, a criminalização do produto do delito pelos Estados Partes.

Ainda no âmbito internacional, em 1989, foi criado o Financial Action Task Force (FATF) ou Grupo de Ação Financeira (GAFI), uma entidade intergovernamental, cuja função é “definir padrões e promover a efetiva implementação de medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e o financiamento da proliferação, além de outras ameaças à integridade do sistema financeiro internacional relacionadas a esses crimes”10.

Em 1990, o GAFI criou 40 recomendações que países devem adotar para, dentre outros objetivos, combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa.

Em 2001, 8 (posteriormente expandidas para 9) recomendações especiais sobre financiamento do terrorismo foram aprovadas. Após uma segunda revisão em 2003, as recomendações foram reconhecidas como padrão internacional antilavagem de dinheiro e de combate ao financiamento do terrorismo (ALD/CFT).

No ordenamento jurídico interno brasileiro, a lavagem de dinheiro foi disciplinada em 1998, pela Lei nº 9.613, que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. A lei foi objeto de alterações posteriores, merecendo destaque aquela promovida em seu artigo 1º pela Lei nº 12.683/2012, deixando de prever rol taxativo de crimes antecedentes, ampliando assim, o âmbito de incidência da norma.

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2.2. Crimes previstos na Lei nº 9.613/1998

Os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores estão previstos no artigo 1º, caput e parágrafos 1º e 2º, da Lei 9.613/1998, alterados pela lei nº 12.683/2012:

CAPÍTULO I

Dos Crimes de "Lavagem" ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

§ 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - os converte em ativos lícitos;

II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.

§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal; (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.

Conforme se depreende da leitura e análise do texto legal, o artigo 1º da Lei nº 9.613/1998 prevê diferentes comportamentos típicos, que coadunam com a doutrinária classificação das fases da lavagem de dinheiro, estudada em tópico mais à frente. Com efeito, o caput trata genericamente da ocultação e da dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. No parágrafo primeiro encontram-se o uso de meios para a ocultação e/ou dissimulação. O parágrafo segundo estampa duas distintas condutas, quais sejam, o uso de bens, direitos ou valores na atividade econômica ou financeira e a participação em grupo, associação ou escritório cuja atividade principal ou indireta seja a prática de crimes de lavagem.11

2.3. Fatores facilitadores

A progressiva ampliação do combate à lavagem de dinheiro visa a acompanhar a evolução da sociedade e, por conseguinte, as novas possibilidades de seu cometimento.

RODRIGUES explica que as democratizações tecnológica, financeira e da informação são facilitadoras à lavagem de dinheiro. De acordo com a professora da Universidade de Coimbra, o desenvolvimento exponencial da tecnologia, a abertura dos mercados e o amplo acesso à internet propiciam que as técnicas de lavagem possam estar muito mais facilitadas e ao alcance de qualquer um.12

Essas democratizações vão ao encontro das já citadas teorias da modernidade líquida e da sociedade de risco. Com efeito, a atual facilidade de se abrir contas em instituições bancárias, corretoras de valores e de moedas digitais, em qualquer lugar do mundo e quase sempre à distância, por meio de conexões de internet cada vez mais rápidas e acessíveis, traduz não só praticidade às pessoas bem intencionadas, como uma grande oportunidade para a prática de condutas espúrias, às pessoas que diuturnamente se especializam em cometer fraudes, as quais muitas vezes se utilizam do anonimato e de subterfúgios que dificultam suas localizações e identificações.

2.4. Fases da lavagem de dinheiro

De acordo com a doutrina amplamente majoritária, a lavagem de dinheiro se dá em três fases ou estágios. São eles: I) colocação (placement): aplicação do dinheiro espúrio diretamente no sistema financeiro ou sua transferência para outro local; II) ocultação (layering): a dissociação do dinheiro de sua origem, por meio de diversas transações e III) integração (integration): a aplicação do dinheiro lavado na economia legítima, dando a ele a aparência de lícito.13

BADARÓ e BOTTINI pontuam quem “nem sempre os contornos de cada uma dessas fases podem ser reconhecidos de forma precisa, sendo, na prática, comum a sobreposição entre as etapas, e difícil a identificação do término de uma e o início de outra”14.

Os mesmos autores citam ainda exemplos de condutas que se enquadrariam em cada uma das fases, às quais dão outras denominações, tais como: depósito dos valores obtidos criminosamente em contas de terceiros, de forma fragmentada (ocultação); uso de contratos ou notas falsas de prestações de serviços ou de compras inexistentes (dissimulação) e transações de importação/exportação simuladas, com preços excedentes ou subfaturados (integração).15

A legislação brasileira não exige a execução das três fases para a consumação do crime, bastando a mera colocação ou ocultação, desde que com a intenção de dar aspecto lícito ao dinheiro “sujo”, ou, ainda, tão somente a efetiva integração/utilização do dinheiro lavado.

2.5. Bem jurídico tutelado pelos crimes de lavagem de direito

Conforme já explanado, cabe ao Direito Penal a proteção de bens jurídicos, ou seja, aqueles socialmente valorados e juridicamente regulados.

Ocorre que, a definição do bem jurídico protegido pelos tipos penais previstos no artigo 1ºda Lei nº 9.613/1998 é objeto de grande polêmica e discussão.

Com efeito, parte dos juristas defende que o bem jurídico protegido é a administração da justiça. Uma segunda corrente defende que o que se protege é a ordem econômica. Por fim, há quem defenda que se tratar de crimes pluriofensivos, ou seja, que afrontam mais de um bem jurídico.

De acordo com o escólio de BADARÓ e BOTTINI, os crimes de lavagem de dinheiro buscam tutelar a administração da justiça. Os juristas defendem que as condutas previstas típicas não visam ou têm como resultado a turbação da economia, mas sim o encobrimento do produto do crime.

Exemplificam explanando que, caso valores oriundos de prática criminosa sejam depositados em conta de terceiros e, depois, utilizados para a aquisição de um barco, pelo preço de mercado e em condições idênticas à aquisição com recursos lícitos, a ordem econômica não será afetada. Mas, ainda assim, haverá lavagem de dinheiro. Isso porque o objeto jurídico dos crimes de lavagem é o rastreamento do produto do crime.16

Sob a perspectiva político criminal, os autores criticam a opção do legislador de criminalizar a lavagem de dinheiro para proteger a administração da justiça,. De acordo com eles:

A ideia da norma nacional, bem como das diretivas internacionais sobre o tema, é usar o direito penal para suprir a incapacidade do Estado de rastrear o produto do crime antecedente. Espiritualizou-se o bem jurídico, que se afasta de seu referencial antropocêntrico e passa a abrigar meras funcionalidades sistêmicas, protegendo não mais o homem e sua capacidade de desenvolvimento livre, mas a estrutura judicial e policial.17

Já BRASILEIRO afirma prevalecer na doutrina pátria a tese de que o objeto jurídico dos crimes em estudo seria a ordem econômico-financeira. De acordo com o processualista:

Funciona a lavagem como obstáculo à atração de capital estrangeiro, afetando o equilíbrio do mercado, a livre concorrência, as relações de consumo, a transparência, o acúmulo e o reinvestimento de capital sem lastro em atividades produtivas ou financeiras lícitas, turbando o funcionamento da economia formal e o equilíbrio entre seus operadores.18

No mesmo sentido é o entendimento de CUNHA, PINTO e SOUZA, a quem parece “evidente que a primordial intenção do legislador com a criação do tipo penal de lavagem de dinheiro foi justamente proteger a ordem socioeconômica, nitidamente abalada com a prática de tal espécie delituosa”.19

MENDRONI integra a corrente que entende pela pluriofensividade dos tipos penais de lavagem de dinheiro. Com efeito, o autor defende que a melhor interpretação seria a de que aqueles crimes ofendem, ao mesmo tempo, a administração da justiça e a ordem socioeconômica. Explica que as razões de política criminal que levaram à criminalização da lavagem de dinheiro foram, de um lado, a de se garantir a eficiência na apuração e punição das infrações penais e, de outro, se garantir a ordem socioeconômico, evitanda a concorrência desleal, a formação de cartel, dentre outros crimes econômicos que levariam à derrocada as empresas que não contam com dinheiro ilícito em seu capital.20

TAVARES e MARTINS, ao defenderem que o bem jurídico dos crimes e lavagem de dinheiro são os mesmos dos crimes antecedentes, fazem críticas contundentes às correntes que pensam diferente. Com efeito, rebatem a tese de que o objeto jurídico dos crimes de lavagem de dinheiro seria a administração da justiça, sob a justificativa de que, em verdade, isso se trataria de uma razão de política criminal, e não o objeto jurídico, no sentido de bem socialmente valorado. Nesse sentido, discorre os citados autores:

A inclusão da administração da justiça como bem jurídico de referência para os crimes de lavagem, de ampla aceitação na doutrina estrangeira e que encontra defensores também na doutrina nacional, corresponde à pressuposição de uma proteção indireta, mediata: a própria prestação jurisdicional que se toma por prejudicada, pelos crimes de lavagem decorre do crime antecedente, não tem sentido sem referência a este. A criminalização justifica-se materialmente, portanto, em consideração ao bem jurídico do crime antecedente.21

Do mesmo modo, rebatem a ideia de que o objeto jurídico dos crimes de lavagem seria a ordem socioeconômica:

É uma falácia a afirmação de que a punibilidade da lavagem serve, em primeira linha, à purificação do mercado. Igualmente, é falacioso o argumento de que a lavagem desestabiliza o mercado. O mercado não de desestabiliza porque o dinheiro depositado em um banco tenha origem lícita ou ilícita. Pelo contrário, quanto maior o montante do depósito, maior o ganho do mercado e maior sua estabilidade. O que a punibilidade da lavagem busca impedir é o enriquecimento ilícito dos depositantes, ou dos autores dos delitos antecedentes, ou mesmo dos próprios autores da lavagem. Esse é o efeito real ou simbólico da incriminação.22

Para arrematar, cravam os autores:

Na verdade, o delito de lavagem, por si mesmo, não afeta a estrutura social. Desde sua origem, sempre esteve associado a uma razão de política criminal para imprimir maior rigor na proibição de ganhos ilícitos de capital, bem como na punibilidade de fatos de difícil investigação. (...) Em conclusão, apesar do alarde social provocado pelos meios de comunicação e do interesse dos órgãos de persecução penal, pode-se ver que o bem jurídico dos crimes de lavagem de capitais é o bem jurídico do crime antecedente. (destaque no original)23

Como se verá nos tópicos subsequentes, a definição do bem jurídico tutelado pela norma é de especial importância para a análise da autolavagem de dinheiro

3. Autolavagem de dinheiro

3.1. Conceito

Denomina-se autolavagem de dinheiro a ocultação, dissimulação e/ou integração de bens, direitos e valores levados a cabo pela mesma pessoa que cometeu o crime antecedente e, por conseguinte, auferiu o dinheiro ilícito que, agora, pretende dar a aparência de licitude.

Comete a autolavagem, por exemplo, o servidor público que recebeu vantagem indevida no exercício do cargo, incidindo, por exemplo, no crime de corrupção e, depois, insere, oculta e/ou dissimula esses valores, incidindo em uma das condutas previstas na Lei nº 9.613/1998.

3.2. Legalidade da autolavagem de dinheiro no Brasil

A possibilidade de se incriminar a mesma pessoa pelo crime antecedente e pela posterior lavagem é polêmica. Parte da doutrina afirma ser possível. De outra banda, renomados autores afirmam que, nessa hipótese, estar-se-ia incorrendo no malfadado bis in idem.

Dois importantes critérios a serem analisados são: a) a coincidência ou não dos bens jurídicos tutelados pelo crime antecedente e pelos crimes de lavagem e b) a consonância ou não com o princípio da legalidade.

3.2.1. Teses contrárias

Para aqueles que defendem que o bem jurídico dos crimes de lavagem é o mesmo do crime antecedente, ou seja, que com os crimes de lavagem o autor estaria estendendo a lesão ao mesmo bem jurídico, sua punição por ambos os delitos configuraria bis in idem. Para essa corrente, a dupla punição seria equivalente a punir um indivíduo, que subtraiu um veículo para si, por furto e receptação, uma vez que ele teria subtraído e, concomitantemente recebido o bem, o que não se coaduna com nosso ordenamento jurídico.

TAVARES e MARTINS sustentam não ser possível a dupla punição do agente, ou seja, pelo crime antecedente e pelos crimes de lavagem de dinheiro. Inicialmente, afirmam que as convenções de Palermo e de Mérida apenas facultam, mas não obrigam, os Estados partes a criminalizarem a autolavagem de capitais. Para eles, na ausência de previsão expressa na legislação brasileira, não se de pode presumir criminalizada a conduta da autolavagem.24

Em relação ao bem jurídico penalmente tutelado, afirmam que “se o agente é punido pelo crime antecedente, não poderá sê-lo também, cumulativamente, pelos crimes de lavagem. Essa conclusão se robustece pela identificação do bem jurídico da lavagem de capitais com o de delito antecedente, mas não é dela dependente”.25

Por fim, os autores trazem um terceiro critério para a não punição pelos dois crimes:

Ou seja, ainda que se entendesse que o delito de lavagem teria como pressuposto bem jurídico distinto, não se poderia admitir a punição da autolavagem, conclusão a que se chega a partir da correta aplicação do princípio do pós-fato impunível ou copunível, porquanto o conteúdo de injusto da lavagem de capitais está contido no injusto do delito antecedente.26

3.2.2. Teses favoráveis

FERNANDES tem entendimento diametralmente diferente, ao defender que:

“Não há como prosperar os argumentos que excluam a responsabilidade do autor da infração penal predecessora pela prática de lavagem de dinheiro, sob o fundamento de inadmissibilidade do cometimento de bis in idem, em face da distinção dos desígnios, da finalidade, do objeto e dos bens, dentre ouros aspectos. Caso contrário, tornar-se-ia inócua a medida.

Se assim fosse, caso a ocultação, por exemplo, do proveito da ilicitude se caracterizasse conduta atípica, mutatis mutandis não se poderia puir a ocultação de cadáver, pois o assassino que o ocultasse estaria apenas exaurindo o crime de homicídio.

Nesta linha admite-se o concurso de crime entre a lavagem de dinheiro e demais delitos, mesmo em relação à infração penal antecedente.”27

MENDRONI é favorável à punição pelos dois crimes, o antecedente o de lavagem. Conforme o doutrinador, “há vezes em que quem pratica o crime é o mesmo autor do crime precedente, processando, ele mesmo, os ganhos ilícitos. Trata-se de crime dependente da configuração do anterior, mas autônomo, com conduta e punição distintas e prevista”28.

O autor faz interessante distinção entre a autolavagem e a ação neutra daquele que comete o delito antecedente e não realizada a lavagem pessoalmente, mas por interposta pessoa. Nesse último caso, ele conceitua de “ação neutra” a entrega do dinheiro para lavagem por terceiros:

Na conduta neutra, o agente vale-se de terceira pessoa que, em seu benefício e em seu nome, pratique a ação de ocultação e/ou dissimulação – agente esse, vulgarmente, chamado de ‘operador’ da lavagem. Autolavagem: Para nós, a autolavagem ocorre quando o próprio agente que obteve os valores/bens/direitos provenientes de infração penal, age de forma a ocultá-los e/ou dissimulá-los. Enquanto na conduta neutra na conduta neutra este agente se vale de terceira (interposta) pessoas, os quais incidirão nas penas dos §§ 1º e 2º do caput do artigo 1º da Lei [9.613/1998].29

CONSERINO e ARAÚJO também defendem a autolavagem como típica em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, expõem de forma direta e categórica que:

É possível que o autor dos crimes de lavagem seja o mesmo da infração antecedente, isso porque apesar de delito acessório à infração penal antecedente, é dela autônomo, sendo plurissubsistente, ou seja, passível de execução mediante mais de uma conduta.30

Diferente de TAVARES a MARTINS, CONSERINO e ARAÚJO sustentam que a criminalização da autolavagem no brasil é absolutamente legal, não pela – inexistente – previsão expressa, mas por sua não vedação pela legislação pátria.

Nessa toada, oportuno transcrever os artigos das convenções internacionais de Palermo e de Mérida que, ao tratarem do crime de autolavagem, preveem que os Estados partes podem excluir a autolavagem, segundo seus critérios:

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL (Convenção de Palermo)

Artigo 6

Criminalização da lavagem do produto do crime

(...)

2. Para efeitos da aplicação do parágrafo 1 do presente Artigo:

(...)

e) Se assim o exigirem os princípios fundamentais do direito interno de um Estado Parte, poderá estabelecer-se que as infrações enunciadas no parágrafo 1 do presente Artigo não sejam aplicáveis às pessoas que tenham cometido a infração principal;

CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO (Convenção de Mérida)

Artigo 23

Lavagem de produto de delito

(...)

2. Para os fins de aplicação ou colocação em prática do parágrafo 1 do presente Artigo:

(...)

e) Se assim requererem os princípios fundamentais da legislação interna de um Estado Parte, poderá dispor-se que os delitos enunciados no parágrafo 1 do presente Artigo não se apliquem às pessoas que tenham cometido o delito determinante.

No mesmo sentido é a Recomendação 3 do GAFI, merecendo destaque a sua nota interpretativa nº 6:

3. Crimes de lavagem de dinheiro

Os países deveriam criminalizar a lavagem de dinheiro com base na Convenção de Viena e na Convenção de Palermo. Os países deveriam aplicar os crimes de lavagem de dinheiro a todos os crimes graves, de maneira a incluir a maior quantidade possível de crimes antecedentes.

Nota explicativa nº 6:

Os países poderão definir que os crimes de lavagem de dinheiro não se aplica a pessoas que cometeram o crime antecedente, se esse for um dos princípios fundamentais de suas leis domésticas.

Assim, uma vez que a legislação interna brasileira não prevê a não incidência dos crimes de lavagem e dinheiro às pessoas que tenham cometido o crime antecedente, entender-se-ia, conforme sustentam CONSERINO e ARAÚJO, aplicáveis também a elas.

Na mesma toada, para BRASILEIRO, nada impede que o autor do crime antecedente seja punido, também, pelo posterior crimes de lavagem. Conforme didática explicação do processualista:

A uma porque, ao contrário de outros países, a legislação brasileira não veda expressamente a autolavagem, inexistindo a chamada ‘reserva de autolavagem’ prevista em outros países. (...) Em segundo lugar, não se afigura possível a aplicação do princípio da consunção, incidente nas hipóteses de pós fato impunível. Ora, a ocultação do produto da infração antecedente pelo seu autor configura lesão autônoma, contra sujeito passivo distinto, através de conduta não compreendida como consequência natural e necessária da primeira. De mais a mais, o bem jurídico tutelado pela Lei nº 9.613/98 é, em regra, distinto daquele afetado pela infração penal antecedente, e esta distinção acaba por autorizar a punição de ambas as condutas delituosas em concurso material, sem que se possa falar em bis in idem.31

CUNHA, PINTO e SOUZA expõem que a autolavagem encontra atualmente amplo respaldo na doutrina e jurisprudência pátrias e defendem que ä prática da autolavagem não apenas é possível, como merece efetiva reprimenda estatal”.32 E justificam suas posições discorrendo que:

O autor do crime antecedente, já de posse do produto financeiro obtido, poderia perfeitamente se satisfazer com os atos criminosos até então praticados, usufruindo dos bens e valores que já se encontravam à sua disposição. No entanto, com motivação completamente distinta, ele inicia a prática de uma nova série de condutas, buscando agora dar aparência de licitude ao recurso por ele obtido com a prática da infração penal anterior. Portanto, não nos parece razoável afastar a punição autônoma pelos crimes de lavagem de dinheiro. Por outro lado, outo fato que reforça a necessidade de punição da autolavagem é que a lavagem de dinheiro afeta bem jurídico distinto daquele protegido pela infração penal antecedente, merecendo, assim, reprimenda penal de natureza autônoma.33

Importante, ainda, citar o ensinamento de BADARÓ e BOTTINI, que também defendem a legalidade da punição da autolavagem de dinheiro:

A lei brasileira não veda a punição dessa modalidade delitiva, o que parece coerente com a opção do legislador de tutelar a administração a Justiça. Aquele que pratica o crime antecedente e, em momento posterior, oculta ou dissimula seu produto, com o objetivo de reinseri-lo na economia com aparência de licitude, age em contextos distintos e autônomos, cada qual com sua própria reprovabilidade. A lavagem de dinheiro não é um ato de aprofundamento da lesão do bem jurídico tutelado pela norma violada pela infração antecedente – valendo destacar que esse bem jurídico muitas vezes nem mais existe, como nos casos de homicídio mediante paga –, mas de criação de uma nova dinâmica delitiva, do mascaramento com a intenção de recolocá-lo na ordem econômica, sob um aspecto regular e “limpo”.34

3.2.3. Jurisprudência

A jurisprudência brasileira, em especial do Supremo Tribunal Federal, corrobora a tese da corrente doutrinária majoritária, no sentido de que é possível a punição autônoma pelo crime de autolavagem.

Nesse sentido, reproduz-se os seguintes excertos de importantes decisões da Suprema Corte brasileira:

(...) IV. Não sendo considerada a lavagem de capitais mero exaurimento do crime de corrupção passiva, é possível que dois dos acusados responsam por ambos os crimes, inclusive em ações penais diversas. (STF – Inquérito 2.471 – Rel. Ministro Ricardo Lewandowki – Julgado em 29.09.2011)

Verificada a autonomia entre o ato de recebimento de vantagem indevida oriunda do delito de corrupção passiva e a posterior ação para ocultar ou dissimular a sua origem, possível é a configuração dos crimes de lavagem de capitais. (STF – Ação Penal 996 – Rel. Min. Edson Fachin – Julgado em 29.05.2018)

O sistema jurídico brasileiro não exclui os autores do delito antecedente do âmbito de incidência das normas penais definidoras dos crimes de lavagem de bens, direitos ou valores, admitindo, por consequência, a punição da chamada autolavagem. É possível, portanto, em tese, que um mesmo acusado responda, concomitantemente, pela prática dos delitos antecedentes e de lavagem, inexistindo bis in idem decorrente de tal proceder. (STF – HC 165.036 – Rel. Ministro Edson Fachin – Julgado em 19/04/2020)

Também no Colendo Superior Tribunal de Justiça é esse o entendimento majoritário:

Embora a tipificação da lavagem de capitais dependa da existência de um crime antecedente, é possível a autolavagem, isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e dos crimes de lavagem, desde que sejam demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do primeiro crime, circunstância em que não ocorrerá o fenômeno da consunção. (STJ – Ação Penal nº 989 – DF – Decisão de recebimento de denúncia – Rel. Ministra Nancy Andrighi – Julgado em 16/02/2022)

Conforme se depreende, em que pese alguns poucos posicionamentos contrários, é amplamente majoritário o entendimento de que a legislação brasileira possibilita a responsabilização criminal da conduta que passou a ser conhecida como autolavagem. De acordo com a esmagadora maioria dos doutrinadores e das decisões das cortes superiores, a legislação brasileira não veda a punição do autor do crime antecedente pela posterior ocultação e/ou dissimulação dos bens, direitos e valores ilicitamente auferidos. Do mesmo modo, é amplamente predominante o entendimento de que os crimes de lavagem de dinheiro tutela bem jurídico distinto daqueles tutelados pelos crimes antecedentes, não havendo que se falar em bis in idem.

CONCLUSÃO

O acelerado avanço tecnológico, a abertura dos mercados e a expansão do acesso à internet facilitaram o cometimento de crimes econômicos, dentre os quais, a lavagem de dinheiro.

Em geral, as expressivas quantias auferidas pelo cometimento de crimes de diferentes espécies, notadamente por organizações criminosas estruturadas e com grande poder de coerção e de influência nas mais variadas instituições e nos mais avançados níveis de governo, são submetidas a um conjunto de operações para que, ao fim, sejam inseridas na economia com aparência de licitude. Essa prática é conhecida como lavagem de dinheiro.

Para prevenir e combater a lavagem de dinheiro, foram elaboradas convenções internacionais, pelas quais os Estados partes se comprometeram a defini-la como crime em suas legislações internas, bem como a colaborarem mutuamente na prevenção, investigação e combate à sua prática.

Nessa toada, em 1998, foi promulgada no Brasil a Lei nº 9.613/1998, que passou a tipificar a ocultação e dissimulação de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, condutas também denominadas de lavagem de dinheiro.

O presente tratou de abordar a i(legalidade) da autolavagem de dinheiro no Brasil, denominação dada à hipótese de o próprio autor do crime antecedente levar a cabo ações para dar aparência de licitude aos valores por ele criminosamente auferidos.

Renomados autores são contrários. Alguns deles afirmam que os crimes antecedentes e os crimes de lavagem de dinheiro tutelam os mesmos jurídico e a punição da mesma pessoa por ambos os crimes incorreria no indesejado bis in idem. Outros justificam sua contrariedade afirmando que a punição da autolavagem seria ilegal, uma vez que sem previsão expressa na legislação brasileira.

De outra banda, a expressiva maioria dos doutrinadores e das decisões as cortes superiores nacionais defendem a possibilidade da punição da autolavagem. Para esta corrente, os crimes de lavagem de dinheiro tutelam bens jurídicos distintos dos crimes antecedentes, não havendo que se falar em bis in idem. Rechaça ainda a alegação de ilegalidade da punição, uma vez que não vedada pela expressamente pela legislação.

O entendimento predominante vai ao encontro das diretivas internacionais, que recomendam a subsunção da maior gama possível de crimes antecedentes aos tipos penais de lavagem de dinheiro e, ainda, que preveem a hipótese de as legislações internas dos Estados estabelecerem que as condutas típicas da lavagem de dinheiro não sejam aplicáveis às pessoas que tenham cometido o crime antecedente, o que não é o caso da legislação brasileira.

BIBLIOGRAFIA

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BAUMAN, Zygmunt Bauman. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 230.

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BECK, Ulrich. Sociedade de risco: ruma a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 23.

BRASILEIRO, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 601.

CONSERINO, Cassio Roberto; ARAÚJO, Fernando Henrique de Moraes. Crime organizado e lavagem de dinheiro: teoria e jurisprudência. 2ª ed., rev., atual., e ampl. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 447.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó. Leis penais especiais comentadas. 3ª ed., rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1303.

EISELE, Andreas. Direito penal: teoria do delito. 2ª ed. rev., atual. E ampl.. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 67.

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FERNANDES, Robinson. Lavagem de dinheiro: aspectos investigativos, jurídicos, penais e constitucionais – Prevenção e repressão do branqueamento de capitais no direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crimes de lavagem de dinheiro. 4ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.

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TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 61.

Sobre o autor
Tiago Contatto Trindade

Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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