Responsabilidade contratual por decisão automatizada e discriminações algorítmicas

Leia nesta página:

Introdução

Com a crescente adoção de algoritmos e inteligência artificial (IA) em decisões empresariais, surge um novo cenário de desafios legais e éticos. Essas tecnologias, amplamente utilizadas para automatizar processos e tomar decisões de grande impacto, trazem à tona questões complexas sobre a responsabilidade contratual e as implicações das discriminações algorítmicas. Este ensaio analisa a responsabilidade contratual associada às decisões automatizadas e explora as possíveis discriminações algorítmicas, distinguindo entre aquelas lícitas e ilícitas, além de discutir suas implicações jurídicas, éticas e sociais.

Responsabilidade Contratual por Decisão Automatizada

As decisões automatizadas referem-se a situações em que algoritmos tomam decisões sem intervenção humana direta, baseando-se em dados programados e análises automatizadas. Quando um algoritmo erra ou toma uma decisão prejudicial, a questão da responsabilidade contratual torna-se central: quem deve ser responsabilizado? Empresas que utilizam a tecnologia ou desenvolvedores que criaram o sistema?

A responsabilidade por uma decisão automatizada envolve vários fatores: a previsibilidade dos resultados, o controle que os usuários têm sobre o processo e a confiabilidade dos dados inseridos no sistema. No contexto contratual, a falha de um algoritmo em desempenhar sua função corretamente pode constituir uma violação contratual, levando a consequências jurídicas. Por exemplo, se uma empresa utiliza um algoritmo para avaliar crédito e, por erro no sistema, rejeita um candidato qualificado, a responsabilidade por danos causados pode recair sobre a empresa, que responde pelo sistema que adotou.

Além disso, existem situações em que a decisão automatizada pode estar programada para agir de acordo com regras contratuais específicas, e qualquer falha pode implicar diretamente os criadores do algoritmo. A falta de clareza na definição de quem supervisiona ou controla a decisão algorítmica pode criar lacunas legais que exigem novos entendimentos da responsabilidade no ambiente digital.

Discriminação Algorítmica: Lícita e Ilícita

A discriminação algorítmica ocorre quando algoritmos produzem resultados que favorecem ou desfavorecem certos grupos com base em características como raça, gênero, idade ou classe social. Em alguns casos, essa discriminação pode ser justificada e legal, como quando utilizada para avaliar riscos financeiros ou estabelecer critérios objetivos que não violam direitos humanos. Contudo, quando a discriminação decorre de preconceitos embutidos nos dados ou nas regras do algoritmo, ela pode ser considerada ilícita, violando legislações de igualdade e antidiscriminação.

Um exemplo de discriminação lícita pode ser encontrado no setor financeiro, onde algoritmos são utilizados para avaliar o risco de crédito com base em históricos financeiros. Contudo, se o algoritmo utilizar características como raça ou etnia para determinar a concessão de crédito, ele poderá gerar discriminação ilícita, reforçando desigualdades preexistentes. Discriminações algorítmicas ilícitas podem surgir quando os algoritmos reproduzem ou amplificam preconceitos sociais, resultando em decisões injustas ou excludentes, especialmente em áreas como seleção de candidatos para emprego, educação e serviços de saúde.

Desafios Éticos e Jurídicos

A responsabilidade contratual e as discriminações algorítmicas trazem desafios éticos e jurídicos fundamentais. Em primeiro lugar, há o desafio de garantir a transparência dos algoritmos utilizados. A maioria das decisões algorítmicas ocorre em uma "caixa-preta", onde a lógica de decisão interna é invisível para o público e até mesmo para as próprias empresas que utilizam a tecnologia. Isso levanta questões sobre accountability: como responsabilizar um sistema cujas decisões são opacas?

Além disso, o uso generalizado de IA e algoritmos sem supervisão pode perpetuar preconceitos estruturais, já que muitos sistemas são treinados com base em dados históricos que refletem as desigualdades existentes na sociedade. Sem a devida supervisão e correção, esses sistemas podem reforçar discriminações ao invés de reduzi-las. Identificar e corrigir preconceitos nos algoritmos é um desafio contínuo, especialmente devido à complexidade e ao volume de dados utilizados.

No campo jurídico, surgem novas questões quanto à jurisdição e à responsabilidade compartilhada. No caso de uma decisão automatizada que resulte em prejuízo, como determinar se a culpa é da empresa que adotou o algoritmo, do programador que o desenvolveu ou do cliente que forneceu os dados iniciais? A intersecção entre responsabilidade civil e uso de IA exige novos desenvolvimentos no direito contratual e na regulação de tecnologia.

Soluções e Regulamentações

Dada a complexidade dos desafios associados à responsabilidade contratual por decisões automatizadas e discriminações algorítmicas, soluções regulatórias robustas são necessárias. Muitos especialistas defendem a criação de normas globais de ética para IA, que estabeleçam diretrizes claras para o desenvolvimento e a implementação de algoritmos justos e transparentes. Entre as soluções possíveis, destacam-se:

Transparência e Auditabilidade dos Algoritmos: Implementar regras que exijam que os algoritmos sejam verificáveis e auditáveis, permitindo que terceiros examinem suas decisões e identifiquem discriminações ou erros.

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Implementação de Normas de Conformidade: Desenvolver padrões regulatórios que obriguem empresas a garantir que seus algoritmos estejam em conformidade com leis antidiscriminação e de direitos humanos.

Responsabilidade Compartilhada: Criar uma estrutura de responsabilidade compartilhada, na qual desenvolvedores, empresas e usuários assumam responsabilidade proporcional pelo uso de algoritmos, dependendo de seu envolvimento no processo de decisão.

Educação e Sensibilização: Promover a educação e a conscientização sobre o uso ético e justo de algoritmos em empresas e instituições, garantindo que as decisões automatizadas respeitem os princípios da igualdade e da justiça.

Conclusão

A responsabilidade contratual por decisão automatizada e as discriminações algorítmicas representam desafios crescentes no cenário empresarial e jurídico. Embora as tecnologias de IA e algoritmos tragam eficiência e inovação, também levantam questões sobre justiça, responsabilidade e transparência. Para enfrentar esses desafios, uma abordagem integrada que inclua regulamentações éticas, responsabilidade clara e transparência é essencial. Somente com um controle eficaz sobre o desenvolvimento e a implementação dessas tecnologias será possível garantir que seus benefícios sejam distribuídos de maneira justa e igualitária na sociedade.

Sobre o autor
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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