O Direito de Morrer com Dignidade: Reflexões Jurídicas e Éticas Sobre a Autonomia no Fim da Vida

21/11/2024 às 15:10

Resumo:


  • O direito de morrer com dignidade tem sido objeto de intenso debate em diversos campos, especialmente após o suicídio assistido do poeta Antonio Cicero na Suíça devido ao Alzheimer.

  • Existem diferenças entre eutanásia, ortotanásia e suicídio assistido, sendo este último o caso de Cicero, que levanta questões sobre autonomia e dignidade no contexto brasileiro e internacional.

  • A autonomia do paciente e a regulação jurídica são fundamentais para equilibrar o direito de escolha sobre o fim da vida com a preservação da vida, desafiando o ordenamento jurídico a refletir os valores da dignidade e do respeito às escolhas individuais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O direito de morrer com dignidade tem sido objeto de intenso debate no âmbito jurídico, médico, ético e social. A recente notícia sobre o suicídio assistido do poeta e acadêmico Antonio Cicero, que optou pela prática na Suíça devido à progressão do Alzheimer, reacendeu as discussões sobre a autonomia individual no momento de decidir sobre o término da própria vida. Este artigo explora os principais aspectos legais e filosóficos do tema, situando-o no contexto da dignidade humana, da autonomia privada e da regulação jurídica brasileira e internacional.

1. Introdução

A dignidade humana é considerada um pilar fundamental do ordenamento jurídico contemporâneo, presente tanto em documentos internacionais quanto em constituições nacionais. No Brasil, o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Entretanto, a aplicação desse princípio em questões sensíveis, como o direito de morrer, suscita controvérsias, especialmente quando se trata da ortotanásia, da eutanásia e do suicídio assistido.

O caso de Antonio Cicero lança luz sobre a importância de debater o direito de morrer com dignidade no Brasil, país onde a legislação atual não contempla essas práticas. A carta deixada pelo poeta expressa claramente a sua convicção de que, mesmo diante da perda de capacidades cognitivas, ainda possuía autonomia suficiente para decidir sobre o valor de sua vida e sobre sua continuidade.

2. Conceitos Fundamentais: Eutanásia, Ortotanásia e Suicídio Assistido

Embora muitas vezes utilizados de forma intercambiável, eutanásia, ortotanásia e suicídio assistido são conceitos distintos:

Eutanásia: Envolve a aplicação de meios ativos por um médico para encerrar a vida de um paciente em sofrimento insuportável. É legal em países como Bélgica, Holanda e Luxemburgo.

Ortotanásia: Consiste na suspensão de tratamentos médicos desproporcionais ou fúteis que prolongam artificialmente a vida, permitindo que o processo natural da morte ocorra. No Brasil, essa prática é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 1.805/2006).

Suicídio assistido: Difere da eutanásia porque o próprio paciente administra o medicamento letal, com suporte médico. É permitido em países como Suíça, Alemanha e alguns estados dos EUA.

A escolha de Cicero insere-se na categoria de suicídio assistido, em conformidade com a legislação suíça. Essa prática exige critérios rigorosos, como a comprovação de capacidade cognitiva do paciente e a irreversibilidade da condição médica.

3. O Princípio da Autonomia e o Direito de Escolha

A autonomia, definida como a capacidade de autodeterminação, é um dos valores centrais em sociedades democráticas. Luiz Roberto Barroso (2014) ressalta que a dignidade humana inclui o "empowerment" do indivíduo, ou seja, a possibilidade de realizar escolhas fundamentais sobre sua própria vida, desde que respeitados os limites impostos pelo interesse público.

No caso do direito de morrer com dignidade, a autonomia encontra um campo de aplicação complexo. Enquanto as normas jurídicas têm como objetivo a preservação da vida, o respeito à autonomia do paciente implica reconhecer que a continuidade da existência, em condições de sofrimento extremo e sem perspectivas de melhora, pode contrariar a concepção individual de uma vida digna.

O dilema entre autonomia e preservação da vida é ainda mais evidente em casos de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer, que comprometem progressivamente a cognição. Cicero, em sua carta, mencionou sua lucidez para avaliar a situação e tomar uma decisão consciente. Este elemento é crucial para evitar abusos e garantir que a escolha seja genuinamente autônoma.

4. Regulação Jurídica e Experiências Internacionais

A regulamentação das práticas de eutanásia e suicídio assistido varia amplamente no cenário internacional. Alguns países optaram por legislações permissivas, enquanto outros mantêm uma abordagem restritiva:

  • Países Baixos: A eutanásia e o suicídio assistido são permitidos desde 2002, mediante critérios como sofrimento insuportável e consentimento informado.

  • Suíça: O suicídio assistido não é considerado crime, desde que não haja interesse egoísta por parte do assistente. A legislação não exige a presença de uma condição terminal, mas organizações como a Dignitas estabelecem critérios éticos rigorosos.

  • Espanha: Recentemente legalizou a eutanásia e o suicídio assistido, reconhecendo-os como direitos fundamentais.

No Brasil, o Código Penal criminaliza a participação em suicídio (art. 122) e a prática de eutanásia é classificada como homicídio privilegiado. Contudo, o avanço da bioética e a Resolução CFM nº 1.805/2006 abriram espaço para a ortotanásia, ainda que limitada pelo temor de sanções judiciais.

5. Aspectos Éticos e Bioéticos

A bioética, campo interdisciplinar que busca equilibrar valores e princípios em situações médicas, oferece ferramentas importantes para analisar o direito de morrer com dignidade. Princípios como autonomia, beneficência e não maleficência são centrais nesse debate.

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Antonio Cicero mencionou o desejo de preservar a dignidade em seu último ato. O princípio da beneficência sugere que, ao permitir práticas como a eutanásia ou o suicídio assistido, o sistema médico pode minimizar o sofrimento desnecessário. Por outro lado, a não maleficência impõe o dever de evitar danos, o que inclui decisões controversas sobre o término da vida.

6. Perspectivas Jurídicas Brasileiras

No Brasil, a ausência de legislação específica sobre o direito de morrer com dignidade impede a concretização desse direito em sua plenitude. A falta de regulamentação aumenta a insegurança jurídica para pacientes, familiares e profissionais de saúde, que temem sanções legais.

O debate legislativo tem avançado lentamente. O anteprojeto do novo Código Penal propôs descriminalizar a ortotanásia, mas não incluiu previsões sobre eutanásia ou suicídio assistido. Essa lacuna contrasta com o avanço da jurisprudência em outros temas relacionados à dignidade humana, como o casamento homoafetivo e o direito ao aborto em casos de anencefalia.

7. Conclusão: O Direito à Morte Digna como Projeção da Dignidade Humana

O caso de Antonio Cicero demonstra a urgência de avançar no reconhecimento jurídico do direito de morrer com dignidade no Brasil. Sua carta não apenas relata um sofrimento pessoal, mas também apresenta uma reivindicação de autonomia que merece ser debatida à luz dos princípios constitucionais.

A dignidade humana, enquanto princípio orientador, exige que o ordenamento jurídico se adapte às necessidades individuais em situações de terminalidade. Reconhecer o direito de escolha sobre o fim da própria vida não é apenas uma questão de justiça, mas também de respeito à liberdade e à humanidade de cada indivíduo.

O desafio para o direito brasileiro é equilibrar a proteção da vida com a autonomia do paciente, desenvolvendo mecanismos que garantam a segurança e a ética em práticas como a eutanásia e o suicídio assistido. Somente assim será possível construir um sistema jurídico que verdadeiramente reflita os valores da dignidade e do respeito às escolhas individuais.

Sobre o autor
André Jales Falcão Silva

Advogado (OAB/CE: 29.591). Possui uma ampla formação acadêmica incluindo Bacharelado em Direito e Licenciatura em Sociologia e diversas especializações nos campos do Direito e da Educação. Atua profissionalmente como Professor de disciplinas do eixo das ciências sociais e aplicadas e como Perito Judicial, em diversos tribunais, com ênfoques em Documentoscopia e Grafoscopia. É Psicanalista vinculado ao Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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