Quando iniciei a labuta jurídica ainda eram físicos os autos.
Confeccionava-se a petição inicial, reunia-se os documentos essenciais (e alguns não tão essenciais assim) e dirigia-se à Distribuição do Foro.
Lá o servidor, após uma breve conferência, recebia a documentação e devolvia a via com o devido protocolo.
O feito era cadastrado e seguia seu tramitar.
A modernidade chegou ao processo, inicialmente com o processo eletrônico, mas com protocolo físico perante a distribuição, ou seja, pouco mudando da atribuição de cada parte.
Contudo, tal durou pouco. Logo logo o protocolo passou a ser feito pelos agentes postulantes perante o Poder Judiciário.
Por um bom tempo o processo eletrônico e o atuar dos agentes tentava espelhar a forma “física” de trabalhar .
As novas tecnologias cada vez mais agilizam o processo e possibilitam o intercambiamento de atos, como por exemplo a remessa de comunicações e ordens do Poder Judiciário às Serventias Extrajudiciais.
As intimações “brotam” em nossas telas de segunda a segunda, fazendo com que a engenharia laboral antes pensada tivesse que ser reformulada para acompanhar o novo ritmo e a nova forma.
Mas não é só isso.
Ao que parece, além da modernização visando agilizar o processo, o Poder Judiciário cada vez mais está atribuindo às partes atos, atitudes e condutas que são atribuição dele mesmo. E mais, e pior ainda, estão classificando como meros atos ordinatórios atos e situações processuais que criam ônus e sanções processuais às partes.
No primeiro caso vemos “atos ordinatórios” com texto (e muitos fora do contexto, se me permitem o trocadilho) como os que seguem:
“Intime-se a parte autora para elencar os eventos onde constam as peças previstas no artigo 655 do CPC e eventuais outros documentos que pretenda sejam indexados ao formal de partilha eletrônico.”
“Diga a parte como quer prosseguir”
Ora, se cabe aos postulantes analisar o processo para confeccionar as peças que são de sua atribuição (v.g contestação, réplica, memoriais, recursos etc) e cabe ao Juiz analisar o processo para proferir decisões interlocutórias ou definitivas, não cabe ao servidor analisar o feito e verificar onde se encontram as peças para formar o instrumento que é sua atribuição fazer?
Se o processo se desenvolve por impulso oficial, não cabe ao servidor verificar qual o andamento e, caso dependa de decisão fazer os autos conclusos?
E mais, em que pese a Lei Adjetiva preveja que os servidores possam praticar atos ordinatórios (situação umbilicalmente ligada ao princípio do impulso oficial), com base no PROVIMENTO Nº 20/2023-CGJ, o que se vê hoje é a banalização de tal hipótese.
E mais, em caso em que o impulso oficial deveria ser simplesmente intimar a parte exequente sobre a certidão do mandado de intimação para pagamento devido cumprido e após transcorrido o prazo, o dito “ato ordinatório”, trasmuda-se em verdadeira “ordem”, como no seguinte exemplo real: “À parte exequente/credora: junte a planilha com o valor atualizado da dívida (com acréscimo de multa e honorários - evento 4, DESPADEC1 ) e diga sobre o prosseguimento do processo.”, ou até mandando o autor esclarecer porque juntou um documento antes mesmo do feito ser feito concluso, pasmem (“Intime-se o autor para que esclareça o motivo da juntada dos documentos constantes nos evento 1, CHEQ7 e evento 1, EXMMED13, considerando que referem-se a pessoa estranha ao feito.”.
Ordens e mais ordens surgem das criativas mentes dos atos ordinatórios, como “determinar” que o autor informe e-mail e telefone do réu, sendo que LEI trata como opcional tal informação.
Dia desses após um “Diga o credor/exequente como quer prosseguir”, singelamente pedi que queria o prosseguimento com a leitura do processo….
No início do curso já iniciava um estágio voluntário, onde descobrir o mundo forense foi uma alegria. Buscar processo, devolver processo, tirar cópia, atender as pessoas, minutar petições, falar com os servidores etc. o intercambiamento das relações pessoais era uma inundação de crescimento pessoal e aprendizado. Com o tempo você sabia como tal Juiz costumava decidir, como tal Escrivão orientava, qual servidor era mais simpático e por ai vai.
Com o processo digital muita coisa mudou, sumindo o vai e vem físico. Mas mantinha-se a pessoalidade. Você conhecida as pessoas por detrás dos movimentos e eventos processuais. Com a criação do Multicon esvaziaram-se os cartórios, restando mesas vazias e um judiciário sem rosto e seus atos ordinatórios.
Por saudosismo puro ainda mantenho a velha agenda de papel, essa ninguém me tira.