A Lei Complementar nº 87/96, conhecida como Lei Kandir, “é hoje o texto base que regra o ICMS com méritos e deméritos” (Coelho, 2022, p. 397). Neste sentindo, o mérito acima citado, se refere ao intuito de solucionar um dos conflitos de competência entre os Estados reguladores do ICMS, e dos Municípios reguladores do ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) que mais especificamente no artigo 2 da Lei Complementar nº 87/96 dispõem sobre o recolhimento do imposto nos serviços de transporte e as circulações de mercadorias e, acima de tudo, seus fatos de incidência.
Evidencia-se o fato de que a lei regula os limites da incidência do ICMS no âmbito Estadual distinguindo da competência Municipal, “em outras palavras, existindo simultaneamente a prestação de serviços com fornecimento de mercadorias, se ausente a competência municipal sobre essa operação, os Estados passam a ter competência para toda arrecadação” (Novais, 2022, p. 222). Dito isto, o grande demérito em contraste é justamente no surgimento da incidência, ou seja, o ato em que a lei determina o fato gerador do tributo do ICMS nas operações de transferências de mercadoria entre estabelecimentos de mesmo titular (Coelho, 2022).
A caracterização do fato gerador na incidência do ICMS se dá na circulação de mercadoria ou prestação de serviços interestaduais, melhor dizendo, é referente a operações de circulação de mercadorias, que independe de sua natureza jurídica, que estão ligados ao trajeto da mercadoria desde sua produção até o consumo final (Sabbag, 2021). A grande divergência é que a Lei Complementar 87 dispunha em seu artigo 12, inciso I, que a saída de mercadorias, a circulação supra citada, entre estabelecimentos de um mesmo titular configuraria o fato gerador e, portanto, caracterizaria a obrigação tributária.
A Lei Complementar reforçava que a circulação entre estabelecimentos mesmo sendo de um mesmo titular acarretaria a obrigação de recolher o ICMS ao contribuinte, o que a tempos já havia sido discutido que a mera circulação de mercadorias não geraria o fato gerador, pois a mercadoria em questão permaneceu na mesma titularidade, portanto, afirma José Souto:
É um tributo que recai sobre operações relativas à circulação de mercadorias. Não é, pois, um tributo sobre a circulação em si, considerada como simples movimentação física (transporte) da mercadoria, mas um tributo sobre operações de circulação de mercadorias (compra e venda, promessa de venda, doação, empreitada, dação em pagamento, transferência de mercadoria, troca, importação, exportação e outras operações) (Borges, 1971, p. 34).
Deste modo, o grande questionamento que insurge é sobre a mera circulação de mercadoria que a lei definia como fato gerador do ICMS. Quando se expressa “mera circulação” se refere ao fato de que o tramite de mercadorias entre os estabelecimentos de um mesmo titular não tem característica econômica, sendo assim, esta circulação seria apenas um processo técnico de identificação, no espaço e no tempo (Borges, 1971).
A doutrina, sustentou a tempos esta distinção de circulação econômica e a circulação jurídica, desta seguinte maneira:
Para haver circulação, no sentido econômico, é preciso que haja mutação ou transferência da propriedade ou da posse de mercadoria. Economicamente, não pode ocorrer circulação sem transferência da mercadoria de uma pessoa para outra. Não qualquer movimentação de bens, mas somente a circulação que tenha conteúdo econômico, legitima a cobrança (Borges, 1971, p. 34).
Neste aspecto que o conceito de “mercadoria” deve ser apreciado, para que assim, se tenha a correta compreensão do fato gerador do ICMS, pois “mercadoria” vem do latim merx, que se traduz por “coisa que se constitui objeto de uma venda” (Sabbag, 2021).
A Constituição Federal de 1988 define no artigo 155, inciso I, de forma subjacente a este entendimento de que o fato gerador do tributo está enraizado na intenção de mercancia (Brasil, 1988), ou seja, a circulação de mercadorias nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular não há intenção econômica na emissão das notas de transferências, não gerando assim a incidência do ICMS nas operações, o que na prática regulamentava-se a disposição da Súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça onde aduz que a mera circulação não é fato gerador de ICMS (STJ, 1996), contrariando o artigo 12, inciso I da Lei Complementar 87 de 1996 (Sabbag, 2021). Portanto, é imperioso dizer que:
O art. 12 pretende estatuir os aspectos temporais do fato gerador do ICMS. O inciso I, ao estatuir que ele se dá no momento “I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, “chove no molhado”, reeditando regras anteriores já desconsideradas pelo STF, como vimos. As meras transferências de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular são intributáveis pelo ICMS (Coelho, 2022, p. 402).
É notório assim dizer que a disposição legal da Lei Complementar se tornava conflituosa com o entendimento da doutrina nas operações de transferências de mercadoria entre estabelecimentos do mesmo titular. Esta ambiguidade na prática tributária motivou os Estados, em particular o estado do Rio Grande do Norte, a questionar os efeitos que incorriam na arrecadação estadual em decorrência do principio da não-cumulatividade que impactam os cofres públicos neste tipo de operação.