A Constituição brasileira se tornou uma mera folha de papel reciclado

30/11/2024 às 08:01
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Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar, de forma global, tudo o que tem acontecido no cenário jurídico-político brasileiro, e como isso afetou de forma negativa a nossa Carta Política, transformando-a numa mera folha de papel reciclado, sem identidade.

Palavras-chave: Constituição. Conceito. Classificação. Deturpação. Folha de papel.


Temos visto com muito assombro todos os acontecimentos presentes na República Federativa do Brasil na última década, especialmente após a guerra ideológica instaurada entre a esquerda e a direita políticas.

Desde já, fixamos nosso repúdio em relação a essas correntes ideológicas cujo propósito, deliberado ou não, seja de promover o esgarçamento do tecido social, pois como já dizia o imperador romano Júlio César (100 a.C. – 44 a.C): divide et impera.

Sem embargo, todas essas questões têm enfraquecido nossa Constituição Federal, pois a cada vitória conquistada pela vontade majoritária o derrotado busca o Supremo Tribunal Federal (aqui nem se fala em Poder Judiciário, já que as grandes polêmicas têm rondado com primazia esse tribunal) para fazer valer seu ponto de vista, e na maioria dos casos consegue.

Então, a despeito de vivermos em um Estado Democrático de Direito, na prática, de democrático não se trata, pois a vontade da minoria é que tem prevalecido, por força da Suprema Corte.

Assim, resta violado desde já o primeiro artigo da Constituição da Republica, que estipula um Estado Democrático de Direito e o seu parágrafo único, que prescreve todo poder emanar do povo, através de representantes eleitos ou diretamente.

Ora, se não é a vontade dos representantes eleitos que prevalece, cai por terra também o artigo 34, inciso VII, o qual permite a intervenção federal nos Estados quando o princípio republicano, o sistema representativo e o regime democrático forem torturados.

Malgrado, se a ofensa partir de um poder federal, a intervenção federal ocorrerá sobre si mesma? Serve o Estado de Defesa para restabelecer a normalidade institucional como já pretenderam Dilma Rouseff 1 e Jair Bolsonaro?

Essa situação nos remete ao símbolo do Ouroboros, que representa uma serpente ou dragão que morde a própria cauda, formando um círculo. Dentre os diversos significados, o que se amolda ao breve desabafo é o da destruição. Na mitologia nórdica, o Ouroboros corresponde ao Jörmungandr, uma serpente gigante que vive no mar, em Midgard.

Outrossim, uma curiosidade digna de nota é que o artigo 85 da Constituição Cidadã define como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra ela, e especialmente contra o livre exercício dos demais poderes constitucionais, e inclusive do Ministério Público (está destacado porque o constituinte não quis transformá-lo em quarto poder).

Ora, como a Carta Magna não definiu as condutas de atentar contra si e contra os demais poderes como crime de responsabilidade igualmente aos Ministros do STF? Silêncio eloquente? Supremacia e não independência do Poder Judiciário?

Com efeito, ao escrever sobre as várias acepções para definir o termo Constituição, assim escreveu Pedro Lenza sobre o sentido sociológico:

Valendo-se do sentido sociológico, Ferdinand Lassalle, em seu livro ¿Qué es una Constitución?, defendeu que uma Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder. Caso isso não ocorresse, ela seria ilegítima, caracterizando-se como uma simples “folha de papel ”. A Constituição, segundo a conceituação de Lassalle, seria, então, a somatória dos fatores reais do poder dentro de uma sociedade.

Assim, na linha do que temos defendido até aqui, o sentido sociológico é o que mais se aproxima da Constituição brasileira, já que ela não representa o efetivo poder social, mas a vontade do Tribunal Constitucional.

De seu turno, partindo para a classificação das constituições quanto à essência de Karl Loewenstein, leciona Flávio Martins,

a) Semântica – é a Constituição que esconde a dura realidade de um país. Lendo o texto constitucional , jamais seria possível imaginar a situação real de um determinado país. É comum em regimes ditatoriais, que tentam esconder (sob o ponto de vista normativo) seus desmandos no mundo real . Podemos dar como exemplo a Constituição brasileira de 1824, que, apesar de prever a liberdade de locomoção como direito fundamental, não foi capaz de suprimir a escravidão. Aliás, a escravidão sequer foi tema tratado na Constituição de D. Pedro I, tanto que a famosa Lei Áurea, de 1888, foi uma mera lei ordinária. Segundo Karl Loewenstein, “Se não houvesse em absoluto nenhuma constituição formal, o desenvolvimento fático do processo de poder não seria notavelmente diferente. No lugar de servir à limitação do poder, a Constituição é aqui o instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores fáticos na comunidade ”. Numa brilhante analogia feita por Loewenstein entre a constituição e uma camisa (que adiante explicarei), a constituição semântica “não é um traje, mas um disfarce”.

b) Nominal (ou nominalista) é a Constituição que não reflete a realidade atual do país, pois se preocupa com o futuro . É a Constituição que só trata dos objetivos a serem cumpridos no futuro, deixando de lado a realidade presente. Segundo Karl Loewenstein, “uma constituição pode ser juridicamente válida, mas se a dinâmica do processo político não se adapta às suas normas, a Constituição carece de realidade existencial. Nesse caso, cabe qualificar a Constituição de nominal. [...] A situação de fato impede, ou não permite por ora, a completa integração das normas constitucionais na dinâmica da vida política. [...] A esperança, todavia, persiste, dada a boa vontade dos detentores e destinatários do poder, que cedo ou tarde a realidade do processo de poder corresponderá ao modelo estabelecido na Constituição . A função primária da constituição nominal é educativa, seu objetivo é, em um futuro mais ou menos longínquo, converter-se em uma constituição normativa e determinar realmente a dinâmica do processo de poder”.

c) Normativa – é a Constituição que reflete a realidade atual do país. Isso não depende, segundo Loewenstein, apenas do aspecto normativo do texto constitucional , mas de uma relação bilateral entre os detentores e os destinatários do poder: “Para que uma constituição seja viva, deve ser para isso efetivamente ‘vivida’ pelos destinatários e detentores do poder, necessitando de um ambiente nacional favorável para sua realização. […] Para que uma Constituição seja viva, não é suficiente que seja válida em sentido jurídico. Para ser real e efetiva, a Constituição terá que ser observada lealmente por todos os interessados e terá que estar integrada em toda a sociedade estatal, e está com ela. A Constituição e a Comunidade terão que passar por uma simbiose. Somente nesse caso cabe falar de uma constituição normativa: suas normas dominam o processo político ou, ao contrário, o processo de poder se adapta às normas da Constituição e se somam a elas”. (g. n.)

Nesse particular, podemos afirmar, com certeza, que nossa Bíblia Política não é normativa, pois não reflete a realidade atual do país. Seus preceitos são belos, suas promessas são proféticas, no entanto, estão longe de serem alvejadas. O melhor exemplo é a previsão do salário mínimo como direito dos trabalhadores 1.

Em relação ao sentido semântico, apesar de ser comum em regimes ditatoriais, acreditamos que também pode ser comum em regimes pseudo-democráticos, já que escondem seus desmandos do mundo real.

Finalmente, com relação ao sentido nominal ou nominalista, é aquela que não reflete a realidade hodierna do país, pois se preocupa com o futuro, no que se encaixa o exemplo do salário mínimo.

Portanto, nos parece que a Constituição Federal de 1988 se classifica como nominal ou nominalista e semântica, haja vista o desequilíbrio entre os poderes instaurado com a investidura de juízes militantes no Tribunal Supremo, em lídima afronta ao artigo 2º do texto magno.

Com efeito, pelo texto constitucional, não poderia haver poder que se sobrepusesse a outro, haja vista a independência e harmonia necessárias, e cuja separação é cláusula pétrea (art. 60, § 4º).

Destarte, a ideia de que a última palavra pertence ao Poder Judiciário, ou de que esse poder possui supremacia, não é um dogma constitucional, mas mera interpretação de uma parcela restrita de seus membros.

Nessa senda, as Propostas de Emenda Constitucional n. 50/2023 e 28/2024 em curso na Câmara dos Deputados que permitem ao Congresso Nacional suspender decisão do Supremo Tribunal Federal que extrapole os limites de suas competências encontra guarida na Constituição de Outubroe assegura a separação dos poderes. Eis os textos das emendas:

“Art. 49................................................................................................ XIX – deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos, sobre projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do Supremo Tribunal Federal que tenha transitado em julgado, e que extrapole os limites constitucionais .

Art. 102...................................................................................................

§ 4º Nas decisões do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional em caráter concreto ou abstrato, se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá sustar os seus efeitos pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas , pelo prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por igual.

A justificativa da primeira PEC coincide com os fundamentos da presente impugnação, verbis:

Porém não há que se falar em um “Poder Supremo” para o judiciário, mas antes em dever Supremo de assegurar o respeito às leis elaboradas por aqueles que detém o poder que emana do povo, “o poder de legislar em nome do povo” . Assim, se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa decide e julga contrariando a própria Constituição e portanto a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco. (g. n.)

Nesse ponto, o texto da segunda PEC “peca” por estipular um prazo de suspensão da decisão suprema. Com o decurso do prazo, a inconstitucionalidade volta a fluir? Assim consta na justificativa:

Por outro lado, a nova regra proposta, sustar decisão do Supremo Tribunal Federal por uma das Casas Legislativas, em boa medida, apenas alonga regra constitucional já prevista na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 49, com a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal também sustar a deliberação da Casa Legislativa, o que bem pondera núcleo essencial da Separação de Poderes, freios e contrapesos.

Ora, as reformas constitucionais, a nosso sentir, visam restaurar a supremacia popular, prevista justamente no primeiro artigo da Lei Fundamental. A grande verdade é que interpretação outra nunca foi juridicamente prevista. Mas o óbvio precisa ser dito.

Ademais, as mudanças preconizadas consagram o que se denomina na doutrina estadunidense como interpretativismo.

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Conforme destaca Marcelo Novelino acerca do debate hermenêutico norte-americano,

Parte dos interpretativistas defende o respeito absoluto ao texto constitucional . Diversamente dos originalistas, preocupados em descobrir a intenção do legislador, os textualistas perseguem o significado da lei. A interpretação deve utilizar apenas ingredientes contidos na constituição , sendo o papel dos juízes limitado à aplicação de seu texto, sem modificá-lo. Magistrados não estão autorizados a elaborar "novas leis" ou perseguir fins mais amplos que os textualmente contemplados, mesmo quando consideram necessário . (g. n.)

Além disso, Novelino salienta, em relação a teoria do reforço da democracia de John Hart Ely, que nos Estados Democráticos,

A escolha dos valores predominantes deve ser feita por representantes eleitos, pois caso a maioria não concorde, tem a possibilidade de eleger outros . Em síntese: na adjudicação constitucional, o papel do juiz deve ser análogo ao do árbitro de futebol, ou seja, ele tem o dever de agir quando as regras do jogo são violadas a fim de evitar vantagens indevidas, mas não pode interferir no resultado da partida. (g. n.)

Presentemente, eis aqui o ponto fulcral da doutrina constitucionalista, pois se a maioria não concordar com a decisão judicial suprema, não existe a possibilidade de eleição de outros julgadores, já que suas investiduras são vitalícias (lembremos que vitaliciedade é característica das monarquias).

Por isso, a PEC n. 77/2019 em trâmite no Senado Federal, que atribui tempo de investidura aos juízes de tribunais superiores, é bastante republicana e democrática. Eis os termos da proposta:

"Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos (...) dentre Ministros de Tribunais Superiores, desembargadores ou juízes de Tribunais, com mais de cinquenta e cinco anos de idade.

§ 1º (...)

§ 2º O mandato dos Ministros terá duração de 8 (oito) anos , a contar da data da vacância do cargo anteriormente ocupado, permitida recondução.

§ 3º A posse no cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal implica licença do cargo ocupado .

§ 4º O retorno ao cargo anterior independe de vaga no Tribunal de origem, devendo funcionar o Magistrado como julgador extraordinário"(NR)

Dessa forma, por via transversa, temos a ditadura da minoria, compatível apenas com regimes autoritários, o que nos levou a classificar a constituição brasileira como semântica, além de nominalista, e defini-la como uma folha de papel reciclado, ou seja, já nem sabemos o que significa.

Ainda que existam doutrinadores que defendam partir a legitimidade democrática da Corte Constitucional da própria constituição, isso não assegura a ela a proeminência sobre aquele que lhe outorgou esse poder, pois sua função precípua é de guardião, e não de revolucionário.


Referências bibliográficas

Lenza, Pedro. Direito Constitucional. 26. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado)

Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.

Novelino, Marcelo. Curso de direito constitucional. - 16. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2021.


1 Artigo 7º, inciso IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

2 Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/exercito-foi-sondado-para-decretar-estado-de-defesa-diz-general

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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