Desde já, a resposta para essa pergunta é sim, mas somente quando o devedor fiduciante estiver adimplente, ou seja, com todas as suas parcelas pagas em dia, tempestivamente, e a instituição financeira (credor fiduciário) não tiver cumprido com suas obrigações contratuais e extracontratuais.
A título de exemplo, imaginem um “contrato de venda e compra de imóvel, mútuo e alienação fiduciária em garantia”, pelo programa de governo Minha Casa, Minha Vida, cujo credor fiduciário seja a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL.
De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), nestes contratos, a CEF é responsável, “conjuntamente com a construtora, pelos danos verificados em empreendimento habitacional para população de baixa renda, em que atuara mais do que como um mero agente financeiro, mas como agente executor de políticas públicas”(AgInt no REsp n. 1.611.226/SE). Isso se dá, pois incumbe à Caixa fiscalizar a construção das habitações.
Ademais, ainda de acordo com o STJ, o pedido de restituição de valores em caso de rescisão contratual pode ser movido em face do banco, o qual possui legitimidade passiva e forma litisconsórcio necessário com a vendedora/construtora do imóvel, nos seguintes termos: “a eventual legitimidade passiva da CEF está relacionada à natureza da sua atuação no contrato firmado: é responsável se atuar como agente executor de políticas federais para a promoção de moradia para pessoas de baixa renda, quando tiver escolhido a construtora ou tiver qualquer responsabilidade relativa ao projeto” (AgInt no AREsp n. 2.208.284/RJ).
Agora, suponham que o prédio construído desrespeitou as normas técnicas da ABNT NBR 15575, além de violar outros princípios e regras da construção civil. Por esse motivo, há presença de infiltração nas paredes, no banheiro, no teto, com risco de desabamento deste, comprometendo a estrutura da residência. Mais grave ainda: a água do vaso sanitário do vizinho que mora na parte de cima começou a escorrer pela lâmpada do banheiro, expondo fios elétricos e colocando em risco a segurança da família residente.
Acionada diversas vezes, a construtora/vendedora nada faz para resolver estes e outros problemas, situação que persiste por mais de anos. Pergunta-se: a devedora fiduciante, adimplente, com pagamento das parcelas em dia, pode rescindir o contrato e pedir a restituição integral dos valores já recolhidos, tendo em vista o inadimplemento do credor fiduciário e da construtora, os quais falharam em disponibilizar uma moradia digna, segura e em conformidade com as normas da construção civil?
Sim, pois de acordo com o entendimento jurisprudencial do STJ, nos casos de inadimplemento do credor fiduciário (banco) afasta-se a incidência dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997 e aplica-se o CDC, pois que aqueles tratam exclusivamente do não cumprimento do contrato por parte da devedora fiduciante.
Vejamos alguns julgados do Tribunal da Cidadania: “RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. COMPRA E VENDA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. REGISTRO. ESCRITURA PÚBLICA. COMPETÊNCIA. RELATIVA. DIREITO PESSOAL. DOMICÍLIO. CONSUMIDOR. FACILITAÇÃO. INADIMPLÊNCIA. VENDEDOR. CREDOR FIDUCIÁRIO. DIREITO À RESOLUÇÃO. ESTADO ANTERIOR. RETORNO. PARCELAS PAGAS. DEVOLUÇÃO TOTAL. ARTS. 26 E 27 DA LEI Nº 9.514/19 97. INAPLICABILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PREJUDICADO. [...]. 4. O registro em cartório de escritura pública de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária não obsta o direito à resolução por inadimplemento fundado no artigo 475 do Código Civil. 5. A existência de cláusula de alienação fiduciária em contrato de compra e venda não permite a aplicação dos procedimentos dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997 para a hipótese de inadimplemento do vendedor/credor fiduciário”(REsp n. 1.739.994/DF).
Outrossim: “[...] COMPRA E VENDA. ESCRITURA PÚBLICA COM PACTO ADJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. INADIMPLÊNCIA DA PARTE ALIENANTE. INAPLICABILIDADE DA LEI 9.514/1997.[...]. 2.1. A partir da moldura fática delineada pelas instâncias originárias, denota-se que o inadimplemento das obrigações se deu pela parte credora. Por essa razão, consoante uníssona jurisprudência desta Corte Superior, afasta-se a aplicação da Lei n. 9.514/1997, a qual incide apenas em caso de mora do devedor fiduciante” (AgInt nos EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.107.889/DF).
Ademais: “3. Consoante precedentes das Turmas que integram a eg. Segunda Seção, as disposições da Lei n.º 9.514/97, que disciplinam a alienação fiduciária na compra e venda de imóvel, só são aplicáveis à hipótese em que o devedor fiduciante não paga, no todo ou em parte, a dívida, e é constituído em mora, o que não é o caso dos autos, uma vez que, conforme apurado pelas instâncias ordinárias, foi a incorporadora que deixou de entregar a infraestrutura no prazo prometido. Incidência da Súmula n.º 568 do STJ” (AgInt no AREsp n. 2.208.284/RJ).
Além do mais, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios também possui um julgado aplicável a casos análogos, sendo este: "CIVIL E CONSUMIDOR. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. PRAZO PARA CONCLUSÃO DAS OBRAS DE INFRAESTRUTURA DO EMPREENDIMENTO. DESCUMPRIMENTO. CULPA DA CONSTRUTORA. RESSARCIMENTO INTEGRAL DO VALOR PAGO. SENTENÇA MANTIDA. 1. É possível a rescisão de contrato firmado por meio de escritura pública de Compra e Venda de Imóvel com Alienação fiduciária por tratar-se de pleito fundamentado no inadimplemento contratual de uma das partes. 2. Considerando que a rescisão do ajuste se deu em razão de culpa da construtora, que não efetuou a entrega das obras de infraestrutura do empreendimento na data aprazada, fica esta obrigada a restituir ao comprador todos os valores desembolsados.
Portanto, conforme exposto pelas jurisprudências colacionadas, tanto o banco credor fiduciário (a CEF, por exemplo), responsável pela fiscalização das construções do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, como a construtora vendedora são responsáveis pela restituição integral dos valores pagos no contrato de alienação fiduciária, quando são eles os descumpridores das obrigações contratuais e que desrespeitam os princípios da boa-fé objetiva, da probidade, da eticidade, da função social do contrato e outros mais. Dessa forma, afasta-se os artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997, aplicáveis às hipóteses de inadimplência da devedora fiduciante, e aplica-se o CDC.
Por onde, todas as prerrogativas atribuídas aos consumidores vêm em benefício do devedor fiduciante adimplente, tais como as previstas no artigo 53 do CDC, o qual dispõe que “nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor [...]”.
E no artigo 18, §1º, inciso II do CDC, de seguinte redação: “§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos”.