Resumo: O presente trabalho visa apontar a inconstitucionalidade do uso de teses que desqualificam as vítimas, bem como expor as consequências administrativas e cíveis para o profissional de advocacia e seus constituintes.
Palavras-chave: Ética Profissional; Violência Processual de Gênero; Direito das Mulheres.
1. A prática de ataques às vítimas em peças processuais.
Por muitos anos, de maneira equivocada, ilegal e antiética, incontáveis profissionais de advocacia lançaram em suas peças processuais, a fim de defender os seus constituintes, incalculáveis ataques à honra das vítimas dos seus clientes.
Na prática não é difícil lermos defesas no sentido de desqualificar as vítimas mulheres em processos de estupro, violência doméstica, feminicídio e outros mais, esses profissionais fazem o uso dessas estratégias sempre na esperança fracassada de minimizar ou justificar o ato criminoso dos seus clientes.
Em que pese o uso amplo desse tipo de estratégia de defesa, que desde já deve ser dito que não é inteligente e tampouco técnica, fato é que na sociedade atual não deve existir mais espaços para o ataque à honra, ao passado e ao nome da vítima.
2. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
Para melhor entendermos os avanços sociais nesse campo, cumpre destacar que não faz muito tempo que o Supremo nos orientou que a “Legítima Defesa da Honra”, argumentação muito utilizada em feminicídios, viola fortemente os princípios constitucionais, a dignidade humana e não se encontra resguardada pelas excludentes de ilicitude do Código Penal, sendo o seu uso completamente inconstitucional, vejamos:
O Tribunal, por unanimidade, julgou integralmente procedente o pedido formulado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade
(STF, ADPF n. 779).
A decisão da Suprema Corte foi correta, ora há anos na doutrina já se criticava a “Legítima Defesa da Honra” porque a sua aceitação partiria do “princípio de que a mulher é uma espécie de subordinada do homem e que, ao trair sua confiança, merece pagar com a vida”. (COTES, 2004, p. 30).
No mais, além de uma nítida promoção da desigualdade, o presente escrito deixa bastante claro que "a legítima defesa da honra, quando aduzida em juízo, submete a mulher a um processo barbárico de revitimização" (ABBOUD et al, 2021, p. 210), sendo certo que o profissional de advocacia viola o Art. 10-A, III da Lei n. 11.340/2006 ao fazer uso desse mecanismo inconstitucional, ilegal e antiético, devendo, assim, responder pelas consequências advindas de sua ilicitude e do abuso do direito de defesa.
3. Impactos éticos e administrativos na advocacia.
Além do precedente do Supremo, trazemos à baila o já decidido pelo Processo Consulta n° 932/2023 da OAB-BA no sentido de que a defesa que visa desqualificar e humilhar a vítima fere com o Estatuto da Advocacia (EOAB), sendo certo que o uso de termos ofensivos em desfavor das vítimas configuram a chamada “Violência Processual de Gênero”, que é perfeitamente punível com, no mínimo, suspensão (art 34, III c/c o art. 37 I, ambos do EOAB), cito abaixo o Processo Consulta n° 932/2023:
VIOLÊNCIA PROCESSUAL DE GÊNERO. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. Constitui infração disciplinar, passível da pena de suspensão de 30 dias a 12 meses cumulada com multa, praticar discriminação, considerada esta a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator. A infração corresponde a toda e qualquer forma de discriminação, independentemente da expressão utilizada pelo agressor. Poderá a OAB suspender preventivamente o(a) profissional infrator(a), na hipótese de repercussão prejudicial à dignidade da advocacia. É cabível a pena de exclusão quando configurada inidoneidade moral. O processo disciplinar será julgado conforme a análise das circunstâncias do caso concreto.
(OAB-BA, Processo Consulta n° 932/2023 - grifei).
Portanto, não há dúvidas: A violência processual de gênero e o uso de teses inconstitucionais como a “Legítima Defesa da Honra”, além de atentarem contra o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III da Constituição Federal), acabam por submeter a vítima a um bárbaro processo de revitimização, o que deve ser evitado ao máximo pelo advogado do agressor, principalmente nas ações inerentes à Lei Maria da Penha (Art. 10-A, III da Lei n. 11.340/2006).
4. Responsabilidade civil dos advogados e constituintes.
Além das consequências administrativas, que entendemos como perfeitamente justa a suspensão do profissional de advocacia com fulcro no já no Processo Consulta n° 932/2023 da OAB-BA, não podemos deixar de apontar as consequências no âmbito civil.
Esse escrito defende que a vítima tem o direito de mover em face do advogado agressor e também do seu constituinte a ação de reparação de danos morais.
Sabemos que em casos de violência doméstica, estupro e outros crimes, as vítimas preferem se distanciar do agressor, nesse caso em específico, pode a vítima, se assim desejar, apenas processar civilmente o advogado que assinou a petição com a “Violência Processual de Gênero” ou a “Legítima Defesa da Honra”.
Pois bem, em se tratando de direito civil, temos que a “responsabilidade civil está fundada no princípio do neminem laedere, ou seja, a fórmula, de elaboração romana, que nos recomenda agir de forma a não lesar os direitos de outrem." (DE FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2023, p. 622).
Por lesão, na atualidade, conforme os mesmos autores acima, não se restringe à violação expressa das normas, mas também a não observância dos princípios basilares do direito, como a dignidade humana, a igualdade, a honra e outros valores morais, cito:
Convém lembrar que a responsabilidade por fato próprio, nos nossos dias, não decorre apenas da violação de regras, mas também de princípios. É, desse modo, não só possível como comum que tenhamos fatos geradores de responsabilidade civil cuja base normativa de imputação é um princípio. Ganha, com isso, em prestígio e importância, a atividade hermenêutica, e daí se extraem maiores e mais fortes deveres de argumentação. É preciso cuidado, no entanto, com interpretações excessivamente personalísticas e com valorações pouco objetivas. (DE FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2023, p. 623).
Em se tratando de Violência Processual de Gênero e também da Legítima Defesa da Honra, as duas hipóteses configuram nítida violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade, direito à vida e à integridade física e psíquica, tais princípios foram expressamente mencionados no STF na ADPF n. 779, logo, tais defesas, além de inconstitucionais e antiéticas, configuram um verdadeiro ilícito civil gerador do dever de indenizar as vítimas ofendidas e atacadas pelo profissional, até porque a tese não é técnica, pelo contrário, é uma agressão gratuita.
Igualmente importante é mencionar que, segundo a OAB-BA, “A infração corresponde a toda e qualquer forma de discriminação, independentemente da expressão utilizada pelo agressor” (Processo Consulta n° 932/2023), por isso, o simples contexto ofensivo, ainda que não sejam utilizadas expressões obscenas e agressivas, já basta para a ocorrência do ilícito por parte do defensor, ou seja, não pode o advogado enquanto sujeito indispensável para a Administração da Justiça, utilizar como defesa qualquer contexto com o escopo de descreditar, difamar, atacar, ou humilhar a vítima, diminuindo-a enquanto mulher.
E que não venha o advogado alegar a imunidade, primeiro porque nenhuma imunidade ou direito no Brasil é absoluto.
Além de incabível a alegação de imunidade profissional, após a decisão do Supremo, este escrito entende que a imperícia do profissional é patente, o que atrai a responsabilidade civil, pois há anos já se encontra pacificado que “O profissional que ingressa com uma ação inexistente ou absolutamente inadequada para a hipótese, deverá responder por esse fato” (FREITAS, 2004).
Logo, uma vez declarada inconstitucional pelo STF a “Legítima Defesa da Honra”, temos que a tese é completamente inadequada, atraindo não somente a responsabilidade administrativa em face do causídico, mas também a civil, devendo indenizar tanto a vítima ofendida quanto eventualmente reparar os prejuízos causados ao seu cliente, que lhe confiou a melhor defesa técnica.
Nos Tribunais, tanto os advogados quanto os seus clientes foram condenados a indenizar as vítimas das petições ofensivas protocoladas em juízo, pouco importando se o caso correu ou não em segredo de Justiça (STJ no REsp 1761369 / SP, DJe 22/06/2022).
Logo, não há dúvidas de que é possível que o profissional venha a ser demandado civilmente pela parte ofendida, podendo ser condenado até R$ 20.000,00 (vinte mil reais), sendo esse o montante fixado no REsp 1761369 / SP, DJe 22/06/2022.
De mais a mais, os danos morais nascem com a violação de um direito personalíssimo, no caso tanto a honra, quanto a imagem e a dignidade humana são direitos da personalidade, justificando perfeitamente a responsabilidade extrapatrimonial.
5. Conclusões.
Pode-se dizer que tanto a “Violência Processual de Gênero” quanto a “Legítima Defesa da Honra”, são estratégias processuais antijurídicas, inconstitucionais, ilegais, antiéticas e não técnicas, violando a Lei, o EOAB e os mais variados princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição) e a igualdade.
O abuso do direito de defesa e petição, nesses casos, configura ato ilícito indenizável nos termos do Código Civil (art. 187) e da doutrina civilista, podendo o profissional e o seus constituintes serem condenados a indenizar as vítimas em até R$ 20.000,00 (vinte mil reais) nos termos do REsp 1761369 / SP.
Além da responsabilidade civil, o profissional de advocacia poderá responder junto ao TED (Tribunal de Ética e Disciplina) da OAB, podendo, nos termos do Processo Consulta n° 932/2023 da OAB-BA ser condenado no mínimo com suspensão de trinta dias com fulcro no art 34, III c/c o art. 37 I, ambos do EOAB.
Logo, não há mais espaço para a defesa com o escopo de desqualificar e humilhar a vítima, o advogado deve se atentar aos desdobramentos técnicos inerentes à possível condenação e/ou absolvição do cliente, não deve atacar a vítima, pois, se assim agir, estará violando todos os fundamentos jurídicos aqui mencionados, podendo ser condenado nas esferas administrativa e civil.
Referências
ABBOUD, Georges; SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi de Albuquerque; KROSCHINSKY, Matthäus. Entre a coisa e o homo sacer – A legítima defesa da honra e a condição feminina. Revista dos Tribunais, v. 1032, p. 205-223, out. 2021.
BRASIL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seção do Estado da Bahia. Órgão Consultivo Tribunal de Ética e Disciplina – triênio 2019-2021. Processo Consulta n°: 932/2023. Assunto: Violência Processual de Gênero. Consulentes: Carolina Stagliorio Dumet Faria, OAB/BA 76.057; Lize Borges Galvão, OAB/BA 42.994. Relator: Eurípedes Brito Cunha Junior, OAB/BA 11.433.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n 779. Rel: Min. Dias Toffoli. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Acesso em: 1 dez. 2024.
COTES, Paloma. Defesa ilegítima. Época, Rio de Janeiro, n. 299, p. 30-31, 9 fev. 2004.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 10. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora JusPODIVM, 2023.
Freitas, Wanessa Mota. Responsabilidade Civil do Advogado. Viana Jr (2004).
Abstract: This paper aims to highlight the unconstitutionality of using arguments that discredit victims, as well as to expose the administrative and civil consequences for legal professionals and their clients.
Keywords: Professional Ethics; Gender-Based Procedural Violence; Women's Rights.