Na pitoresca comarca de São Menelau – um nome tão bucólico quanto a cidade em si –, havia um magistrado cuja fama precedia qualquer sentença que proferisse. Ninguém ousava chamá-lo pelo apelido em voz alta, mas todos, do zelador ao desembargador, conheciam-no como o "Juiz Marreco". Esse apelido, por mais infame que fosse, não vinha de qualquer característica física ou comportamento impróprio, mas de um infortúnio vocal: devido a um problema crônico nas cordas vocais, o juiz falava como se fosse o próprio pato Donald, em carne, toga e bico.
A presença do Juiz Marreco na comarca transformava audiências em espetáculos tragicômicos. Não importava quão sério fosse o caso: ninguém conseguia manter a compostura quando ele iniciava suas arguições com sua voz inconfundível. Os advogados, coitados, moviam céus e terras para evitar que seus processos caíssem em suas mãos. Entre pedidos de redistribuição e manobras irregulares de agenda, o Juiz Marreco era quase um mito. Até o dia em que o destino – esse velho piadista – resolveu me jogar em uma audiência presidida por ele.
O caso era aparentemente simples: uma reclamatória trabalhista de uma ex-empregada doméstica que exigia horas extras não pagas. A cliente era simpática, mas só de lembrar das histórias sobre o juiz, minha espinha gelava. Não havia escapatória; a distribuição fora feita, e a audiência estava marcada. Minha solução? Máscaras. Mesmo com a pandemia já extinta há dois anos, sugeri que tanto eu quanto minha cliente usássemos máscaras de proteção, sob a justificativa de estarmos gripados. A parte ré e seu defensor também estavam mascarados, talvez por prudência ou pela mesma astúcia que eu tivera.
Quando a audiência começou, o juiz abriu o pregão com um "Bôá táâdee! Issstâmus aâuqí paaáah decidir issste cassôo!" – um cumprimento que soava como um balé sonoro de vogais embaralhadas. Fiz um esforço hercúleo para não desviar o olhar para minha cliente, pois temia que o menor dos movimentos desencadeasse uma crise de riso incontrolável.
O rito processual foi seguido com surpreendente precisão. O Juiz Marreco, a despeito de sua voz, tinha um senso de organização impecável. Perguntas foram feitas, provas analisadas e testemunhas ouvidas. Tudo isso, claro, ao som de sua dicção peculiar. A cada "Por favôôôrrr, respóôonda à peêêrguntaaaa", eu sentia minha alma sendo testada. Meu estômago doía de tanto contrair os músculos para conter o riso. A parte ré, coitada, tinha que responder com seriedade enquanto sua advogada engolia risos que ecoavam no fundo de suas palavras.
O ápice da audiência chegou com a sentença. Após uma pausa teatral, o Juiz Marreco começou a leitura, seu timbre marcante pontuando cada palavra: "De acccooorrdô com o cooonjuntôôôô prôbatôôórioooo, julgôô parcíííiaalmentee procedeeeenteeéé...". Eu já não aguentava mais. Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto eu fingia limpá-las com uma solenidade de mártir.
Encerrada a sessão, o juiz olhou diretamente para mim. Por um momento, temi que ele tivesse percebido meu estado. Com sua voz única, comentou: "Ééé bom verrr a alegríííía de justiça feitaaa... atééé emocióónaaa as pessôôôas." Saí da sala acenando, ainda mascarado, mas por dentro rindo tanto que mal conseguia andar.
Ao final, justiça foi feita, e uma boa história, contada. O Juiz Marreco pode até ser um personagem de tragicomédia, mas, em São Menelau, ele era também o símbolo de que a seriedade da justiça pode conviver, vez ou outra, com o riso involuntário de seus partícipes.