A Lei 14.994/24, sancionada em 2024, trouxe mudanças significativas ao ordenamento jurídico brasileiro no combate ao feminicídio e à violência de gênero. Entre as principais alterações, destaca-se a transformação do feminicídio em um crime autônomo, com pena de reclusão ampliada para 20 a 40 anos, reforçando sua gravidade como uma violação de direitos humanos. Além disso, crimes como ameaça, injúria e calúnia praticados por razões de gênero agora têm penas duplicadas. A legislação também aumentou a pena para descumprimento de medidas protetivas, fixando-a entre 2 e 5 anos de reclusão, além de multa. Essas mudanças foram acompanhadas de inovações como a perda automática do poder familiar para condenados e a obrigatoriedade do uso de tornozeleiras eletrônicas para monitoramento (Gelli; Lima, 2024).
Outro avanço importante foi a proibição de visitas íntimas para presos condenados por violência de gênero e a transferência compulsória para presídios distantes caso esses indivíduos ameacem suas vítimas durante o cumprimento da pena. Apesar das alterações representarem avanços no arcabouço legal, sua efetividade prática é questionada. A análise dessas mudanças sob a ótica do Direito Penal Simbólico sugere que o endurecimento das penas pode ser uma resposta mais simbólica do que concreta às demandas sociais por justiça e proteção às mulheres (Ortiz; Gomes, 2024).
O Direito Penal Simbólico caracteriza-se por legislações que possuem forte apelo social e político, mas cuja eficácia no enfrentamento de problemas estruturais é limitada. No caso da Lei 14.994/24, observa-se que as medidas punitivas não vêm acompanhadas de políticas públicas robustas que tratem das causas profundas da violência de gênero. A subnotificação de casos, a escassez de delegacias especializadas e a falta de programas de educação e conscientização são barreiras que comprometem a aplicação efetiva da lei e a proteção das vítimas (Gonçalves, 2024).
Ainda que o endurecimento das penas transmita uma mensagem de intolerância à violência de gênero, sua aplicação esbarra em desafios como a morosidade do sistema judiciário e a percepção de impunidade. Essas questões, associadas à ausência de apoio estrutural às mulheres, limitam a capacidade da legislação de interromper ciclos de violência. Campanhas educativas, por exemplo, são essenciais para desnaturalizar comportamentos abusivos e incentivar as vítimas a buscar ajuda. Contudo, tais iniciativas ainda não são amplamente implementadas de forma integrada com as medidas legais (Monteiro; Souza, 2007).
O Brasil, com a Lei Maria da Penha e agora com a Lei 14.994/24, possui um dos marcos legislativos mais avançados no combate à violência de gênero. No entanto, a falta de integração entre o aparato legal e as políticas públicas evidencia o risco de que tais legislações se limitem ao simbolismo penal. É necessário que as ações governamentais transcendam o âmbito punitivo e se concentrem em medidas de prevenção e acolhimento. A ampliação de delegacias especializadas, a capacitação de agentes públicos e a criação de redes de apoio para mulheres em situação de vulnerabilidade são medidas que podem garantir a aplicação efetiva da legislação e a proteção real das vítimas (Araújo et al., 2024).
A adoção de um enfoque preventivo requer mudanças culturais profundas. A educação em igualdade de gênero, desde a infância, é essencial para desconstruir estereótipos e promover relações baseadas no respeito. Essa abordagem deve ser complementada por campanhas que informem a população sobre os direitos das mulheres e os mecanismos de denúncia. Investir na formação de agentes públicos, como policiais e juízes, também é crucial para assegurar que a aplicação da lei seja sensível às especificidades da violência de gênero.
Embora a Lei 14.994/24 seja um marco importante, ela precisa ser acompanhada de ações concretas para superar as limitações do simbolismo penal. A construção de uma sociedade livre de violência exige a integração de esforços legislativos, institucionais e sociais. Apenas com uma abordagem abrangente será possível garantir que as mulheres tenham acesso pleno a uma vida digna e livre de violência.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 20 dez. 2024.
BRASIL. Lei n. 14.994, de 9 de outubro de 2024. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14994.htm. Acesso em: 20 dez. 2024.
ARAÚJO, Nivea Carolina Tavares et al. Impactos psicossociais em filhos de mulheres vítimas de violência por parceiros: uma revisão integrativa. Revista Enfermagem Atual In Derme, v. 98, n. 3, 2024.
GONÇALVES, Raquel. A nova Lei 14.994/24 no combate ao feminicídio. Migalhas, 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/417298/a-nova-lei-14-994-24-no-combate-ao-feminicidio. Acesso em: 20 dez. 2024.
GRUPO GEN. Pacote antifeminicídio: nova Lei 14.994/2024 aumenta pena do feminicídio para 40 anos. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/pacote-antifeminicidio-nova-lei-14-994-2024-aumenta-pena-do-feminicidio-para-40-anos/. Acesso em: 20 dez. 2024.
INSTITUTO MARIA DA PENHA. Tipos de violência. Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/tipos-de-violencia.html. Acesso em: 20 dez. 2024.
JUSBRASIL. Direito Penal Simbólico e Lei de Combate ao Feminicídio. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111339/direito-penal-simbolico-e-lei-de-combate-ao-feminicidio. Acesso em: 20 dez. 2024.
MONTEIRO, C. F. S.; SOUZA, I. E. O. Vivência da violência conjugal: fatos do cotidiano. Psicologia & Sociedade, 16(1), 26-31, 2007.