O direito penal do inimigo na Lei Maria da Penha

07/01/2025 às 08:11
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Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar, de forma acanhada, o avanço do chamado direito penal do inimigo nos dispositivos contidos na Lei Maria da Penha, e sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito.


Palavras-chave: Direito Penal. Lei Maria da Penha. Direito penal do inimigo.


Boa parte da doutrina penalista sempre afirmou que o direito penal do inimigo estaria presente na Lei dos Crimes Hediondos, Lei Federal n. 8.072 de 1990.


Apenas a título de exemplo, a lei supra contem crimes que vão desde o homicídio qualificado até as novas figuras do induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação realizados por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitidos em tempo real, sequestro e cárcere privado cometido contra menor de 18 (dezoito) anos e tráfico de pessoas cometido contra criança ou adolescente, incluídos pela Lei Federal n. 14.688 de 2024.


Com efeito, podemos perceber que os crimes ali enunciados possuem um alto grau de nocividade para as vítimas e para a sociedade em geral.


Ora, o direito penal do inimigo, segundo Salim e Azevedo (2024, p. 36), possui as seguintes características:


a) processo mais célere visando à aplicação da pena;

b) penas desproporcionalmente altas;

c) suprimento ou relativização de garantias processuais;

d) o inimigo perde sua qualidade de cidadão (sujeito de direitos);

e) o inimigo é identificado por sua periculosidade, de sorte que o Direito Penal deve punir a pessoa pelo que ela representa (Direito Penal prospectivo). (g. n.)


Sem embargo, quando caminhamos para a Lei Maria da Penha, Lei Federal n. 11.340 de 2006, não temos tanta convicção se as suas disposições não abraçam o direito penal do inimigo.


Verbi gratia, seu artigo 7º contempla formas de violência doméstica e familiar contra a mulher que já estão tipificadas em tipos penais:


I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; (tipo da lesão corporal)

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (tipos do bullying e stalking)

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; (figura do estupro)

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; (tipos do furto e dano)

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (crimes contra a honra)



Destarte, até esse momento, a lei choveu no molhado, pois todas as formas de violência já estão tipificadas no ordenamento para a generalidade das pessoas, bastando sua aplicação pelas autoridades públicas.


Malgrado, prossegue o normativo, agora com o artigo 12-C, autorizando que qualquer policial afaste incontinenti o (suposto) agressor da casa, nos seguintes termos:


Art. 12-C.  Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:   

I - pela autoridade judicial; 

II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou        

III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.


Nesse particular, o afastamento pela autoridade policial poderia até ser justificado, por se tratar de um profissional do direito, com possibilidade de analisar o crime em seu aspecto analítico (fato típico, ilícito e culpável). Vejamos o que diz a Lei Federal n. 12.830 de 2013, verbis:


Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.


Ademais, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que o Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, apesar de entendermos que esse primeiro garantidor é o policial ou o guarda que atenderem a ocorrência, proferindo o Aviso de Miranda e respeitando a integridade física do detido.


No entanto, em relação ao “policial”, temos dificuldade em visualizar a constitucionalidade do dispositivo. Além disso, corre-se o risco de que as Guardas Civis também restem autorizadas a cumprir a norma, pois alguns dirão que não existe proibição legal, como se o princípio da legalidade comportasse interpretação idêntica para a administração pública e para o particular.1


Outrossim, em relação as medidas protetivas de urgência e aos demais dispositivos assistencialistas, não vemos razão para não aplicá-los também a outras vítimas em situação de vulnerabilidade, como crianças, idosos e enfermos, forte no princípio da isonomia (art. 5º, CF).


Portanto, temos que essas normas relativizam garantias processuais, já que o afastamento do lar não observa o devido processo legal, e o inimigo é identificado por sua periculosidade (homem oriundo de uma sociedade machista).


De seu turno, segundo Fontes (2024, p. 85), o direito penal do inimigo é:


Teoria desenvolvida pelo penalista alemão Gunther Jakobs. Está relacionada ao funcionalismo radical, que defende a aplicação do Direito Penal de maneira rígida e incisiva a um determinado tipo de criminoso, como forma de proteção ao próprio ordenamento jurídico, a fim de garantir a efetividade das normas. Representa uma vertente do Direito Penal do autor (…) Parcela da doutrina afirma que há influências do Direito Penal do Inimigo nas seguintes normas: (…) Lei nº 11.343/06. Não obstante a existência dessas normas, sustentamos que o Direito Penal do inimigo não se aplica e tampouco seria admitido no Brasil, porque as garantias materiais e processuais inerentes ao Estado Democrático de Direito, insculpidas em cláusula pétrea constitucional, devem obrigatoriamente ser respeitadas, independentemente de quem seja o criminoso. Além disso, a adoção do Direito Penal do inimigo em um Estado que preza pelos valores democráticos constitui verdadeiro retrocesso histórico, na medida em que remonta a procedimentos característicos dos períodos anteriores ao Iluminismo, quando o acusado era despido de qualquer direito e rebaixado à condição de objeto do processo. Desse modo, revela-se inconstitucional, por violar não somente diversos direitos e garantidas fundamentais, mas também por afrontar um dos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro: o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).

Conquanto assista razão ao autor policial acerca do rechaço da Constituição Federal em relação ao direito penal de terceira velocidade, incide em negacionismo ao não conseguir constatar o momento pelo qual passa o Estado brasileiro quanto aos criminosos domésticos e aqueles que atentem contra a República.


Ora, a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça demonstra de forma velada a aplicação do direito penal do inimigo no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher. Vejamos alguns acórdãos:


AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. Tendo as instâncias ordinárias concluído pela demonstração da autoria e materialidade delitiva, a reversão das premissas fáticas do acórdão recorrido, para fins de absolvição, demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório, inadmissível pela via do recurso especial, consoante Súmula 7/STJ. 2. "A jurisprudência desta Corte Superior orienta que, em casos de violência doméstica, a palavra da vítima tem especial relevância, haja vista que em muitos casos ocorrem em situações de clandestinidade" ( HC 615.661/MS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 24/11/2020, DJe 30/11/2020). 3. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no AREsp: 1940593 DF 2021/0243448-0, Relator: Ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), Data de Julgamento: 22/02/2022, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2022)


PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA 7 DO STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. I - Tendo a Corte de origem, soberana na apreciação da matéria fático-probatória, amparada na palavra da vítima e demais provas carreada aos autos, mantido a condenação do agravante pela prática do delito de estupro de vulnerável, a pretensão da Defesa de alterar tal entendimento exigiria revolvimento fático-probatório, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ. II - É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima possui especial relevância, uma vez que, em sua maioria, são praticados de modo clandestino, não podendo ser desconsiderada, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios, como ocorreu na presente hipótese. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no AREsp: 1994996 TO 2021/0322893-4, Relator: Ministro MESSOD AZULAY NETO, Data de Julgamento: 14/03/2023, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/03/2023)


Com efeito, será que apenas os crimes contra a liberdade sexual ocorrem na clandestinidade? E os crimes de lesão corporal, tentativa de homicídio, tortura etc?

Como se não bastasse, a Suprema Corte possui tese fixada no sentido de que “os crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar são de ação penal pública incondicionada” (tema 713), onde inclusive a contravenção das vias de fato está enquadrada.


E não paramos por aqui. O Tribunal da Cidadania possui diversos entendimentos sumulados que diferenciam o infrator da Lei Maria da Penha dos demais. Vejamos alguns entendimentos:


Súmula 536: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam a delitos sujeitos à Lei Maria da Penha.


Súmula 588: A pena privativa de liberdade não pode ser substituída por restritiva de direitos quando o crime ou contravenção penal for praticado contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico.


Súmula 600: Não é necessária a coabitação entre a vítima e o autor para configurar violência doméstica e familiar, de acordo com o artigo 5º da Lei Maria da Penha.


Presentemente, se a finalidade da pena é proporcionar condição para a harmônica integração social do condenado (art. 1º, LEP), faz sentido esse tratamento discriminatório baseado em precedentes judiciais?


Nesse ponto, vemos razão nas palavras de Eurípedes Clementino Ribeiro Junior, para quemi,

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Por outro lado, durante todos esses anos temos convivido com situações absolutamente injustas, quando algumas mulheres entenderam que o rigor legal típico da lei em questão, pode ser uma via para prejudicar seu atual ou ex-companheiro, e se aproveitam disso, ainda que ele não tenha praticado nenhuma violência, visto que, conseguir uma medida protetiva na delegacia quando da lavratura de um boletim de ocorrência é quase que uma condição necessária para a formalização da notícia crime. O art. 19, § 1º da Lei 11.340/2006 autoriza a aplicação das medidas protetivas de urgência de imediato, deixando em segundo plano a necessidade de audiência das partes e da manifestação do Ministério Público; o § 5º do mesmo artigo, por sua vez, destaca que “[…] as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.” Vale observar que, nestes casos, o sujeito que tem contra si uma medida protetiva deferida, experimenta diversos dissabores no meio social, uma vez que ele é a verdadeira vítima da mulher dissimulada que constrói uma narrativa de agressões, sejam físicas ou verbais, com o único fim de causar danos ao atual ou ex-parceiro, visando garantir interesses patrimoniais e/ou até mesmo a disputa pela guarda de filhos. (g. n.)


Por conseguinte, fica lídimo que o direito penal do inimigo está presente na Lei Maria da Penha, sendo inconstitucionais suas disposições que conferem tratamento hiperbólico aos supostos agressores, em afronta ao princípio da igualdade.


Referências


AZEVEDO, Marcelo André de. Sinopses para Concursos – v. 1 – Direito Penal – Parte Geral. 14. ed. – São Paulo: JusPodivm, 2024.


DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.


FONTES, Eduardo. Direito Penal – Parte Geral – São Paulo: JusPodivm, 2024.


TORMENA, Celso Bruno Abdalla. A polícia ostensiva como primeira garantidora dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7044, 14 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99479. Acesso em: 6 jan. 2025.









1 Segundo Di Pietro, o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe. Essa é a ideia expressa de forma lapidar por Hely Lopes Meirelles (2003:86) e corresponde ao que já vinha explícito no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei”.

i Disponível em: https://www.rotajuridica.com.br/artigos/a-aplicabilidade-malefica-da-lei-maria-da-penha/

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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