Resumo: Este artigo investiga como o capitalismo globalizado tem contribuído para o enfraquecimento do poder estatal, especialmente no contexto da soberania e da regulação econômica. Discutem-se os impactos da desregulamentação, privatização e integração global sobre as funções tradicionais do Estado, assim como as dinâmicas entre atores transnacionais e locais. À luz da literatura contemporânea, argumenta-se que o Estado enfrenta novos desafios em um cenário de crescente interdependência e multipolaridade.
INTRODUÇÃO
A globalização capitalista introduziu uma nova configuração econômica e política que questiona o monopólio do Estado sobre a regulação e o poder soberano. Com o avanço de fluxos financeiros transnacionais, corporações multinacionais e organizações internacionais, as fronteiras tradicionais da soberania estatal se tornaram cada vez mais permeáveis. Este artigo analisa as causas e as consequências desse processo, focando no impacto do capitalismo globalizado sobre o poder estatal.
O CAPITALISMO GLOBALIZADO E A SOBERANIA ESTATAL
A integração econômica global aumentou a dependência dos Estados em relação aos mercados financeiros e às corporações multinacionais. Organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial promovem a desregulamentação e a privatização como condições para financiamentos, reduzindo o poder dos governos nacionais de implementar políticas econômicas autônomas. Como apontado por autores como Joseph Stiglitz, o "Consenso de Washington" consolidou esse modelo ao impor reformas que fragilizaram as capacidades estatais em economias emergentes.
Esse contexto também redefiniu a soberania estatal. Enquanto o Estado moderno era caracterizado pelo controle absoluto sobre seu território e recursos, o capitalismo globalizado introduziu novas formas de regulação baseadas em normas transnacionais e pressões de mercados globalizados. Como resultado, a soberania passou a ser fragmentada e negociada em múltiplos níveis.
Um dos pilares do capitalismo globalizado é a desregulamentação. Políticas de liberalização econômica promoveram a redução do papel do Estado como regulador, transferindo poderes para o mercado. Essa transição enfraqueceu a capacidade estatal de controlar setores estratégicos, como energia, transporte e comunicações. Ademais, crises financeiras globais ilustraram como os Estados se tornaram vulneráveis às dinâmicas de um mercado desregulado, como exemplificado na crise de 2008.
As corporações multinacionais emergem como atores centrais na globalização capitalista, acumulando poderes que rivalizam com os dos Estados. Elas influenciam diretamente a elaboração de normas internacionais e condicionam políticas públicas através de investimentos, pressões econômicas e lobbying. Muitas vezes, esses atores criam uma "normatividade privada", que transcende as regulações estatais e impõe padrões globais de conduta.
EXEMPLOS DE ENFRAQUECIMENTO DO PODER ESTATAL
Transporte público por aplicativo
A exploração do serviço público de transporte, conforme o artigo 175 da Constituição Federal, exige que sua prestação seja feita mediante concessão ou permissão, assegurando que o Estado mantenha o controle sobre um serviço essencial. Contudo, empresas como Uber e 99 operam sem as exigências de licitação previstas na legislação, burlando a necessidade de concessão. Além disso, a delegação do poder de polícia estatal, que inclui a fiscalização e o licenciamento desses serviços, é frequentemente transferida ao poder privado. Tal delegação enfraquece o papel regulador do Estado, permitindo que as plataformas de aplicativos estabeleçam suas próprias regras de operação, muitas vezes à margem da legislação vigente. Essa dinâmica cria um "poder paralelo", no qual a fiscalização estatal é reduzida, comprometendo a segurança e a qualidade do serviço, em contraste com o rigor imposto aos serviços tradicionais de táxi e transporte coletivo público.
Transporte intermunicipal e interestadual por aplicativo
A exploração do serviço público de transporte intermunicipal e interestadual, conforme previsto no artigo 175 da Constituição Federal, deve ser realizada mediante concessão ou permissão, garantindo que o Estado mantenha a supervisão de um serviço essencial. No entanto, plataformas como a Buser atuam fora dessas exigências, permitindo que empresas operem sem o devido licenciamento ou fiscalização por parte do poder público. Essa prática contraria, inclusive, as normas legais da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que estabelecem regras específicas para a exploração de áreas de atuação por empresas devidamente licenciadas e submetidas à fiscalização regulatória. A ausência desse controle efetivo gera um ambiente de competição desigual, onde empresas tradicionais cumprem rigorosos requisitos legais, enquanto plataformas digitais estabelecem um modelo paralelo de operação, à margem das regulamentações vigentes. Essa situação compromete a segurança e a qualidade do serviço, além de enfraquecer o papel regulador do Estado.
Fornecimento de alimentos por aplicativos
Serviços como iFood têm promovido uma nova dinâmica no fornecimento de alimentos, onde muitos fornecedores operam em estabelecimentos físicos não abertos ao público em geral. Esses alimentos são manipulados, preparados e acondicionados em locais que frequentemente não atendem aos requisitos sanitários básicos, sendo impossível verificar adequadamente a origem da matéria-prima e as condições físicas desses estabelecimentos. Tal prática afronta as normas rigorosas impostas pelos Códigos Sanitários dos entes federados, que demandam licenciamento e fiscalização para assegurar a saúde pública. A ausência de controle estatal sobre essas operações negligencia a obrigação de garantir que os alimentos fornecidos sigam padrões de higiene e segurança. Dessa forma, o Poder Estatal perde sua capacidade de regular eficazmente um setor essencial, permitindo que a saúde da população seja colocada em risco por lacunas de fiscalização.
Compras internacionais realizadas em plataformas digitais
A crescente popularidade de plataformas digitais para compras internacionais trouxe dificuldades significativas para a tributação e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Apesar de o artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal determinar que o Estado deve promover, na forma da lei, a defesa do consumidor, essa obrigação se torna difícil de aplicar quando os fornecedores não possuem estabelecimentos fixados no Brasil. Essas empresas, em tese, não são obrigadas a cumprir normas de proteção ao consumidor previstas na legislação nacional, como o CDC, que visa garantir os direitos do consumidor hipossuficiente frente aos fornecedores. Além disso, o controle tributário sobre esses produtos é frequentemente ineficiente, resultando em uma concorrência desleal em relação aos comerciantes locais, que cumprem rigorosos requisitos fiscais. Essa lacuna regulatória enfraquece o poder estatal de proteger tanto os consumidores quanto o mercado interno, comprometendo a efetividade de normas que visam equilibrar as relações de consumo e a arrecadação tributária.
Circulação de criptomoedas
A crescente popularidade das criptomoedas, como o Bitcoin, tem revelado desafios significativos para o controle estatal e para a segurança jurídica. Conforme destacado no artigo de Morais e Falcão (2023), as criptomoedas operam sem lastro ou regulação governamental, sendo geradas e negociadas de forma descentralizada. Tal característica dificulta a fiscalização por parte das autoridades públicas, como Receita Federal, Banco Central e CVM, além de fragilizar a aplicação de normas tributárias e leis de combate à lavagem de dinheiro. A ausência de regulação eficaz permite que as criptomoedas sejam utilizadas como meio de evasão fiscal e financiamento de atividades ilícitas, comprometendo não apenas a integridade do sistema financeiro, mas também a capacidade do Estado de garantir padrões mínimos de segurança nas transações financeiras. Além disso, o anonimato relativo proporcionado por essas moedas e a falta de supervisão por uma autoridade monetária centralizada intensificam a insegurança jurídica para os investidores e consumidores, dificultando a responsabilização em casos de fraudes ou perdas financeiras.
Substituição de cartórios pelo blockchain
A possibilidade de substituição do sistema brasileiro notarial e de registros públicos, previsto no artigo 236 da Constituição Federal, pela tecnologia blockchain, levanta debates significativos sobre o papel do Estado na regulação e controle desses serviços essenciais. O blockchain permite a criação de registros digitais descentralizados e imutáveis, eliminando a necessidade de intermediários tradicionais, como os cartórios. Contudo, essa transformação implica a redução da arrecadação estatal e a perda de controle sobre transações jurídicas, uma vez que tais registros poderiam ser realizados de forma privada, à margem do sistema público. Conforme destacado no artigo consultado, embora o blockchain ofereça maior transparência e eficiência, sua implementação enfrenta desafios legais e técnicos que ameaçam a segurança jurídica e a proteção dos direitos dos cidadãos.
Invasão dos jogos de azar
A operação de jogos de azar no Brasil, incluindo as plataformas digitais de apostas, confronta diretamente a legislação vigente, especialmente o Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), que considera contravenção penal a exploração de jogos de azar. Contudo, tais atividades continuam em plena expansão, desafiando abertamente a capacidade do Estado de aplicar e fiscalizar a lei. Essa proliferação demonstra a incapacidade do poder público em combater tais práticas, que frequentemente são operadas por empresas sediadas no exterior, fora do alcance das autoridades brasileiras. A lacuna regulatória permite a criação de um mercado paralelo, que opera à margem da legislação nacional e compromete não apenas a arrecadação tributária, mas também a integridade das normas que buscam garantir um ambiente de competição justa e de respeito ao ordenamento jurídico.
RESISTÊNCIAS E RECONFIGURAÇÃO DO ESTADO
Apesar do enfraquecimento enfrentado, o Estado tem buscado reconfigurar sua atuação para enfrentar os desafios impostos pela globalização e pela atuação de poderes paralelos. Em muitos casos, observa-se o fortalecimento de políticas públicas e de mecanismos de cooperação internacional, visando combater práticas ilícitas ou desreguladas que fragilizam a soberania estatal.
No contexto do transporte por aplicativos, por exemplo, alguns governos têm implementado regulamentações específicas, exigindo maior transparência e responsabilidade dessas empresas. Já no âmbito das criptomoedas, propostas de regulação estão sendo discutidas em vários países, incluindo o Brasil, como forma de garantir maior segurança jurídica e fiscal.
Além disso, o avanço tecnológico também pode ser utilizado a favor do Estado. A implementação de sistemas digitais, como o blockchain em registros públicos, representa uma tentativa de modernizar e tornar mais eficiente o aparato estatal. No entanto, é fundamental que essas tecnologias sejam integradas de forma regulada e transparente, garantindo que não substituam, mas complementem a função pública.
A resistência do Estado também passa pela reforma institucional, com o objetivo de tornar as estruturas públicas mais ágeis e adaptadas às demandas de um mundo interconectado. Isso inclui a criação de agências especializadas para lidar com temas específicos, como crimes digitais e comércio eletrônico, bem como o fortalecimento da fiscalização em setores sensíveis, como o de saúde pública e consumo.
CONCLUSÃO
O enfraquecimento do poder estatal frente ao capitalismo globalizado manifesta-se de forma concreta em múltiplas esferas, desde a regulação de serviços essenciais, como transporte e alimentação, até questões mais complexas envolvendo tecnologia, comércio internacional e finanças. A incapacidade do Estado de acompanhar o ritmo das transformações econômicas e tecnológicas globais compromete a sua função de garantir a aplicação uniforme das leis, a justiça social e a proteção dos direitos fundamentais. Além disso, o surgimento de poderes paralelos, sejam eles corporações transnacionais ou plataformas digitais, agrava essa fragilidade e coloca em risco a soberania estatal.
Nesse contexto, torna-se indispensável que o Estado desenvolva mecanismos mais eficientes de regulação e fiscalização, adaptados às novas realidades impostas pela globalização. Isso exige uma revisão das normas jurídicas, o fortalecimento de instituições e a cooperação internacional para lidar com fenômenos transnacionais que desafiam as fronteiras tradicionais do poder estatal. Somente assim será possível equilibrar a liberdade econômica com a responsabilidade social e a proteção dos interesses coletivos.
REFERÊNCIAS
STIGLITZ, Joseph. Globalization and its Discontents. New York: W.W. Norton & Company, 2002.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 08 jan.2025.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm Acesso em: 08 jan.2025.
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SIQUEIRA, Ariel F. R. "Jogos de Azar no Brasil: Crescente Popularidade e Seus Riscos". JusBrasil, Jul.2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/jogos-de-azar-no-brasil-crescente-popularidade-e-seus-riscos/2544136329
Abstract: This article investigates how globalized capitalism has contributed to the weakening of state power, especially in the context of sovereignty and economic regulation. It discusses the impacts of deregulation, privatization and global integration on the traditional functions of the state, as well as the dynamics between transnational and local actors. In light of contemporary literature, it is argued that the state faces new challenges in a scenario of increasing interdependence and multipolarity.