No início desse ano de 2025, resolvi fazer algumas modificações na minha sala. Mudei a posição da mesa e de um sofá, desloquei um móvel de uma parede para outra, liberando aquela em que ele estava para uma nova estante. Pilhas de livros que estavam em cima da mesa e do móvel ficaram no chão. Quando a estante chegou, o caos não diminuiu.
Ontem, levei algumas horas para montar a estante. Quando a levantei, ela desmanchou. Não sei dizer se fiz alguma coisa errado ou se já entramos numa nova fase do capitalismo. Há décadas consumimos mercadorias de péssima qualidade, geralmente programadas para esfarelar ou quebrar após alguns anos. A maldita estante parece ter sido programada para desmantelar imediatamente.
Irritado, fotografei os escombros da mercadoria e enviei uma reclamação para a loja. Estava pensando em contatar um marceneiro que conheço para encomendar uma nova estante. Mas acabei decidindo comprar uma porque o anúncio dela ficou pipocando no Facebook e no Jornal GGN também. Fui vencido pela insistência do algoritmo que parece ter sido programado para obter lucro aumentando minha raiva e o caos no meu apartamento.
Suponho que o Luis Nassif não tenha condições de saber quais anúncios são ofertados a cada usuário do portal dele. Isso é decidido automaticamente por algoritmos que criam e atualizam perfis individuais dos usuários de internet para segmentar a população de maneira a personalizar os anúncios de produtos e serviços levando em conta a maior ou menor probabilidade de cada pessoa clicar numa determinada propaganda. E aqui chegamos ao tema do assunto que realmente interessa.
A mesma lógica impenetrável pelos reles mortais que instrumentaliza o sistema de produção de consumidores virtuais controla tanto o mercado de opiniões quanto a política. Isso talvez explique as imensas tempestades de palavras que tem se formado depois que Donald Trump e Elon Musk começaram a usar armas semióticas de destruição em massa de consensos mais ou menos consolidados.
Não vou entrar aqui no mérito do que ambos tem dito. Tampouco mergulharei no Tsunami de textos e vídeos criados por políticos, jornalistas, especialistas, juristas, diplomatas e leigos para justificar, criticar ou problematizar o que tem sido dito pela dupla de governantes do universo das Fake News. Isso seria inútil e a convicção da inutilidade dessa tarefa me foi proporcionada pelo caos no meu apartamento.
Enquanto fazia fotos da estante e me preparava para enviar a mensagem à loja, tropecei casualmente numa pilha de livros e acabei topando com uma obra de Frédéric Gros que comprei e li há algum tempo. Comecei a folhear o livro para me acalmar e imediatamente relacionei o conteúdo dele tanto à dupla Trump/Musk quanto ao caos que os algoritmos amplificaram na minha vida por intermédio da malfadada estante.
Citando Durkheim, Frédéric Gros afirma que:
“A sociedade é um sistema de julgamentos. É o momento em que Durkheim ultrapassa o naturalismo grego, o contratualismo clássico, o radicalismo inglês. Não, a sociedade não é somente uma grande família, uma comunidade natural, o resultado de agregados progressivos e espontâneos de ajuda mútua… Tampouco é o procuto de um pacto fundador entre sujeitos políticos responsáveis. E, ainda, não somente uma reunião calculada de interesses, a coesão racional das utilidades. A sociedade, o ‘social’ são sobretudo, antes de mais nada, desejos padronizados, comportamentos uniformes, destinos rígidos, representações comuns, trajetos calculáveis, identidades atribuíveis, compactadas, normalizadas. Normas, para tornar cada um calculável, adequado e, portanto, previsível. Sujeito socializado, indivíduo integrado, pessoa ‘normal’, homo socius… É preciso conquistar o controle das identidades calibradas, chegar a ser aquele que é como os outros: cinza claro.”
(Desobedecer, Frédéric Gros, editora Ubu, São Paulo, 2020, p. 99)
Os algoritmos que fazem propaganda de mercadorias e que espalham Fake News de Donald Trump e Elon Musk exploram um engajamento emocional das pessoas. Algumas delas acabam comprando os produtos que lhes foram oferecidos e a esmagadora maioria participa da cacofonia de opiniões se dividindo entre os que apoiam, discordam ou são mais ou menos indiferentes em relação às propostas da dupla de governantes do universo norte-americano de Fake News.
Ao usar as plataformas de internet para fragmentar as pessoas, obrigando-as a discutir coisas absurdas (como a invasão da Groenlândia ou a deposição de Keir Starmer) Trump/Musk não aumentam o poder que exercem. O que eles fazem é ampliar a impotência do planeta inteiro dividido e reestruturado por fórmulas matemáticas criadas para incansavelmente explorar as vulnerabilidades emocionais das pessoas involuntariamente engajadas na discussão que eventualmente não lhes interessa.
Fazendo referência a Kant, Gros ensina que:
“A obediência não deve ser acompanhada de uma ausência de raciocínio, ao passo que a palavra de ordem – pronunciada, para usar os exemplos do texto, pelo funcionário do fisco, pelo oficial e pelo padre (a Administração, o Exército, a Igreja: os três núcleos de obediência cega no Ocidente) – é sempre: obedeça sem refletir. Portanto, o Iluminismo é, antes de mais nada, essa recusa de uma obediência irrefletida. Kant tampouco diz: raciocine, e logo saberá obedecer. Ele propõe a manutenção da obediência, mas acompanhada de uma vigilância crítica. As condições desse acompanhamento são definidas pela distinção entre o uso privado e o uso público da razão.”
(Desobedecer, Frédéric Gros, editora Ubu, São Paulo, 2020, p. 162)
As pessoas não precisam obedecer Trump/Musk. Mas em razão de utilizar cotidianamente smartphones, tablets, computadores e tecnologias de comunicação que possibilitam aos algoritmos das plataformas de internet criar e impulsionar bolhas de opinião a fim de manter os usuários engajados obtendo lucro em razão do número de cliques, os cidadãos obedecem cegamente a lógica matemática que estrutura o mercado de opiniões online.
Kant acreditava que a política deveria ser o resultado de um debate racional. Em razão disso, ele defendia a liberdade de expressão porque sem ela não existiria uma arena pública em que as pessoas pudessem opinar, obedecer ou discordar de uma decisão governamental. Mas na atualidade a arena pública é governada por algoritmos que reforçam a liberdade de expressão à medida que suprimem a capacidade das pessoas de deixar de participar da cacofonia intencionalmente provocada por Trump/Musk apenas para desempoderar as populações dos países obrigando-as a brigar entre si.
Os algoritmos que exploram nossas emoções e colhem nossa atenção constituem na atualidade o único núcleo de obediência cega. Mas a cegueira que nos faz obedecer ao mantra “discutam o que Trump/Musk disseram” não é oriundo do dogmatismo religioso, do autoritarismo administrativo ou da hierarquia militar. Ele é fruto do poder privado exercido pelos barões dos dados por trás das telas luminosas dos nossos smartphones, tabletes, computadores conectados à internet.
Donald Trump e Elon Musk criam a cacofonia porque acreditam que o mundo atual é dividido entre aqueles poucos que se unem para governar explorando o poder invisível dos algoritmos e a imensa massa de usuários de plataformas de internet que se confrontam (ou são artificialmente levados a se confrontar) enquanto debatem questões politicamente irrelevantes, propostas inexequíveis, absurdos retóricos que serão imediatamente esquecidos e substituídos por outras propostas igualmente abusivas.
Quem participa da cacofonia programada por Trump/Musk apenas e tão somente amplia e consolida sua própria impotência. Quanto maior essa impotência menor será a possibilidade real de união em favor de um mundo governado pelas pessoas e para as pessoas (um mundo diferente daquele que está sendo construído e reciclado diariamente por máquinas matemáticas em favor dos bilionários que comandam o show de horrores neoliberal).
Como diz Frédéric Gros citando Simone Weil:
“É preciso começar por essa pergunta. Não se surpreender nem se espantar pelo que a alma do déspota pode conter de demoníaco, fazer disso o objeto de longas litanias moralizadoras sobre a profundidade do mal, mas se deixar surpreender por outra coisa: como é possível que eles obedeçam, ao passo que, se todos se unissem, coletivamente, evidentemente prevaleceriam? Simon Weil traz uma primeira resposta ao escrever: ‘O povo não é submisso apesar de ser maioria, mas porque é maioria. Se a maioria é silenciosa, é sobretudo porque para ela é difícil encontrar uma única voz; é silenciosa porque imediatamente cacofônica. A organização das massas, o acordo imediato sobre um mesmo projeto, o fôlego comum são exceção: para entender, é preciso começar a por de lado todas as desconfianças. Ora, os rumores se espalham rápico, e sujeita-se a dignidade a não querer se deixar enganar pelo vizinho. A minoria, ao contrário, organiza-se, conspira e se solda. A elite é imediatamente solidária consigo mesma. Um povo só sente sua força quando não tem mais nada a perder.”
(Desobedecer, Frédéric Gros, editora Ubu, São Paulo, 2020, p. 51/52)
Ao que parece, na fase atual o povo está perdendo tudo em decorrência do real ser estruturado pelos algoritmos que nos excitam e nos dividem no mundo virtual. No funeral de Jimmy Carter, Trump e Obama foram fotografados tranquilamente conversando e sorrindo. Além de não serem realmente inimigos nenhum dos dois foi sequer capaz de demonstrar comedimento e respeito pelo cadáver do ex-presidente norte-americano insepulto.
Ambos sabiam que seriam fotografados. Trump, aliás, foi desconvidado pela família do ex-presidente dos EUA mas compareceu ao funeral justamente para ser fotografado. A imprensa obviamente noticiou tanto a ida dele ao enterro de Jimmy Carter enquanto ampliava o Tsunami de comentários sobre as agressões verbais dele à soberania da Groenlândia e do Canadá. E assim chegamos ao coração do problema.
“O que chamamos ‘capitalismo’ é difuso, complexo, proteiforme. O fato é que entre a sistematização da participação acionária dos operários, a importância da especulação financeira, o princípio generalizado do endividamento e as acelerações propiciadas pelas novas tecnologias, foi um novo capitalismo que se impôs há várias décadas: um modo de criação das riquezas pela dívida e pela especulação que desqualifica o trabalho (o salário é bom para os pobres), extenua as forças e o tempo. Não é exatamente que nos precipitemos rumo ao abismo – e ainda menos a um muro -; o próprio abismo é essa precipitação. O enriquecimento se faz em detrimento da humanidade futura.
Este mundo, com suas desigualdades abissais, o colapso de seus fundamentos naturais, sua disparada suicida, este mundo que estamos deixando como um legado nauseabundo às gerações futuras é o nosso. E quando digo ‘nosso’, não é só por dizer hoje em relação a ontem. Digo ‘nosso’ para dizer: o mundo que construímos, e aceitamos que fosse edificado, já há várias décadas, o mundo em todo caso que deixaremos àqueles que virão depois de nós. Eles nos considerarão de um egoismo demente, de uma irresponsabilidade mortal.”
(Desobedecer, Frédéric Gros, editora Ubu, São Paulo, 2020, p. 15)
Nesse ponto eu discordo de Frédéric Gros. O mundo já não é mais nosso porque nós mesmos o perdemos sempre que ligamos nossos smartphones, tabletes e computadores para ver o que Trump/Musk disseram e tecer comentários sobre assuntos que de fato são menos importantes.
No mundo atual só comandamos a nós mesmos quando nos recusamos a participar da turba que apoia ou discorda da dupla de governadores do White Ass Fake News Empire? A resposta parece sim. Mas se pensarmos melhor, devemos considerar a possibilidade da resposta à pergunta ser não. Afinal, nós só comandaremos a nós mesmos quando aprendermos como os algoritmos programam o mundo forçando-nos a debater coisas irrelevantes enquanto outras (como a própria programação algorítmica do debate político e da realidade, por exemplo) nem mesmo são questionadas.
As tecnologias que utilizamos nos tornam extremamente vulneráveis à manipulação emocional, elas criam a dispersão política ao empoderar campanhas de Fake News iniciadas pela dupla Trump/Musk. Isso se torna um problema ainda maior porque os jornalistas são inevitavelmente capturados pelo feedback loop ampliando a cacofonia que divide e desempodera a população. É preciso romper com esse ciclo, mas para fazer isso seria preciso se desligar do debate que está nos sendo proposto.
Frédéric Gros me ajudou a escapar do caos criado pela dupla Trump/Musk. Com um pouco de paciência, cola e parafusos sobressalentes consegui finalmente montar a estante mencionada no início. Ela ficou suficientemente firme para receber meus livros. Mas antes terei que fixá-la na parede, porque não quero ser vítima involuntário dela.