Introdução
Há quem advogue que, no Brasil, o executivo ainda detém traços de regime autoritário, tem comando vertical e proteção não muito velada das Forças Armadas, e que a estrutura constitucional econômico-financeira do país e ainda o tratamento dado às comunicações reforçam o estatismo 1.
A CF88 foi concebida como um pacto social, com progressão lenta e gradual da abertura democrática e ganho de direitos sociais. A formação do “Centrão”, a partir de conflitos internos do PMDB, propiciou que vários acordos fossem feitos ao longo do estabelecimento do texto constitucional definitivo, e alguns direitos sociais, tidos como importantes, não foram privilegiados, ao passo que institutos conservadores, em relação às Forças Armadas, por exemplo, foram mantidos. Tem alicerce na divisão dos poderes – cabe ao executivo e ao legislativo respeitarem os ditames constitucionais, aqueles mesmos responsáveis por lhes dar condições de galgar ao poder, e ao judiciário, sobretudo à Corte Superior, vigiar o cumprimento de tal desiderato.
Não faltou proteção aos direitos fundamentais, à igualdade na obediência às leis, ao voto livre e direto, mas algumas emendas reforçaram o conservadorismo, enquanto os direitos sociais, atrelados a políticas públicas, e estas ao desenvolvimento econômico, ainda não tiveram maior reforço.
Características constitucionais e aplicabilidade
A CF88 foi promulgada com o rótulo de “social”, mas ainda mantendo muitas características neoliberais e o conjunto de tais elementos faz com que alguns não vejam possibilidades de reformas eficazes, que não com uma nova Constituição 2, mas olhemos a situação por outro ângulo.
O primeiro governo PT instituiu políticas sociais direcionadas aos mais pobres. Surgiram o “bolsa família”, o crédito para adquirir moradia digna, a ampliação de vagas estudantis públicas, bolsas e financiamentos estudantis em instituições privadas. Foi um avanço na ampliação dos direitos sociais. No entanto, houve erros de planejamento, impedindo crescimento da classe média, restringindo maior desenvolvimento econômico-financeiro, entre outros, que agora se repetem.
Com isto, esgotaram-se os recursos de obtenção de apoio popular, houve revolta nas ruas, impulsionando o “impeachment” de Dilma e, depois de governo de transição, aliás, bastante ativo, a eleição de líder de características neoliberais marcantes.
Há necessidade de estudo mais profundo do governo Bolsonaro, abalado em grande parte pela epidemia Covid-19 e de final tão tumultuado. Os operadores do Direito, os estudantes, os doutrinadores, todos devem ter cuidado extremo ao analisar fatos tão graves que ocorreram em torno da nova posse de Lula. Tais fatos constam de fase processual complexa, com muitos atores envolvidos e opiniões radicalizadas de ambos os lados, seguindo a polarização política atual do Brasil.
Tomemos os fatos principais com as devidas ressalvas. Quando Bolsonaro afirma que as eleições foram fraudadas e que “é um grande risco o grupo opositor assumir o poder”, algo semelhante ao que fez Trump, ao perder para Biden, é inevitável a lembrança de militância democrática negativa, confundindo a opinião pública, com o aparente objetivo de tornar-se autocrata legal (é claro que tudo seria diferente se tivesse como provar o que afirmara, o que não ocorreu). Os efeitos foram extremamente nocivos, implicando invasão do Planalto (e do Capitólio), com destruição de patrimônio público, ainda bem que sem perdas de vidas, comprometendo amplamente a imagem do país no exterior.
Pois bem, a CF88 ofereceu condições legais para que tudo aquilo fosse reprimido e debelado. O Judiciário pôde agir com firmeza, autorizando prisões, suspensão de patentes militares, reforçando sobretudo que a divisão de poderes estava mantida e, com base sólida, exercendo militância democrática judicial altamente positiva num primeiro momento, mesmo que o processo leve, ao final, a conclusões antagônicas. O STF agiu como devia, no momento em que devia, para legitimar a democracia. A militância antidemocrática foi desativada. A CF88 mostrou-se forte e rígida, no momento em que a democracia foi ameaçada, permitindo ao STF agir como agiu.
Rigidez constitucional
As dificuldades legislativas para aprovar emendas, ainda sujeitas à apreciação judicial, e a presença de cláusulas pétreas conferem à CF88 rigidez suficiente para não ser permeável a mudanças deletérias de sua estrutura com facilidade. Além de tudo, obriga novas normas a revisão do próprio legislativo (a casa revisora, Câmara ou Senado) e do Judiciário, ainda carecendo de sanção executiva, conferindo à democracia extrema proteção.
A Carta Magna autoriza plebiscito e referendo, mas também autoriza “impeachment”. Pode ser conservadora na forma de governo, mas é altamente protetiva da democracia. As maiores críticas que recebe, ocorrem no âmbito da normatização econômica e tributária, talvez contendo um pouco o desenvolvimento e melhor distribuição de renda, com insatisfatório cumprimento material dos direitos sociais, mas ao menos oferece condições, às vezes astutamente contornadas, para que excessos de gastos possam ser contidos.
Talvez a rigidez ante a emendas desestimule que tais modificações sejam mais insistentemente buscadas, mas isto tem o lado positivo de estimular debates mais profundos, inclusive com participação popular, evitando diretrizes orçamentárias equivocadas ou mal-intencionadas, que agravem ainda mais o equilíbrio econômico.
É claro, que, na sua atuação, o STF também não deve extrapolar limites, mesmo porque “o remédio pode matar”, segundo o próprio Fachim. O ativismo judicial excessivo também é prejudicial ao país. Há que se controlar vaidades, e aguardar o momento oportuno para exercer a ação oportuna. De nada adianta pressionar o executivo e o legislativo a propor políticas públicas, como há pouco ocorreu na Colômbia 3, sem a devida análise do contexto econômico e do que se tem para gastar.
Considerações Finais
Uma nova Constituição pode abrir brechas indesejáveis à estabilização de uma democracia jovem como a brasileira. Inteligência, bom senso e boa governança são elementos essenciais para o crescimento econômico e, daí, o aprimoramento das concessões sociais torna-se mais viável. O simples aumento de tributos e a taxação massacrante dos maiores empresários estão longe de ser a solução. Mais importante ainda é a possibilidade de julgar as ações do governo nas próximas eleições. O povo que esteja atento.
Referências
1 Reis DA. A Constituição cidadã e os legados da ditadura. Locus, Revista de História. 2018. 24:277-97
2 Araujo C. Trinta anos depois: a crise da Constituição de 1988. Locus, Revista de História. 2018. 24:299-329
3 Garavito CR, Franco DR. Cortes y Cambio Social. 2010. Bogota: Antropos. 290p.