Minimum et minimorum

21/01/2025 às 17:57
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Direito Penal Mínimo

Minimum et minimorum

Minimum Criminal Law

Resumo: Muito se tem discutido sobre a crise do Direito Penal, no Brasil e no mundo, e a discussão sobre o tema centra suas ideias fundamentais na necessidade de se rever o instituto da pena privativa de liberdade, as práticas punitivas em sentido amplo; de se estabelecer mecanismos despenalizadores ou descriminalizantes que passam pela intervenção mínima e pelos sistemas consensuais de justiça penal; a criação de um Direito Penal administrativo, como espécie dissidente do Direito Penal classicamente conhecido, que a partir de então poderia passar a ser chamado de Direito Penal de justiça (1); de acentuar a aplicação das denominadas penas alternativas, ou substitutivos penais, como é da preferência de vários estudiosos da matéria, chegando-se ao extremo da proposta abolicionista, bem a gosto de Louk Hulsmann. O direito penal mínimo é uma corrente doutrinária que defende que a privação de liberdade deve ser aplicada apenas quando houver um risco social efetivo. O princípio da intervenção mínima, que está relacionado ao direito penal mínimo, defende que o direito penal deve intervir o mínimo possível na vida em sociedade. Ele só deve entrar em ação quando os outros ramos do direito não forem capazes de proteger os bens mais importantes.

Palavras-chave: Direito Penal. Direito Processual Penal. Constituição Federal brasileiro de 1988. Pena. Ius puniendi. Garantismo penal.

Abstract: There has been much discussion about the crisis in Criminal Law in Brazil and around the world, and the discussion on the subject focuses its fundamental ideas on the need to review the institution of custodial sentences and punitive practices in a broad sense; to establish decriminalizing or decriminalizing mechanisms that involve minimum intervention and consensual criminal justice systems; to create an administrative Criminal Law, as a dissident species of the classically known Criminal Law, which from then on could be called Criminal Law of justice (1); to emphasize the application of the so-called alternative penalties, or penal substitutes, as is the preference of several scholars on the subject, reaching the extreme of the abolitionist proposal, much to the taste of Louk Hulsmann. Minimum criminal law is a doctrinal current that defends that the deprivation of liberty should be applied only when there is an effective social risk. The principle of minimum intervention, which is related to minimum criminal law, argues that criminal law should intervene as little as possible in society. It should only come into play when other branches of law are unable to protect the most important assets.

Keywords: Criminal Law. Criminal Procedural Law. Brazilian Federal Constitution of 1988. Penalty. Ius puniendi. Guarantee law

Realmente precisamos realizar algumas reflexões sobre o Direito Penal Mínimo, ainda que haja críticas ao sistema punitivo vigente como forma eficiente de aplicar o ius puniendi do Estado.

Deve-se analisar os mecanismos de aperfeiçoamento do sistema penal e sistema processual penal e, ainda buscar com precisão quando a intervenção do Estado para a concretização da segurança pública se torne realmente necessária.

O Direito Penal é um dos ramos do Direito mais massacrados pelos veículos de comunicação na contemporaneidade. E, confesso que escutar certos comentários me causam náuseas absurdas. Não espero que jornalistas e apresentadores de televisão tenham mediano conhecimento sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, mas os arroubos nos comentários nos trazem perplexidade e aflição. As vezes, fico a pensar que são apenas interjeições para angariar a simpatia do público...

É sabido que para os leigos, em suas opiniões sobre os métodos mais eficazes de combater a criminalidade passam pela majoração ou agravamento das penas, a contínua aplicação da prisão provisória, a expansão da aplicação de penas privativas de liberdade, a defesa de diminuição da maioridade penal , o afastamento de progressão das penas e, entre outros.

Cumpre informar que o Código Penal brasileiro não está desatualizado, pois tem sido alterado ao longo do tempo por meio de leis complementares e reformas legislativas.

A última alteração do Código Penal foi a Lei 14.532/2023, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2023. A lei modificou o Código Penal e a Lei de Racismo , com repercussões no processo penal brasileiro.

Recentemente, foi sancionada a Lei 14.994/2024, que alterou vários dispositivos do Código Penal. A lei trouxe mudanças significativas na forma como o feminicídio é tipificado, aumentando a pena de reclusão para 20 a 40 anos.

Outras leis que alteraram o Código Penal incluem: Lei 12.015/2009, que alterou artigos da parte especial do Código Penal para punir crimes sexuais; Lei 8.072/1990, que trouxe contribuições para o Código Penal, passando a punir os crimes mais graves com punição específica mais rígida.

Já o Código de Processo Penal brasileiro (CPP) é por muitos considerado como desatualizado, foi criado em 1941 e sofreu algumas alterações, porém, estudiosos consideram que ele precisa de mudanças mais radicais para acompanhar a evolução da sociedade brasileira.

A Lei 14.197/2021 revogou a Lei de Segurança Nacional e incluiu o Título XI, que trata de crimes contra o Estado Democrático de Direito .

A Lei 13.964/19, de 2019, trouxe mudanças na legislação e nos processos penais.

O PL 8.045/2010 , conhecido como "novo CPP", tramita na Câmara dos Deputados e propõe mudanças nos ritos processuais e recursos

Particularmente, a respeito de crimes de maior repercussão midiática, resta arraigado na coletividade, o íntimo desejo de vingança, há até quem defenda a pena de morte, e visualiza o infrator delitivo como um inimigo de toda a sociedade.

Não se cogita em ressocialização dos apenados e nem mesmo quando o infrator se arrepende sinceramente, e decide não mais atingir o bem jurídico tutelado.

Porém, paradoxalmente, o recrudescimento das penas e a expansão do Direito Penal não têm acarretado a diminuição da criminalidade, ao revés. A efetiva aplicação da pena não cumpre qualquer objetivo de ressocialização, eis que muitas vezes os ingressos no Sistema Penitenciário saem de lá mais habilidosos e propensos ao cometimento de novos crimes, seguindo então sua saga criminosa.

Sendo conveniente analisar detidamente o papel contemporâneo do Direito Penal e do Processual Penal quando se apresenta o movimento abolicionista.

Cogitar na deslegitimação do poder punitivo e de sua incapacidade para resolver conflitos, é propor o desaparecimento do sistema penal com a substituição de modelos de solução de conflitos alternativos, preferencialmente os informais.

A principal diferença entre a transação penal e o acordo de não persecução penal (ANPP) é a pena máxima prevista para o crime.

Transação penal: É um benefício despenalizador que se aplica a infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, com pena máxima de até 2 (dois) anos.

ANPP: É um acordo que pode ser feito para crimes com pena mínima de até 4 (quatro) anos. Além disso, a transação penal é oferecida na audiência preliminar, antes da denúncia, e a aceitação extingue o processo. Reprise-se que o ANPP é um acordo negociado entre o Ministério Público e o acusado, que resulta no não oferecimento da denúncia.

Outros requisitos para a transação penal e o ANPP são: Ser réu primário ; Ter bons antecedentes; Não ter feito uso do benefício nos últimos 5 (cinco) anos; Ter boa conduta social ; O caso não pode estar sob o rito da Lei Maria da Penha; O crime não pode ter sido cometido com violência ou grave ameaça; O investigado deve confessar formalmente o crime.

A tese abolicionista conta com inúmeros mentores com diversa base ideológica, como Louk Hulsmann , Thomas Mathiesen (marxista de primeira fase), Nils Christie e, até mesmo Michel Foucault ( embora não totalmente integrado ao movimento).

O abolicionismo proposto por Louk Hulsman, falecido em 2009, foi, sem dúvida, o seu maior expoente, através de sua obra intitulada "Penas Perdidas - o sistema penal em questão" que nos trouxe um minimalismo exacerbado e, nos fez concluir que se trata de utopia.

Aliás, diariamente surge o criminalizar novas condutas através de tipos penais específicos. Pois os tipos penais gerais não servem, só parecendo haver concreta proteção de qualquer direito, se, for criado um tipo penal específico. É o caso do feminicídio .

De acordo com a corrente abolicionista mais xiita, a pena e próprio Direito Penal só possuem efeitos prejudiciais se comparados com os efeitos positivos. Tanto que se busca a total eliminação de qualquer controle formal do delito, que deveria ceder lugar aos outros modelos informais de solução de conflitos.

Dentro os problemas enfocados e que acarretariam a extinção do sistema penal formal é, sua faceta maniqueísta. Pois ressaltou Hulsmann, o policial, o juiz, o legislador, mesmo sendo frequentemente questionados em suas práticas pessoais e coletivas, geralmente, são vistos como representantes da ordem e, portanto, do bem.

E, assim, diante de tais símbolos da justiça, do direito, da reta consciência, os delinquentes são encarados como uma espécie à parte, são anormais sociais que deveriam ser facilmente identificáveis já que não seriam como os outros.

Francesco Carnelutti, in litteris nos ensinou:

“A primeira coisa que ensina a experiência penal é que a penitenciária não é de fato diferente do resto do mundo, tanto no sentido que também o resto do mundo é uma grande casa de pena. A ideia de dentro estarem apenas canalhas e fora somente honestos não é mais que uma ilusão; aliás, ilusão é que um homem possa ser todo canalha ou todo honesto”. (In: CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal . 2ª.ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 82).

No livro analisado “Misérias do Processo Penal” de Francesco Carnelutti, em tese, o célebre autor processualista penal versa sobre diversas questões jurídicas e, consequentemente, processuais, além de destacada crítica ao “modo jurídico de ser”, com seus “quês” de formalismos e tecnicismos, por vezes, necessários. A obra foi escrita em 1957, e teve tamanha repercussão no âmbito jurídico.

O escritor vai abordar de alguns aspectos processualistas, como, por exemplo: A toga, O preso, O advogado, O juiz e as respectivas partes, A parcialidade ou não do Defensor, As diversas Provas criminológicas e fatídicas, A sentença, o futuro do Direito Processual Penal, dentre outros aspectos extremamente relevantes para o Direito Penal e o respectivo Direito Processual Penal.

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Carnelutti assegura que o juiz para ser diferenciado do Promotor, do Advogado de defesa, do Defensor e demais serventuários do Poder Judiciário, deve estar previamente togado, traje este que lhe confere um simbolismo de autoridade, fazendo jus a algumas premissas processuais quanto ao aspecto do réu.

Por outro vetor, o sistema punitiva constituiria uma máquina desconexa e burocratizada, uma vez que suas instâncias seja na Polícia, no Ministério Público, na magistratura, agentes penitenciários atuam de forma compartimentada e até ilógica.

As maiores críticas contra a prisão que se revela inútil, despersonalizada e dessocializante. O preso passa a conhecer um mundo artificial onde tudo é negativo, composto de violência intrínseca, um mal social, sem haver qualquer efeito positivo.

Não haveria, ainda, qualquer atenção à complexidade dos fatos e situações e à complexidade das pessoas, de forma que o sistema penal se interessa por um fato isolado, um “flash”, desprezando todas as circunstâncias que o norteiam. Ademais, não permite uma aproximação psicológica entre o juiz e o acusado, predominando a máxima “eu não sou como ele”.

Destacou Hulsmann:

“[...] a desumanidade do sistema penal está, em parte, na situação em que reciprocamente se colocam o imputado e os agentes que tratam com ele. No contexto deste sistema, onde aquele que é acusado não pode verdadeiramente falar, onde não tem a oportunidade de se expressar, o policial ou o juiz, mesmo que queiram escutá-lo, não podem fazê-lo. É o tipo mesmo de relações instituídas por este sistema que cria situações desumanas [...]”.

“[...] Todos nós existimos juntos numa espécie de comunhão cósmica. Quando se tem consciência disso, desenvolve-se uma espécie de respeito, de delicadeza, de ajuda mútua. Isto implica (sic) num sentimento de responsabilidade, numa especial atenção para com os mais fracos, os que estão em dificuldades”.

Em adição, o sistema deveria ser abolido por só contar com a reação punitiva, apurando-se, igualmente, que poucos são os que ingressam no sistema formal, acarretando uma disparidade entre as condutas praticadas e a efetiva incriminação, o que Hulsman chama de cifra negra.

Se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se poderia fazer seria acabar de uma vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício.

Zaffaroni faz referência a uma “utópica legitimidade do sistema penal”, ressaltando que, embora o sistema penal “formal” não seja mais do que o apêndice justificador do verdadeiro exercício de poder dos órgãos do sistema penal, a legalidade nem mesmo é respeitada em sua operacionalidade social, sob o seguinte aspecto: o discurso jurídico-penal programa um número incrível de hipóteses em que, segundo o “dever-ser”, o sistema penal intervém repressivamente de modo automático.

Porém, as agências do sistema penal dispõem apenas de uma capacidade operacional ridicularmente pequena se comparada à magnitude do que foi planejado .

Assim, que a disparidade entre o exercício do poder programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal, mas, se por uma circunstância inconcebível, este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população.

Assim, diante da absurda suposição de criminalizar reiteradamente toda a coletividade, o sistema penal estaria estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis.

Aliás, a crítica abolicionista advém justamente do questionamento dos critérios, bem como da necessidade do tipo penal incriminador, passando pela escolha das pessoas que, efetivamente, sofrerão os rigores da lei penal, eis que a “clientela” do Direito Penal é constituída pelos pobres, miseráveis, desempregados, estigmatizados por questões raciais, relegados em segundo plano pelo Estado, que deles somente se lembra no momento crucial de exercitar sua força como forma de contenção das massas, em benefício de outra classe, considerada superior, que necessita desse “muro divisório” para que tenha paz e tranquilidade.

A grande meta do pretenso abolicionismo é, enfim, o desaparecimento do sistema penal, mas isso, não significaria a abolição total de todas as formas coercitivas de controle social. Pois o fim do sistema punitivo estatal abriria caminhos para uma nova justiça .

A questão da relatividade do conceito de infração diz respeito à sua variação no tempo e no espaço, de tal modo que o que é “delituoso” em um contexto é aceitável em outro. De tal forma, conforme você tenha nascido em um lugar ao invés de outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível de ser encarado pelo que fez, ou pelo que é.

Aceitando e incrementando as regras civis de indenização, as quais seriam muito melhores “que trabalhar com o conceito metafísico de culpabilidade”, eis que a maioria dos fatos criminalizáveis já são resolvidos pela sociedade de maneira informal.

Adaptando a resposta estatal punitiva para as situações problemáticas, respeitando as diversidades pessoais, pois muitas vezes o que a vítima deseja não é a punição formal do culpado, mas a reparação dos seus danos e prejuízos.

Com enfoque na solidariedade e aproximação das pessoas, abrindo espaço para o consenso e para os contatos “cara a cara”.

A sociedade, assim, contaria com inúmeras formas não penais de solução de conflitos (reparação civil, acordo, perdão, arbitragens, mediação etc.) e poderia desenvolver muitas outras.

Principalmente, o abolicionismo parece não considerar o fato de que é o risco de prisão que faz com que muitos aceitem a possibilidade de reparação do dano ou de indenização à vítima, submetendo-se a toda sorte de acordos como forma de se esquivar da pena privativa de liberdade.

A tese abolicionista sempre foi duramente criticada. Entre os próprios abolicionistas, a exemplo de um grande expoente, Thomas Mathiesen, reconhece-se a impossibilidade de se dispor do sistema penal. Ao questionar se o abolicionismo seria um sonho impossível, ele admite a possibilidade de se encarcerar alguns indivíduos, embora defenda uma reforma plena da estrutura atual de encarceramento.

Quando cogitamos de Direito Penal Mínimo, procura-se um ponto de equilíbrio entre posições extremas que são o abolicionismo, e o direito penal máximo. Nota-se que ambos são utópicos.

Cumpre destacar a manifestação de Paulo César Busato: “Sustenta-se que o Direito Penal é um instrumento jurídico configurado pelos que detêm o poder de representação da sociedade no legislativo e que se aplica àqueles que o contrariam. De outro lado, isso não significa admitir que esse estado de coisas está legitimado, que as penas aplicadas são acertadas, que servem para a efetiva convivência social, que respeitam a dignidade da pessoa humana, que se aplicam atendendo a critérios de igualdade, que as penas resultam proporcionais à gravidade das agressões, que as penas se estabelecem atendendo ao critério de merecimento de pena etc.”.

Estas todas as questões constituem justamente o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a aplicação do Direito penal e que devem vir à tona em contraste com os resultados práticos que resultam de seu emprego.

Enfim, o curial é identificar o bem jurídico merecedor da proteção penal é a principal questão, pois a Constituição Federal brasileira vigente não apresenta um conceito, servindo apenas como limite negativo de valoração. A partir da teoria monista personalista, os interesses gerais só se podem reconhecer legitimamente na medida em que sirvam aos interesses pessoais.

Assim, o Direito Penal, como mecanismo de controle social, só deve atuar quando se produzam lesões ou perigos de lesão intoleráveis contra os bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento do ser humano em sociedade.

A subsidiariedade, por outro lado, condiciona a intervenção do Direito Penal à incapacidade de os demais mecanismos de controle social resolverem, adequadamente, o problema. Com efeito, se o conflito pode ser resolvido por outra instância que não penal, esta não deve ser utilizada.

Para Claus Roxin, o Direito Penal é a última dentre todas as medidas protetoras que se devem considerar. Por isso, a pena é denominada como ultima ratio da política social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.

Segundo Paulo de Souza Queiroz, a intervenção do Direito Penal há de pressupor o insucesso das instâncias primárias de prevenção e controle social, família, escola, trabalho etc., e de outras formas de intervenção jurídica, civil, trabalhista, administrativa, somente se justificando a sua aplicação concreta se e quando seja realmente imprescindível e insubstituível.

Questiona-se: uma reflexão: nos casos de apropriação indébita previdenciária, crimes contra a ordem tributária e sonegação de contribuição previdenciária, se o bem jurídico é relevante a ponto de demandar a intervenção do Direito Penal, por que o lançamento definitivo do crédito é condição para a tipicidade, conforme a Súmula vinculante n. 24 do STF ? Principalmente, por que o pagamento extingue a punibilidade?

E o art. 1º da Lei nº. 8.137/1990 cogita em prestar declaração falsa, fraude à fiscalização tributária, entre outras condutas. Esta opção por extinguir a punibilidade pelo pagamento ou a dependência da constituição definitiva do crédito revela, infelizmente, que este bem jurídico não impõe a intervenção do sistema penal através de um tipo penal específico, sob pena de desvirtuamento. Bastaria incriminar pelo uso de documento falso ou pela falsificação material ou ideológica.

Se uma conduta dessa natureza é praticada, a punibilidade se converte em moeda de troca. Se o tributo é pago, a ação penal se extingue. É importante a reflexão: como pode a consequência do descumprimento da legislação sem realizar o pagamento a que o contribuinte estava obrigado desde o início? Assim, a incriminação acaba não passando de um mecanismo de cobrança, o que é um absurdo.

Além disso, existem inúmeras normas incriminadoras absolutamente sem qualquer aplicação. O Direito Penal reluta em abandonar antigas incriminações em que a intervenção já não faz muito sentido: lei de contravenções penais ; os arts. 161 e 162, com os crimes de alteração de limites, usurpação de águas, esbulho possessório, supressão ou alteração de marca em animais, entre outros

Como expõe Rogério Greco, incontáveis infrações penais deverão ser retiradas de nosso ordenamento jurídico-penal, permitindo que aquelas condutas que afetem bens jurídicos de relevo recebam, com a agilidade necessária, a punição do Estado (In: GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 7ª. ed. Niterói: Impetus, 2014).

Bem leciona Rogério Greco, o número excessivo de leis penais, que apregoam a promessa de maior punição para os delinquentes infratores, somente culmina por enfraquecer o próprio Direito Penal, que perde seu prestígio e valor, em razão da certeza, quase absoluta, da impunidade.

Por outro lado, há imensa ilusão em se supor que o agravamento das penas previstas, por si só, trará reflexão e prevenção de novos crimes. Cesare Beccaria já advertiu que uma efetiva punição produz melhores resultados que o aprofundamento de sua gravidade.31

As verdadeiras e endêmicas causas de criminalidade não são alcançáveis pela via da incriminação ou da repressão com Direito Penal, mas sim, pelo trabalho no âmbito social, cada vez mais abandonado.

É da ausência do Estado que se alimenta o poder paralelo e da interferência do crime nas instâncias de poder , isto é, passividade para com o crime organizado propriamente dito – que deriva a impunidade.

Os exemplos de punições anteriores ou a gravidade da pena não se têm mostrado eficazes para inibir novos comportamentos delituosos. Basta citarmos crimes de grande repercussão que se repetem anualmente, independentemente da gravidade da pena aplicada no caso anterior.

Sobre a questão, Louk Hulsman, ao ser indagado sobre as utopias do abolicionismo, assim expressou: “a minha utopia não é maior que a do sistema penal”.

A criação desmedida de novos tipos penais e o agravamento das penas não têm contribuído para o alcance de qualquer ideal de prevenção de novos delitos ou inibição da reincidência. Muito Direito Penal, de fato, corresponde a Direito Penal nenhum.

O combate à impunidade demanda, assim, temperamento na definição dos rumos do Direito Penal, a fim de que a sua ampliação desmedida não comprometa a sua efetividade e, consequentemente, não afaste o respeito da população aos seus ditames

Referências

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BUSATO, Paulo César. Fundamentos para um direito penal democrático. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

BUSATO, Paulo César. “O preso como inimigo: a destruição do outro pela supressão da existência comunicativa”. Revista CEJ, Brasília, Ano XVI, n. 57, maio/ago. 2012.

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MALTA, Carolina Souza. Direito Penal Mínimo no Ordenamento Jurídico Brasileiro: as ideais abolicionistas e alguns pontos de reflexão. Disponível em: https://www.jfpe.jus.br/JFPE/Biblioteca%20Juizes%20Atuais/Biblioteca_Juizes_Atuais/2021/05/11/20210511DireitoPenalRevAJUFEn952015pdf.PDF Acesso em 02.01.2025.

DELMANTO, Roberto. Da máfia ao RDD. Boletim do IBCCRIM, n. 163, São Paulo, jun. 2006.

GOMES, Luiz Flávio. “O que sobrou do abolicionismo? Homenagem póstuma a Louk Hulsman”. Disponível em: <http://www.lfg. com.br> Acesso em: 15 abr. 2009.

GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 7ª. ed. Niterói: Impetus, 2014.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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