Em 2016, publicamos o artigo "A Queda do Poder Reparador das Indenizações por Dano Moral e Desvalorização da Moeda", alertando sobre a corrosão do poder compensatório das indenizações diante do avanço da inflação. Naquele período, a desvalorização da moeda já se mostrava preocupante, mas, nos últimos anos, o cenário econômico se deteriorou de forma ainda mais alarmante, agravando essa distorção no sistema jurídico.
A inflação acumulada no Brasil ultrapassa 60% desde então, impactando diretamente a economia e o poder de compra da população. Todos os segmentos do mercado ajustam seus preços e contratos a essa realidade: salários, aluguéis, tarifas bancárias, planos de saúde e até os honorários advocatícios são corrigidos periodicamente. No entanto, quando se trata da fixação de indenizações por danos extrapatrimoniais, o Judiciário parece imune a essa lógica, perpetuando valores desatualizados e desproporcionais à realidade financeira e social do país.
Se em 2016 já denunciávamos a perda do poder compensatório das indenizações, hoje o problema se agravou exponencialmente. Não apenas os valores se tornaram ainda mais defasados, mas também há uma resistência crescente do Judiciário em arbitrar condenações que reflitam a gravidade dos danos sofridos. O medo infundado da chamada "indústria do dano moral" se sobrepôs ao princípio fundamental da reparação integral, gerando um ciclo de injustiça que fragiliza a credibilidade do sistema jurídico.
Inflação, Desvalorização da Moeda e o Enfraquecimento da Reparação Judicial
A corrosão do valor das indenizações deve ser analisada dentro do contexto da inflação e da desvalorização da moeda. Ao longo dos últimos anos, os custos básicos de vida dispararam, tornando evidente a necessidade de revisão dos parâmetros indenizatórios.
O real perdeu uma parcela significativa de seu poder de compra, tornando os valores arbitrados no passado irrelevantes para a realidade atual. Uma indenização fixada há cinco ou dez anos, que já era modesta à época, hoje representa uma quantia ainda mais insuficiente. A falta de uma correção real e periódica transforma as condenações judiciais em cifras simbólicas, sem qualquer impacto prático na reparação da vítima.
Além disso, a defasagem das indenizações cria um efeito perverso: o enfraquecimento da função pedagógica da responsabilização civil. Empresas, bancos, seguradoras e o próprio Estado percebem que, mesmo que condenados, os valores a serem pagos são ínfimos e, economicamente, não representam qualquer prejuízo significativo. Esse descompasso estimula a reincidência de práticas abusivas, pois o custo de indenizar se torna inferior ao custo de evitar o dano.
A Contradição do Sistema: Por Que Tudo Sobe, Menos as Indenizações?
A inflação é um fenômeno que impacta todas as áreas da economia. O Judiciário reconhece essa realidade quando autoriza reajustes salariais, revisões de contratos e correção de valores em diversas esferas, mas se mantém estagnado na questão das indenizações extrapatrimoniais. Essa contradição compromete o próprio princípio da reparação integral.
Enquanto aluguéis são reajustados conforme o IGP-M, salários de servidores públicos recebem correções periódicas e tarifas bancárias aumentam regularmente, as indenizações permanecem fixadas em valores arbitrados há anos, sem qualquer atualização substancial. O resultado é um distanciamento entre a realidade econômica do país e as decisões judiciais, levando à banalização da reparação de danos.
O discurso sobre a "indústria do dano moral" tem sido usado como justificativa para a manutenção de valores baixos, mas ignora um ponto essencial: a inflação não distingue setores. Se todos os aspectos da vida financeira são reajustados, o mesmo deve ocorrer com as indenizações para garantir que cumpram seu propósito de reparar, punir e prevenir.
A Necessidade Urgente de Reformulação dos Critérios Indenizatórios
Diante desse cenário preocupante, torna-se urgente a adoção de novos critérios para a fixação das indenizações extrapatrimoniais no Brasil. Algumas medidas fundamentais precisam ser implementadas para corrigir essa distorção:
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Atualização periódica dos valores indenizatórios – O Judiciário precisa estabelecer parâmetros que levem em consideração a inflação acumulada, garantindo que as indenizações não percam seu caráter reparatório ao longo do tempo.
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Fixação de patamares mínimos para danos graves – Danos irreparáveis não podem ser tratados com valores irrisórios. É necessário um reequilíbrio dos montantes indenizatórios, de forma que a reparação seja proporcional à gravidade do dano.
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Consideração da capacidade econômica do ofensor – Grandes corporações e instituições financeiras devem ser condenadas em valores que realmente impactem sua operação, impedindo que a indenização seja encarada como um custo irrelevante.
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Critérios mais rígidos para casos de reincidência – Empresas e órgãos públicos que reincidem em práticas lesivas devem sofrer penalizações mais severas, de forma a desestimular a repetição do dano.
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Inclusão de mecanismos de correção monetária automática – A fixação de indenizações deve levar em conta índices econômicos atualizados para que as vítimas não sejam prejudicadas pela perda do valor da moeda ao longo dos anos.
Conclusão: Justiça Defasada Não É Justiça
O Brasil precisa urgentemente revisar seus critérios indenizatórios para que a reparação de danos extrapatrimoniais não continue sendo uma mera formalidade processual. A defasagem dos valores condenatórios enfraquece a função da responsabilidade civil e compromete a efetividade da Justiça.
Se as indenizações não acompanham a inflação, não corrigem seus valores ao longo do tempo e não refletem a gravidade real dos danos, elas se tornam inócuas. O Judiciário tem o dever de garantir que a justiça seja feita de maneira concreta, e não apenas formal. Valores indenizatórios irrisórios não apenas agravam o sofrimento das vítimas, como também incentivam a impunidade e a perpetuação de práticas abusivas.
Se em 2016 alertávamos para a perda do poder compensatório das indenizações, hoje esse alerta se tornou um grito de indignação. A desvalorização da moeda não pode ser uma desculpa para a desvalorização da dignidade humana. O Judiciário precisa abandonar o conservadorismo e encarar a realidade econômica do país para que a reparação integral deixe de ser uma promessa vazia e passe a ser, de fato, um instrumento de justiça e equilíbrio social.