Resumo : O padecer da democracia contemporânea advém do avanço do populismo conservador em diversos países como EUA, Inglaterra e Brasil. E, há causas políticas, econômicas- sociais e cultural-identitárias. Os ataques à democracia são veiculados por sites, blogs e canais da extrema-direita, pregando a invasão e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Relativamente à pandemia, diante de posições de autoridades que negavam ou minimizavam sua importância e consequências, o Supremo Tribunal Federal produziu uma longa série de decisões que preservaram a saúde da população e salvaram milhares de vidas. De fato, o Tribunal (i) assegurou aos estados e municípios o poder de tomar medidas para proteger a população; (ii) impediu o lançamento da campanha convocando a população a voltar para as ruas e para o trabalho, quando todas as entidades médicas recomendavam recolhimento; (iii) afirmou constituir erro grosseiro, para fins de responsabilização de agentes públicos, a não observância dos consensos médico-científicos; (iv) determinou a divulgação do plano de vacinação, (v) a vacinação compulsória e (v) a proteção das comunidades indígenas; entre outros julgados.
Palavras-chave:
O Ministro do STF Luís Roberto Barroso identifica três fenômenos causadores da recessão democrática, a saber: o populismo, o extremismo e autoritarismo.
Deve-se realizar ciosa análise sobre a democracia no mundo e no Brasil e, assenta-se a ideia de democracia constitucional, com a demonstração que fora esta uma ideologia vitoriosa no século XX.
Mas, identifica-se um sincero desgaste da democracia no mundo contemporâneo, onde surgem democracias iliberais e até o constitucionalismo abusivo, e tantas outras qualificações pejorativas.
Frequentemente o populismo, o extremismo e o autoritarismo são as causas políticas impactantes no aspecto econômico, social, cultural e identitária.
Observa-se no Brasil, notadamente, depois de 2018 e 2022 que se deu a radicalização e à polarização vigentes, o que gerou pactos capazes de promover a construção, consolidação e preservação de instituições no Brasil, o que intensifica a aventura em procurar ter esperança e fé no futuro.
Lembremos que o constitucionalismo remonta às revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII e significa, essencialmente, o Estado de Direito, dotado de poder limitado e tendo que ter respeito aos direitos fundamentais. E, sua consolidação nos países e nos EUA se deu ao longo do século XIX.
Em nosso país, a primeira Constituição, a de 1824 possuía alguns traços liberais, mas, essencialmente jazia a origem absolutista impressa por Dom Pedro I, porém atenuada ao longo de seu reinado.
O ideal democrático apenas se consolida, verdadeiramente, quando já aperfeiçoado o século XX, com a consagração do sufrágio universal. Sendo superadas as restrições à participação de todos no processo eleitora, tais como critérios de renda, educação, religião, raça e gênero.
As referidas cortes e tribunais podem e devem declarar a inconstitucionalidade de atos do Legislativo e do Executivo e, tem como um de seus principais papéis o arbitrar as tensões que existe normalmente entre constitucionalismo e democracia. Isto é, entre os direitos fundamentais e soberania popular.
Assim caberá as cortes proteger as regras do jogo democrático e, ainda, os direitos de todos contra os eventuais abusos de poder por parte da maioria. Sua função tem sido um poderoso antídoto contra o autoritarismo.
Frise-se, assim, que o Estado Democrático de Direito, conforme consta do texto constitucional brasileiro vigente é fundado na soberania popular, nas eleições livres e governo da maioria, bem como em poder limitado. E, o respeito aos direitos fundamentais, ressalvando-se o mínimo existencial.
Adverte o Ministro Barros que a democracia não se limita ao momento do voto, se manifestam também no respeito aos direitos fundamentais de todos, incluindo-se das minorias. Conclui o doutrinador que a democracia contemporânea é feita de votos, direitos e razões.
De fato, a democracia não se limita ao momento do voto. Ela se manifesta, também, no respeito aos direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias. Os derrotados no processo político majoritário não perdem a condição de sujeitos de direito e de participantes do processo político-social.
Além disso, a democracia atual é feita de um debate público contínuo, que deve acompanhar as decisões políticas. Um debate aberto a todas as instâncias da sociedade, o que inclui movimento social, imprensa, universidades, sindicatos, associações, cidadãos comuns, autoridades etc.
O constitucionalismo democrático prevaleceu historicamente sobre os projetos alternativos que com ele concorreram ao longo do século XX. Foram eles o comunismo, após a Revolução Russa de 1917; o fascismo, irradiado a partir da Itália de Mussolini, com início nos anos 1920; o nazismo, sob a liderança de Hitler na Alemanha, a partir dos anos 1930; os regimes militares, que dominaram a América Latina, a Ásia, a África e mesmo alguns países europeus no segundo pós-guerra; e o fundamentalismo religioso, que teve como marco a revolução dos aiatolás no Irã em 1979.
O modelo vencedor consagrou a centralidade e a supremacia da Constituição – e não do partido, das Forças Armadas ou do Alcorão. Alguns autores chegaram mesmo a falar no fim da história, celebrando a democracia liberal como o ponto culminante da evolução institucional da humanidade (Fukuyama 1989, 1992).
De fato, foram diversas as ondas de democratização (ver Huntington 1991). Uma delas se deu ao final da Segunda Guerra Mundial, num ciclo que incluiu a Alemanha, a Itália, o Japão e mesmo o Brasil, que, no entanto, voltou a cair no autoritarismo nos anos 1960.
A segunda onda veio nos anos 1970, atingindo países como Portugal, Espanha e Grécia. Uma terceira onda se formou nos anos 1980 em países da América Latina, como Brasil, Chile, Argentina e Uruguai.
E, logo à frente, com a queda do muro de Berlim, os anos 1990 assistiram à democratização e reconstitucionalização dos países da Europa Central e Oriental, incluindo Hungria, Polônia e Tchecoslováquia. Também nos anos 1990, com o fim do Apartheid, veio a democratização da África do Sul. Na virada para o século XXI, mais de uma centena de países 119 adotara esse modelo, de acordo com a Freedom House.
Vige uma onda populista, extremista e autoritária atingindo inúmeras partes do mundo, levando muitos autores a se referirem a uma recessão democrática (Diamond 2015) ou a um retrocesso democrático (Huq & Ginsburg 2018), como já mencionado anteriormente.
Os exemplos foram se acumulando ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Geórgia, Ucrânia, Bielorússia, Filipinas, Venezuela, Nicarágua e El Salvador, entre outros. Em todos esses casos, a erosão da democracia não ocorreu por golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus comandados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática se deu pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros devidamente eleitos pelo voto popular (Levitsky & Ziblatt 2018).
Há três fenômenos distintos em curso em diferentes partes do mundo que estão associados a esta erosão democrática: a) o populismo; b) o extremismo; e c) o autoritarismo.
Eles não se confundem entre si, mas quando se manifestam simultaneamente – o que tem sido frequente – trazem graves problemas para a democracia.
Populismo é um conceito que vem sendo intensamente revisitado nos últimos tempos, com a conotação frequentemente negativa de manipulação de medos, necessidades e anseios da população. Como regra, oferece soluções simplórias – e erradas – para problemas complexos, atendendo a demandas imediatas que cobram preço alto no futuro.
O extremismo, que pode ser de qualquer lado do espectro político, caracteriza-se pela intolerância, pela inaceitação do diferente e pela rejeição ao pluralismo político, valendo-se comumente de ameaças de violência.
E o autoritarismo envolve a repressão truculenta aos opositores, a intimidação ou cooptação das instituições de controle e diferentes formas de censura, permitindo o mando autoritário e sem accountability.
O impacto da revolução tecnológica ou digital sobre a vida contemporânea, com destaque para o papel desempenhado pelas mídias sociais. A internet revolucionou o mundo da comunicação interpessoal e social, ampliou exponencialmente o acesso à informação e ao conhecimento e, ademais, criou um espaço público em que qualquer pessoa pode manifestar suas ideias, opiniões e divulgar fatos.
Nesse sentido, é impossível exagerar sua importância para a democratização da sociedade em escala global, universalizando bens e utilidades que anteriormente constituíam privilégios de alguns.
No plano político, ela foi igualmente fundamental para processos históricos importantes – ainda que não inteiramente bem-sucedidos – como foi, por exemplo, a Primavera Árabe .
A internet, com o surgimento de sites, blogs pessoais e, sobretudo, das mídias sociais, possibilitou a ampla divulgação e circulação de ideias, opiniões e informações sem qualquer filtro. A consequência negativa, porém, foi que também permitiu a difusão da ignorância, da mentira e de atentados à democracia.
Cria-se um ambiente no qual as pessoas já não divergem apenas quanto às suas opiniões, mas também quanto aos próprios fatos. Pós-verdade e fatos alternativos são palavras que ingressaram no vocabulário contemporâneo.
Uma das manifestações do autoritarismo é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor.
As causas econômico-sociais estão no grande contingente de trabalhadores e profissionais que perderam seus empregos (Oliveira 2019) ou viram reduzidas as suas perspectivas de ascensão social, tornando-se pouco relevantes (vide Harari 2018) no mundo da globalização, da nova economia do conhecimento e da automação, que enfraquecem as indústrias e atividades mais tradicionais (Inglehart & Norris 2016); sem mencionar as políticas de austeridade pregadas por organizações internacionais e países com liderança econômica mundial (Trotman 2017), que reduzem as redes de proteção social.
Por derradeiro, as causas culturais identitárias, que em alguma medida resultam também de um choque de gerações: há um contingente de pessoas de meia ou de mais idade que não professam o credo cosmopolita, igualitário e multicultural que impulsiona a agenda progressista de direitos humanos, igualdade racial, políticas feministas, união homoafetiva, defesa de populações nativas, proteção ambiental e descriminalização de drogas, entre outras modernidades.
Essas pessoas, que se sentem desfavorecidas ou excluídas no mundo do “politicamente correto”, apegam-se a valores tradicionais que lhes dão segurança e o sonho da recuperação de uma hegemonia perdida
Observa-se que a democracia liberal padece de duas disfunções: (i) as democracias iliberais ou democracias sem direitos; e (ii) o liberalismo sem democracia ou direitos sem democracias.
Ao analisar as democracias iliberais, em que líderes populistas eleitos vão paulatinamente suprimindo direitos, o doutrinador identifica três fatores: o primeiro seria a estagnação social – ao contrário das décadas que se seguiram ao pós-guerra, em que pessoas dobraram sucessivamente sua renda, nas últimas décadas elas estão estacionadas; o segundo seria a perda da hegemonia racial – nos últimos tempos, as sociedades se tornaram mais diversas e multiculturais, com a ascensão de afrodescendentes e imigrantes em diferentes países, gerando ressentimento nas elites tradicionais; e o terceiro, a perda do filtro da mídia na comunicação social, pelo advento das redes sociais – a internet deu voz a milhões de pessoas que antes não tinham acesso ao espaço público, abrindo caminho para a desinformação autoritária e teorias conspiratórias.
Por outro lado, identifica ele, também, o que denominou de liberalismo sem democracia. Trata-se de fenômeno associado à maior complexidade da vida moderna, com perda do protagonismo do Legislativo como órgão de representação popular.
De fato, nas últimas décadas, assistiu-se à ascensão de órgãos não eletivos na tomada de decisões que influenciam drasticamente a vida das pessoas, como, por exemplo, as agências reguladoras, o banco central, as cortes constitucionais e órgãos e agências internacionais, que concretizam tratados e convenções internacionais.
A maior parte das democracias do mundo reserva uma parcela de poder político para um órgão que não é eleito, mas que extrai sua legitimidade da competência técnica e da imparcialidade. Trata-se do Poder Judiciário, em cujo topo, no caso brasileiro, está o Supremo Tribunal Federal.
Desde o final da 2ª Guerra Mundial, praticamente todos os Estados democráticos adotaram um modelo de supremacia da Constituição, tal como interpretada por uma suprema corte ou por um tribunal constitucional. Foi a prevalência do modelo americano de constitucionalismo, com a superação da fórmula que predominara na Europa, até então, que era a supremacia do Parlamento.
O constitucionalismo democrático representa uma ideologia vitoriosa do século XX, fundiram-se duas ideias que normalmente não se fundem, quer em suas origens, quer em seu conteúdo, isto é, constitucionalismo e democracia.
Reybrouck defende que a democracia atualmente enfrenta uma crise de legitimidade e eficiência, cada vez mais menos pessoas participam dos processos políticos, e os governo não conseguem solucionar rapidamente seus problemas.
Há quatro culpados, a saber: a Síndrome da Fadiga Democrática (quando os políticos, a democracia representativa e a democracia eleitoral representativa).
A culpa é dos políticos, da democracia, da democracia representativa e da democracia eleitoral representativa. O populismo alega que a democracia está formada por uma elite afasta das necessidade do povo, tendo como solução uma maior representação popular, preferencialmente liderada por partidos populistas.
Para o doutrinador, no entanto, não há um povo, mas sim, cada sociedade que é caracterizada por diversidade, de modo que essa suposta unicidade e vontade do povo refere-se ao misticismo do que a política, sendo apenas uma questão de marketing.
O outro diagnóstico surge como forma de combate ao populismo onde a tecnocracia, na qual especialistas seriam encarregados de cuidar do interesse pública. Os problemas seriam solucionados por pessoas com know-how e os políticos seria substituídos por empresários que são os managers.
Destacou que as pessoas comuns tendem a confiar mais o poder aos especialistas não eleitos ou a empresários, e tendem confiar mais o poder a quem não o deseja do que àqueles que o desejam.
Reybrouck (2016) destaca que eficiência não gera automaticamente legitimidade; ademais, por não serem democraticamente eleitos, os tecnocratas acabam representando as esferas tecnocratas de decisão – isto é, banqueiros, economistas, analistas monetários – e não propriamente o povo, de modo que a fé nesse modelo se dissolve quando suas medidas começam a ser aplicadas.
A tecnocracia funciona de forma oposta ao populismo: sua solução para a Síndrome da Fadiga Democrática é sobrepor a eficiência à legitimidade, esperando conquistar esta através daquela.
Terceiro diagnóstico começa com a exposição do entrave no Congresso Americano que resultou no Occupy Wall Street: os Democratas e Republicanos estavam há meses debatendo a elevação do teto da dívida americana sem chegar a acordo algum. Os Republicanos, que criaram o débito nacional americano com sua intervenção no Iraque, queriam que fossem realizados primeiramente os cortes, e somente depois disso o decreto, enquanto os Democratas achavam mais justo uma mínima taxação aos mais ricos antes de se realizarem cortes draconianos aos mais pobres.
Uma guerra travada por dois partidos poderia ter causado uma crise econômica mundial por causa de políticos que transformaram o Congresso em um playground para jogos
O quarto e último diagnóstico relaciona-se às eleições. O problema da Síndrome da Fadiga Democrática, segundo o autor, “é causado, não pela democracia representativa como tal, mas por uma variante específica dela: a democracia eleitoral representativa, a democracia que produz um corpo de representantes através de eleições.
E, ao considerar as eleições e democracia como sinônimos, continua Reybrouck expressa o problema e, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 teria reforçado isso ao afirmar que a base de autoridade do governo deve ser expressa através do voto, de modo que cogitar em democracia é cogitar em eleições.
Essa fé cega nas eleições, acrescenta e produz um fundamentalismo eleitoral que assume uma face de evangelização global e as eleições são tidas como os sacramentos da nova fé que frequentemente os países ocidentais exportam e impõem aos outros países, considerando democráticos os países ocidentais exportam e impõem aos outros países, considerando democráticos apenas aqueles que seguem exatamente o seu modelo.
Recorre-se à história da eleição para sustentar seu argumento, pois com a criação do sistema eleitoral democrático representativo, não existiam partidos políticos, mídia comercial ou mídia social e seus inventores sequer os imaginavam.
Somente com o passar dos séculos, surgiu a esfera pública, na qual os sujeitos resistiam às imposições e reuniam-se para discutir questões de Estado.
O cidadão surgiu com a esfera pública moldando-se em novas instituições, mas o principal o meio foi o jornal, através do qual a consciência política pôde se caracterizar em grandes grupos.
Foram as revoluções americana e a francesa (1776 e 1789) e a derrubada do poder monárquico, se decidiu que o povo seria soberano e, para tanto, ou ao menos parte dele, tivesse voz, criou-se a eleição, um procedimento formal que visava a atingir a unanimidade.
O local onde os indivíduos cogitavam em plena liberdade, o espaço público por excelência, foi nomeado parlamento, sendo o parlamentarismo a resposta do século XVIII contra o absolutismo do Antigo Regime.
O que culminou na indireta atuação, o povo habilitado a votar escolheu seus representantes que promoveriam a defesa do interesse público no parlamento.
Os partidos políticos surgiram em 1850 e eram poucos grupos constituídos apenas de partidos executivos com poucos membros, não havendo partidos de massa.
Com o advento do neoliberalismo e da mídia comercial, na medida em que os cidadãos se transformaram em consumidores, os partidos deixaram de ser vistos como intermediários entre a massa e o poder.
Perdendo espaço e desejando evitar isso, os partidos passaram a se voltar ao eleitor, buscando legitimidade e transformando a eleição em batalha na mídia pela busca de eleitores. A mídia social agravou o processo, transformando o teatro político (political theater) em algo que ocorre a cada segundo.
Ao se reduzir a democracia às eleições, continua, puseram-se dificuldades à democracia: a próxima eleição torna-se mais importante que a anterior, o que gradualmente resulta numa ditadura da eleição (dictatorship of elections), e a democracia que se reduz a eleições encontra se em declínio mortal .
A crítica feita por Reybrouck ao modelo de democracia eleitoral representativa parece se direcionar mais a um problema com os partidos políticos do que com a eleição em si. Quando o voto foi criado – e o autor destaca isso algumas vezes –, o propósito era buscar unidade e tornar a democracia possível; o problema começou a surgir quando os partidos políticos transformaram as eleições em uma arena de batalha, de modo que a democracia virou uma guerra de partidos que se enfrentam e não conseguem chegar a um consenso por não mais representarem os interesses do povo, mas os seus próprios, como no caso do entrave entre Republicanos e Democratas.
As mídias tanto a comercial como a social apenas agravaram um problema que antes delas já existia. A pluralidade de partidos que representam diferentes setores sociais é algo que deveria enriquecer a democracia; porém, atualmente.
As críticas à representação política não são novas, e Reybrouck coloca como epígrafe de seu livro a mesma passagem do Contrato Social de Rousseau, que Milton Meira do Nascimento utiliza no começo do décimo capítulo de A farsa da representação política, obra em que critica esse modelo.
A representação é vista por Rousseau (2011, p. 149) como problemática também porque, com esse modelo, os cidadãos deixam de colocar o serviço público como sua principal preocupação.
Distingue-se aqui, a crítica da representação feita por Rousseau daquela que envolveu o Occupy Wall Street. Ao se opor ao modelo representativo, Rousseau tem em vista a questão da vontade geral – o que há por trás de sua posição é o fato de essa vontade não poder ser representada.
A democracia direta aclamada pelos manifestantes, transformada em um fim em si mesmo, dava-se mais por um descontentamento com os atuais políticos do que por uma concepção de liberdade de pensamento e decisão em confronto com sua tutela; a defesa por eles feita originava-se da insatisfação com os representantes, adotando-se como solução o fim dos parlamentos.
O exercício do poder legislativo por todo o povo, defendido por Rousseau, tem como objetivo a preservação da liberdade de decisão, isto é, a não tutela do povo, a defesa deste como havendo atingido a maioridade.
A democracia direta pretendida pelo Occupy Wall Street, por sua vez, não envolvia essa cadeia de pensamento, mas era vista como um fim em si mesmo, e os manifestantes eram movidos por insatisfação, raiva ou ódio.
A representação retira a responsabilidade política dos eleitores e a entrega aos representantes, reduzindo a cidadania ao mero exercício do voto. A manifestação de sua vontade através de partidos políticos, principal mecanismo de funcionamento dos atuais modelos democráticos, retira do cidadão sua autonomia e responsabilidade nas decisões políticas.
O poder de decisão – isto é, o poder legislativo –, que para Rousseau deveria pertencer ao povo, pois é a única forma de este ser livre e soberano, é entregue a alguns indivíduos os quais se encarregam de decidir pelo povo, “representando” o que ele deseja.
O segundo problema proveniente dessa representação é que, ao se entregar o poder de decisão a alguns poucos indivíduos, há a possibilidade de estes aproveitarem para beneficiar, não ao povo, mas a si mesmos – problema identificado tanto por Rousseau, ao afirmar que em um mau governo as pessoas não vão às assembleias porque preveem a não representação da vontade geral, quanto por
Reybrouck, em suas críticas feitas aos partidos políticos, que transformaram a esfera pública em um playground no qual os partidos guerreiam infantilmente, representando seus próprios interesses muitas vezes em detrimento do povo.
Tal fato faz com que, ao final, os eleitores não se sintam representados por aqueles em que votaram, e o modelo representativo não represente aqueles que deveria representar. A análise feita por Reybrouck mostra-se pertinente: a perda de eficiência do modelo democrático atinge sua legitimidade.
Os políticos eleitos para representar não mais representam o povo, e este não se sente representado, dando pouca legitimidade àqueles.
A sensação de que se governa para poucos não é propriamente uma novidade: entendendo a democracia como a concessão do governo a todo o povo ou à maior parte dele para que haja mais cidadãos magistrados do que simples cidadãos, Rousseau já afirmava que, “tomando o termo no rigor da sua acepção, nunca existiu verdadeira democracia nem nunca existirá” (ROUSSEAU, 2011).
Quanto à democracia representativa, acrescenta Milton Meira do Nascimento (2016), dado que o poder é exercido por um pequeno grupo de indivíduos, seria mais apropriado chamá-la de aristocracia, estando tal nomenclatura em conformidade também com os modelos clássicos de governo.
É esse modelo aristocrático a democracia americana, a qual foi exportada para os outros países e imposta como o modelo democrático a ser seguido; contudo, a democracia representativa não deveria ser chamada de democracia, mas de aristocracia, pois, “nesse regime político, o povo não decide sobre coisa alguma, não é considerado capaz de assumir suas escolhas e é tratado como se ainda não tivesse atingido a idade adulta”.
O poder é atualmente exercido por uma elite – principalmente financeira – que não é exatamente a melhor e mais capacitada para tal função, mas apenas soube se assenhorear do poder, utilizando-o para benefícios próprios e frequentemente em detrimento do povo.
Posição um pouco mais forte é a tomada por Jaques Rancière, em seu livro O ódio à democracia, no qual defende a tese de que todo Estado é oligárquico. Pois, argumenta que o que comumente se considera como critério para que um Estado seja considerado democrático é a existência de um sistema representativo; contudo, tal sistema é instável, tendendo à democracia conforme se aproximar, igualmente, do poder de qualquer um. Esse sistema teria sido criado com o propósito de evitar que aqueles que amam o poder e são hábeis em se assenhorear dele governassem; entretanto, como identifica o autor, ocorre o oposto, de modo que a coisa pública é apropriada por uma oligarquia estatal e econômica: quem governa são políticos com mandatos eternos, que possuem a mesma formação, pensam de forma semelhante, fazem eles próprios as leis e são financiados por grandes empresários e
Rancière (2014) identifica que a causa primeira dos males que sofrem as democracias é o insaciável apetite dos oligarcas. Como pensam de forma semelhante, tomando basicamente as mesmas decisões – de modo que a alternância de poder é apenas aparente – eles conseguem satisfazer o desejo democrático de mudanças sem que haja, efetivamente, uma mudança.
Os oligarcas desejam, ainda, possibilitar o desenvolvimento ilimitado da riqueza, sendo a economia uma realidade que não possibilita interpretação, mas apenas respostas adaptadas que serão as mesmas.
As dificuldades enfrentadas pela democracia permitem a compreensão dos movimentos antidemocráticos. Reybrouck já observara que o descontentamento com o atual modelo político e a frustração com a democracia não são frutos apenas da insatisfação em relação a como ela funciona; os movimentos também mostravam que havia raiva em relação à própria democracia.
O descontentamento com os representantes era transferido também à democracia, na medida em que o modelo de democracia que se tem é o eleitoral representativo – o que também Rancière constata: a representação é tomada como critério para a democracia.
A forte associação entre representação política e democracia, que dificilmente são concebidos separadamente, faz com que os problemas gerados pelo modelo representativo e a raiva para com este modelo sejam estendidos à democracia, não apenas à representação.
A democracia torna-se alvo de ataques por ter sido associada a um sistema que sequer existia quando ela surgiu, e que foi inventado somente há poucos séculos.
Outro fator que aumenta o movimento antidemocrático, identificado por Rancière (2014), é o discurso antidemocrático dos atuais intelectuais, os quais também contam por vezes com o apoio da mídia, que, por sua vez, possibilita que eles moldem uma opinião pública onipresente.
Um problema que se origina do ódio à democracia é que, assim como ela se tornou odiada por problemas advindos do sistema representativo e por ser a ele fortemente associada, o mesmo pode ocorrer à política. Uma forte associação entre democracia e política pode tornar esta odiada em razão de problemas que seriam de ordem daquela.
Diante da perda de legitimidade dos regimes não democráticos, tornou-se comum que líderes políticos sempre se declarassem democráticos, mesmo em ditaduras, como a que ocorreu de 1964 a 1985 no Brasil.
A democracia é hoje publicamente vista como algo virtuoso, e atraiu para si valores que não se relacionavam exatamente a seu significado original – de poder do povo –, como direitos humanos, respeito ao próximo e disposição a ouvir opiniões contrárias. Seu significado foi alargado e, em alguma medida, tornado impreciso.
Com a democracia deixando de ser um procedimento de escolha dos governantes, resulta também que o número de países que a praticam é maior, importando mais as condições nas quais essa escolha é feita do que seu formato
A frustração e o descontentamento com esse sistema democrático acompanham movimentos que sentem raiva e, com suporte da mídia comercial, transformam a raiva em ódio, gerando movimentos antidemocráticos. O ódio à democracia advém dos problemas ocasionados pela representação.
Pelo fato de hoje eleição e representação estarem fortemente associadas à ideia de democracia, servindo até de critérios para ela, os problemas causados passam a ser vistos como problemas da democracia, e esta passa a ser alvo de ódio.
E, assim como a democracia tornou-se odiada por problemas gerados por ideias que não lhe são inerentes, mas lhe foram fortemente vinculadas, o mesmo pode ocorrer à política, a qual hoje está também fortemente vinculada à ideia de democracia.
Esta, que é apenas uma forma de governo, tornou-se altamente associada àquela, de modo que governos não democráticos, buscando conquistar a legitimidade que não possuíam, declararam-se democráticos, já que o termo se tornou virtuoso publicamente.
O sucesso que esse discurso antipolítico tem alcançado evidencia que o ódio à política tem se propagado. Esse ódio tem levado à recepção de candidatos que, quanto mais afastados da política aparentarem estar, mais são bem vistos.
Muitas pessoas têm buscado candidatos que estejam, ou ao menos aparentem estar, fora da esfera pública. Todavia, esses candidatos de discurso antipolítico não solucionarão os problemas da democracia; na realidade, é mais provável que os agravem, seja pelo de fato de não serem políticos e não conseguirem lidar com os negócios públicos, seja por serem parte da oligarquia.
Referências
BARROSO, L. R. A Democracia sob pressão: o que está acontecendo no mundo e no Brasil. Disponível em: https://cebri.org/revista/br/artigo/23/a-democracia-sob-pressao-o-que-esta-acontecendo-no-mundo-e-no-brasil Acesso em 3.2.2025.
BRAMATTI, Daniel. Classe política enfrenta rejeição generalizada. O Estado de S. Paulo, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2w5lIeD
FONTES, Igor Ferreira. A Crise nas Democracias Ocidentais no Século XXI o problema da representação e o ódio à política. Revista PÓLEMOS, volume 07, n.13, ano 2018.
NASCIMENTO, Milton Meira do. A farsa da representação política. São Paulo: Discurso Editorial, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.
REYBROUCK, David Van. Against Elections. Translated by Liz Waters. London: The Bodley Head, 2016. Digital Edition.
RIBEIRO, Renato Janine. A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
VELASCO, Clara. Nível de abstenção nas eleições é o mais alto desde 1998. G1, 2014. Disponível em: <https://glo.bo/1nXDnM2>. Acesso em: 21/01/2018.