A aplicabilidade do collateral stoppel no ordenamento jurídico brasileiro.

Uma argumentação no tocante à compatibilidade entre o instituto do collateral stoppel, oriundo do Common Law, e a coisa julgada do CPC/2015

18/02/2025 às 11:51
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O Collateral Stoppel surgiu na Inglaterra, consolidando o Common Law e a valorização das decisões vinculantes. Como equilibrar segurança jurídica e ampla defesa?

A origem do Collateral Stoppel 1 tem como marco inicial o período da reorganização política da Normandia, perpetuando-se com a finalização da Batalha de Hastings, em 1066. Destarte, nesse contexto de conflitos, iniciou-se a dominação francesa na Inglaterra, impactando a cultura, a literatura e o sistema jurídico anglo-normândico. Nessa linha de pensamento, não houve apenas um período de confrontos militares, mas um evento de miscigenação intelectual que redefiniu a trajetória da Inglaterra. Por conseguinte, a sequência de acontecimentos com a finalidade de mudança de paradigma político trouxe à tona o descontentamento com o sistema formal e absoluto vigente da realeza.

Outrossim, para contextualizar o surgimento do Collateral Stoppel, deve-se entender que se implantou o sistema feudal, além de se iniciarem as construções de castelos, com o intuito de reformular o cotidiano da nobreza inglesa. Nesse diapasão, pode-se citar que o regime anterior, baseado na verdade real absoluta e no excesso de formalismo, sucumbiu gradativamente à moral e à justiça dos pretores modernos. Explicando melhor, antes, os denominados Tribunais de Westminster2 eram subordinados ao rei e, consequentemente, tinham o privilégio absoluto de discernimento e julgamento das causas da sociedade. Posteriormente, foram criados os Tribunais dos Chanceleres3 para moderar as arbitrariedades e conter os excessos do formalismo. Conquanto, a aceitação desta transição de axiologias não foi pacífica, uma vez que a realeza tinha a intenção de permanecer no domínio geopolítico da Inglaterra.

Nessa linha de discussão, pode-se dizer que o instituto Collateral Stoppel se iniciou com a real abrangência ao sistema do Common Law, focando na valoração de decisões vinculativas, com fulcro na máxima exaltação do papel decisório de competência do magistrado. Isto é, a finalidade desse instituto era impedir a rediscussão de pontos arbitrados em decisões pretéritas de outro processo, pautando-se na economia processual e na boa-fé objetiva. Para contextualizar essa doutrina, segundo o professor Allan Vestall: “Há a necessidade de reafirmar a importância em se preservar as decisões judiciais, evitando-se a litigância repetitiva e até os julgamentos inconsistentes, uma vez que muito se espera que o Judiciário obtenha a palavra final”.

Ademais, especificamente falando, a palavra stoppel origina-se da expressão “boca com estopa” ou incapacidade de retrucar, em oposição ao que já fora decidido. Nesse sentido, alguns se referem a esse instituto como “preclusão colateral”, para reafirmar a necessidade de coibir a rediscussão de pontos determinados com trânsito em julgado (vedação à re-litigação). Nessa perspectiva, alguns requisitos foram impostos para a positivação da preclusão colateral, como: o objeto da decisão anterior ser idêntico ao da decisão sucessiva e a constatação do trânsito em julgado, com decisão de mérito. Para complementar, observa-se que essa ferramenta pode ser útil em litígios de massa, coletivização de processos e valorização do sindicalismo, além de ações decorrentes de desastres. Explicando melhor, a intenção é conter inúmeras decisões que poderiam se contradizer em casos de não unificação. Nesse diapasão, a doutrina e a jurisprudência associam o Collateral Stoppel ao instituto denominado joinder rules, cuja premissa é a unificação de ações em litisconsórcio obrigatório, resguardando a efetiva segurança processual.

Todavia, com a implantação dessa artimanha processual sui generis, surgiram questionamentos a respeito do possível arrefecimento dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, até então intangíveis. Outrossim, para muitos doutrinadores, estar-se-ia retirando a competência do magistrado de exercer o livre convencimento e engessando sentenças, com a falsa pretensão de celeridade processual. Porquanto, infere-se que se deve utilizar o Collateral Stoppel com parcimônia e segurança jurídica, para evitar uma economia processual excessiva e inconsistências teleológicas processuais.

Trazendo essa tratativa para o Direito Processual brasileiro, nota-se que o Collateral Stoppel possui algumas semelhanças com a coisa julgada ou a preclusão endoprocessual, descrita no Novo Código de Processo Civil de 2015 (NCPC/2015). De acordo com o artigo 506, “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Ou seja, pode-se interpretar que está intrinsecamente prevista a preclusão colateral que favorece o terceiro.

Para esclarecer a dimensão dessa premissa, o jurista Giuseppe Chiovenda descreve que “A preclusão é a perda de uma faculdade processual, quando há a impossibilidade de praticar o ato processual no mesmo processo”. Nesse viés, ao se comparar os dois institutos supracitados, percebe-se que ambos primam pela estabilidade, boa-fé e concentração vinculada de decisões. Além disso, priorizam o fim dos litígios recorrentes e o uso eficiente dos recursos judiciais, combatendo o assédio indevido aos litígios denominados litigância predatória.

Dando prosseguimento à discussão, é importante mencionar que o doutrinador Luiz Guilherme Marinoni foi o primeiro autor brasileiro a dedicar uma obra exclusiva sobre esse tema pontual, esclarecendo que “Quem é vencido num processo é declarado sem direito; não simplesmente declarado perdedor em face do vencedor”. Diante do exposto, percebe-se que esse assunto condensa a ponderação entre a segurança jurídica e a celeridade em contraposição à capacidade de contradizer decisões com liberdade de dialética processual. Ademais, mesmo com todo o cuidado de massificar sentenças e vincular partes, fica demasiadamente difícil discernir, com precisão, se há identidade de partes, causa de pedir e pedidos. Ou seja, muito se tem a discutir ainda sobre as prerrogativas e sujeições de compatibilizar processualmente tais ferramentas no ordenamento jurídico brasileiro.

Uma última questão a ser abordada é o grau de aceitabilidade por terceiros estranhos ao processo, uma vez que a regra é a identidade simbiótica do tríplice da ação: partes, pedido e causa de pedir (mutualidade). Entretanto, há uma tendência de mudança de paradigma perante terceiros, permitindo a extensão dos efeitos da coisa julgada benéfica a aqueles que não participaram do processo original. Nesse sentido, cada vez mais, o Collateral Stoppel se entrelaça ao processo civil e ao sistema de coletivização de decisões, sendo que as decorrências futuras ainda carecem de estudos preliminares e análises estatísticas para a estabilização e padronização no Brasil.

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Bibliografia

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Notas

1 A preclusão colateral (Collateral Stoppel), conhecida na terminologia moderna como preclusão de questão, é uma doutrina de preclusão do Common Law que impede uma pessoa de relitigar uma questão. Em resumo, "uma vez que um tribunal tenha decidido uma questão de fato ou de direito necessária ao seu julgamento, essa decisão [...] impede a relitigação da questão em um processo em uma causa de ação diferente envolvendo uma parte do primeiro caso". A justificativa por trás da preclusão de questão é a prevenção de assédio legal e o impedimento do uso excessivo ou abuso de recursos judiciais.

2 O sistema de Westminster é um sistema parlamentarista de governo modelado a partir daquele que se desenvolveu no Reino Unido. Esse termo vem do Palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico. O sistema consiste em uma série de procedimentos para operar uma legislatura. Ele é utilizado, ou já foi utilizado, nas legislaturas nacionais e subnacionais da maioria das nações da Commonwealth e da ex-Commonwealth.

3 Uma das funções principais do Lord Chanceler era presidir a Corte de Chancelaria. Essa corte desenvolveu o sistema de leis de equidade (equity), um corpo de normas que visava complementar e, em alguns casos, corrigir as deficiências do Common Law. A equidade se concentrava na justiça e na boa-fé, garantindo decisões mais justas para aqueles que buscavam amparo jurídico quando o Common Law não oferecia soluções adequadas.

Sobre a autora
Joseane de Menezes Condé

Servidora Pública Federal do TRT 15 (Americana-SP). Médica Veterinária formada pela UFMG (2000). Mestranda em Direito Internacional pela Fundação Universitária Ibero-americana (FUNIBER). Pós-graduanda em Direito Tributário e Trabalhista pela Faculdade Anhanguera (Piracicaba-SP). Possui pós-graduação em Direito Constitucional e Direito Processual Civil pelo Damásio-Ibmec. Formada em Direito pela Faculdade Anhanguera (Piracicaba-SP). Escreve artigos para Migalhas e Gazeta de Piracicaba. Coautora do livro Direito do Trabalho – Impactos da Pandemia (2021).

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