
Quando passei a dedicar-me a investigações sobre o processo de ensino-aprendizagem, com ênfase na Educação Especial e na ativação de sentidos remanescentes para pessoas com deficiência mediante práticas corporais desportivas ou recreativas (no mestrado e, em algum grau, na especialização em Ensino de Braile e Tecnologias Assistivas), tive a clara sensação de não haver uma correlação plena entre o acesso às tecnologias e o desenvolvimento humano das pessoas.
Fui um estudante (no ensino fundamental e médio) nos anos 2000. Como habitante do interior, acessava os conhecimentos por livros na biblioteca da escola, enciclopédias cheias de verbetes curtos em letras miúdas que não respondiam a maioria das questões que uma criança/um adolescente têm naturalmente. Mesmo assim, o ato de copiar páginas, resumir textos e escrever no papel foram importantes instrumentos alfabetizadores que, mais tarde, nutririam outras espécies de leitura “do mundo” mais complexo.
Com a internet incipiente, chegando lenta, pouco a pouco, a oportunidade foi se alastrando, sites e páginas aprofundavam informações e, hoje, quando a IA se mostra inafastável e (quase) todos não abandonam o smartphone, há um desafio cuja dimensão mostra uma contraditória realidade: os jovens podem ter dados sobre o mundo, mas isso não significa que absorveram o essencial, primordial à vida adulta.
Existem muitos estudos acadêmicos destacando a urgência em se adotar um parâmetro mínimo para o uso de ferramentas tecnológicas informáticas nos ambientes formativos (NAGUMO e TELES, 2016), norteando o corpo discente e docente à reflexão. Não se trata de negligenciar os avanços e devolver lousa e giz ao cenário da sala como se estivesse a escola retrógrada até o século XIX. Até porque laboratórios, telescópios, microscópios e tantas outras inovações já se mostram úteis e induzem a busca pelo conhecimento. Programas de apoio governamental que oferecem tablets, laptops e dispositivos móveis conectados para uso em momentos específicos e para serviços delineados são dignos de reconhecimento, pelo que os estudantes, mormente quem está matriculado na rede pública, se beneficiarão de medidas que, longe de inibir a vida real digitalizada, põem na ordem do dia o que seria de bom alvitre perceber: uso saudável não se confunde com excessos ou desatenção gerada por interferências externas à aula - como redes sociais e jogos não monitorados durante o período letivo.
O Decreto 12385, que regulamenta a Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025, para tratar da proibição do uso, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante a aula, o recreio ou o intervalo entre as aulas, para todas as etapas da educação básica, com o objetivo de preservar a saúde mental, física e psíquica das crianças e dos adolescentes foi publicado em 19 de fevereiro de 2025. A norma observa a gestão democrática do ensino e garante a participação da comunidade escolar na adequação das regras ao contexto local (AGÊNCIA BRASIL, 2025). Isso significa que pais, professores, gestores e equipe escolar como um todo, além de grupos de interesse e a coletividade devem cooperar para um procedimento adequado de uso equilibrado, conforme costumes do lugar, da tecnologia. Uma tribo indígena na Amazônia e uma turma de alunos no centro de uma metrópole não lidam da mesma maneira com equipamentos eletrônicos
O detalhamento sobre as exceções para uso dos eletrônicos traz a necessidade de atestado, laudo médico ou outro documento assinado por profissional de saúde para casos em que o estudante necessite do celular para tecnologia assistiva no processo de ensino. (BRASIL, 2025, art. 3) Por razões óbvias, as pessoas com deficiência devem recorrer a ferramentas mais robustas de acesso às informações, cuja missão é amplificar os sentidos disponíveis. Um cego deve estudar por meio de audiolivros, um surdo pode instalar um app de tradução para LIBRAS, alguém com dislexia pode necessitar de suporte adicional à compreensão - e isso é a natureza da inclusão.
Também nos casos de monitoramento e cuidado de condições de saúde. A regra pode ser adaptada a outras formas de comprovação a critério dos sistemas de ensino.
O decreto define ainda a inclusão de estratégias de orientação dos estudantes e formação dos professores nos regimentos internos escolares e nas propostas pedagógicas. Foram definidos como obrigatórias as ofertas de educação digital para o uso seguro, responsável e equilibrado de aparelhos eletrônicos aos professores, que também deverão ser capacitados a identificar sinais de sofrimento psíquico em estudantes, decorrente do uso imoderado dos celulares.
Nos mesmos documentos das instituições de ensino, também deverão constar a forma como os celulares serão usados de forma pedagógica e como os aparelhos serão guardados durante a aula, o recreio ou os intervalos. As instituições de ensino também serão responsáveis por estabelecer as consequências do descumprimento da lei, considerando o que já foi estabelecido pelas normas federais e as orientações emitidas pelo Conselho Nacional de Educação. (AGÊNCIA BRASIL, 2025)
É intuitivo concluir que os estabelecimentos educativos são encarregados pela promoção de ações de conscientização sobre os riscos do uso imoderado de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais, de modo a integrar o tema ao planejamento pedagógico anual, oferta de formação aos profissionais da educação sobre: a) a educação digital para o uso seguro, responsável e equilibrado de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais; e b) a identificação de sinais de sofrimento psíquico em estudantes, decorrente do uso imoderado de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais; e promoção de espaços de escuta e garantir acolhimento aos estudantes, às professoras, aos professores e aos profissionais atuantes no estabelecimento de ensino que apresentem sinais de sofrimento psíquico relacionado ao uso de dispositivos digitais e às ofensas on-line. (BRASIL, 2025)
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA BRASIL. Governo regulamenta lei que restringe uso do celular na escola. 2025. Disponível em: https://www.diariodigital.com.br/geral/governo-regulamenta-lei-que-restringe-uso-de-celular-na-escola .
BRASIL, República Federativa do. Decreto n. 12.385, de 18 de janeiro de 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2025/Decreto/D12385.htm .
NAGUMO, Estevon; TELES, Lucio França. O uso do celular por estudantes na escola: motivos e desdobramentos. Revista brasileira de estudos pedagógicos, v. 97, p. 356-371, 2016.