Assim que tomou posse, Donald Trump assinou um decreto dando poderes quase imperiais a Ílion Musk. Ontem ele assinou outro decreto ampliando esses poderes 1. Na prática Ílion Musk pode reestruturar toda a administração federal dos EUA sem ter que prestar contas a ninguém, exceto ao presidente.
Decisões tomadas com base nos decretos presidenciais de Donald Trump já começaram a ser contestadas nas ruas e na Justiça. A tensão política tende a aumentar porque Ílion Musk e seus assessores act fast and break things. Agir rápido e quebrar coisas é um dos corolários da nova mentalidade gerencial2 criada pelo Vale do Silício.
O que é bom para indústrias que se destacam pela defesa intransigente da ausência de regulamentação e um certo desprezo por normas legais e constitucionais que outorgam direitos aos cidadãos (e aos empregados delas também, como no caso da Amazon 3), não é necessariamente bom para o Estado. A razão disso é singela.
Estados cuidam de interesses públicos de longo prazo dos cidadãos e não podem operar de acordo com a lógica privada da maximização do lucro e da redução de despesas. Ao contrário, em situações de crise causadas por fenômenos naturais, problemas econômicos, emergências sanitárias, danos às infraestruturas urbanas e industriais por causa de conflitos militares, etc... o Estado deve aumentar as despesas para poder assim evitar ou minimizar tragédias humanitárias que colocam em risco sua própria existência.
Act fast and break things na esfera estatal nunca é uma boa estratégia. Uma prova histórica disso nos foi dada pelos expurgos político-ideológicos que Stalin fez nas Forças Armadas da URSS durante os anos 1930. Quando a Operação Barbarossa iniciou em 22 de junho de 1941 o Exército Vermelho estava tão debilitado que não foi capaz de resistir à invasão das tropas alemãs. Elas rapidamente controlaram imensas porções da União Soviética, capturando milhões de soldados destreinados, mal equipados e sobretudo pessimamente comandados.
Os estragos que Ílion Musk e seus comandados causarão ao Estado norte-americano serão imensos e provavelmente duradouros. O que é ruim para os EUA certamente pode ser considerado bom pelos adversários dos norte-americanos. Mas nenhum deles tentará impedir Donald Trump de seguir em frente. Muito pelo contrário, o presidente dos EUA será muito aplaudido inclusive e principalmente por aqueles que em hipótese alguma farão o que ele está fazendo.
Nesse ponto, o leitor deve estar se perguntando porque grafei o nome de Elon Musk como Ílion Musk. Explicarei isso em breve.
Antes, porém, sugiro ao leitor que veja o vídeo Elon Musk: Everything You Didn't Know About His Sh*tty Past4. Essa é uma excelente vídeo-biografia das coisas que Ílion Musk alega ter feito, mas que ele efetivamente não fez. Erin Ryan e Alyssa Mastromonaco mergulharam apenas na verdade factual para mostrar como o mito do dono da Space X foi criado.
É uma pena que a vídeo-biografia de Ílion Musk delas será provavelmente considerada irrelevante, ofensiva e, eventualmente, Fake News pela legião de adoradores do dono da Tesla. Mas esse fato também é importante, porque produzirá consequências que eles mesmos considerarão indesejadas.
Nos últimos dias, por razões mitológico-irônicas, adquiri o hábito de escrever o nome de Elon como Ílion e agora foi explicar essa pequena modificação. Estou convencido de que ninguém pode dizer que Ílion Musk é imprevisível. Homero escreveu nas entrelinhas da Ilíada que ele também irá queimar junto com seu país.
Um dos temas centrais da Ilíada é o que os gregos chamavam de "hubris" (ὕβρις), um conceito que pode ser antônimo de "metis" (Μήτις). Como mencionei no início, existem diferenças qualitativas importantes entre a atividade empresarial (que visa o lucro privado à curto prazo) e a atividade pública do Estado (cujo objetivo é preservar a paz civil, a estabilidade política e o bem-estar da população à médio e longo prazo).
Empregando na esfera estatal a técnica gerencial do Vale do Silício (Act fast and break things) Ílion Musk age como se a Μήτις empresarial dele pudesse ser útil na arena pública e estatal e esta é uma demonstração clara de ὕβρις. É precisamente neste ponto que a realidade atual nos EUA se inter-relaciona com o poema épico de Homero.
Páris comprometeu a existência de sua cidade-estado quando fez uma má escolha privada (tenha essa escolha ocorrido no concurso das deusas ou quando ele levou a esposa infiel de Menelau para Troia). E sim, exatamente como a cidade de Ílion, os negócios de Ílion Musk estão rapidamente caindo: carros Tesla estão sendo vandalizados nos EUA e na Europa, as vendas da Tesla estão caindo em todos os países, campanhas associando o nome Tesla ao nazismo viralizam comprometendo a imagem da marca, o valor das ações da Tesla despencaram e os proprietários de carros estão começando a processar a empresa e seu CEO.
A verdade factual pode ser escondida, distorcida ou destruída por Fake News e campanhas de propaganda. Mas na arena mitológica Ílion é sempre derrotada, justamente porque a "hubris" (ὕβρις) de homens poderosos como Príamo ou Ílion Musk deixam os deuses furiosos e com vontade de quebrar países.
Notas
1 https://www.theguardian.com/us-news/2025/feb/26/trump-executive-order-musk-doge
2 https://hbr.org/2019/01/the-era-of-move-fast-and-break-things-is-over
3https://www.intercept.com.br/2020/12/08/trabalhadores-da-amazon-estao-organizando-uma-luta-global/
4 https://www.youtube.com/watch?v=4y40RU5Nx6U