É de conhecimento geral que a reforma trabalhista ocorrida em 2017 trouxe grandes mudanças para o âmbito das relações empregatícias dando espaço para negociações coletivas e catalisando as normas decorrentes dos instrumentos normativos firmados entre a classe dos profissionais e econômica, tanto que consolidou o “negociado sobre o legislado” na ordem jurídica trabalhista.
Dentre as inovações legais que justificaram a fama da Lei nº 13.467/2017, de trazer as negociações setoriais à frente da legislação está o art. 611-A da CLT, que prevê que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando dispuserem sobre: intervalo intrajornada, participação nos lucros e resultados, regulamento empresarial, teletrabalho, plano de cargos e salário, banco de horas, jornada de trabalho entre outras.
Tal artigo foi respaldado pela a aplicação do texto constitucional contido no artigo 7º, inciso XXVI da CF/88, que reconhece as convenções e acordos coletivos como parte integrante dos direitos trabalhistas.
Para melhor conceituar, a convenção coletiva, segundo art. 611. da CLT, é o “acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho”.
A definição de Acordo Coletivo, por sua vez, é trazida logo no §1º do artigo supracitado que dispõe o seguinte:
Art. 611. (...)
§ 1º É facultado aos Sindicatos representativos de categorias profissionais celebrar Acordos Coletivos com uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa ou das acordantes respectivas relações de trabalho.
A diferença entre tais instrumentos normativos está justamente nas partes negociantes. Enquanto a convenção coletiva é formada por duas entidades de classe, o acordo é mais específico, envolvendo apenas o sindicato dos profissionais e determinada empresa.
Independente disso, é fato que as normas coletivas por força da Constituição possuem “status” de Lei, possuindo inclusive prevalência sobre a legislação trabalhista em várias matérias, conforme já mencionado anteriormente.
Tanto é assim que em 2020 o Supremo Tribunal Federal apreciou Recurso Extraordinário com Agravo em que se discutia, à luz dos arts. 5º, incisos II, LV e XXXV; e 7º, incisos XIII e XXVI, da Constituição Federal, a manutenção de norma coletiva de trabalho que restringe direito trabalhista, desde que não seja absolutamente indisponível, independentemente da explicitação de vantagens compensatórias.
No julgamento da demanda, a Corte Superior pacificou o tema que há tempos movimentava o judiciário, fixando a seguinte tese:
São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.
Tal decisão reforçou a tendência trazida pela reforma trabalhista de que o negociado prevaleceria sobre o legislado, motivo pelo qual houve uma mudança radical nas jurisprudenciais dos Tribunais Regionais do Trabalho e do próprio Tribunal Superior do Trabalho que, adequando-se ao novo entendimento, tem reiteradamente aplicado o Tema 1046 quase que indiscriminadamente em qualquer tema que envolva negociações coletivas, especialmente acerca do intervalo intrajornada.
É de chamar atenção o fato de que o STF resguardou da liberdade negocial os chamados direitos absolutamente indisponíveis.
Sem necessariamente esclarecer o que poderia ser considerado como tal, a Corte Suprema decidiu que a restrição dos direitos trabalhistas pelos instrumentos normativos deve, em qualquer caso, respeitar os direitos absolutamente indisponíveis assegurados: (i) pelas normas constitucionais, (ii) pelas normas de tratados e convenções internacionais incorporadas ao Direito Brasileiro e (iii) pelas normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores", assegurando o patamar mínimo civilizatório.
Mesmo que o conceito de “direito indisponível” tenha se mantido um pouco abstrato é certo o intervalo intrajornada foi excluído dessa qualificação pelo STF, e grande parte disso se deve ao fato de que a partir de 2017, regras sobre duração do trabalho e intervalos passaram a não ser mais consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho. Senão, veja-se como dispõe o parágrafo único do ar. 611-B, da CLT
Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos:
(...)
XVII - normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho;
(...)
Parágrafo único. Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.
Ao deixar de ter “status” de norma de saúde, higiene e segurança, a norma que prevê o intervalo intrajornada deixou ter vínculo com a garantia constitucional prevista no art. 7º, inciso XXII, que dispõe que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.”
Ao deixar de ter vínculo com os direitos constitucionais a regra do intervalo intrajornada, assim como de outras garantias dos trabalhadores, passou a ser considerada direitos disponíveis que podem ser restringidos mediante acordos e convenções coletivas considerando a adequação setorial negociada.
Desde a consolidação desse entendimento pelo STF milhares de processos que discutiam acerca da validade do intervalo de 30 minutos foram julgados, sendo aplicado a tese fixada por meio do Tema 1046 e, portanto, indeferidos os pedidos decorrentes.
No entanto, é certo que o direito está sempre em movimento acompanhando a conjuntura socioeconômica, especialmente a jurisprudência, definido como o conjunto das decisões, aplicações e interpretações das leis proferidos pelos Tribunais, que, de forma mais célere, consegue acompanhar os anseios da sociedade.
E justamente devido a isso que é possível afirmar que mesmo agora o tema relacionado à disponibilidade dos intervalos para descanso não está totalmente finalizado.
Em decisões recentes, pode-se verificar um movimento embrionário para retomar a discussão do fato de que os intervalos e a própria jornada de trabalho não assumem um viés puramente econômico, mas buscam dar efetividade às normas que tratam de saúde e medicina do trabalho.
Inclusive, a doutrina trabalhista mais tradicional não desassocia completamente os intervalos com a saúde e segurança do trabalhador. Nesse sentido, ensina o Ministro do TST Maurício Godinho Delgado:
Intervalos e jornada, hoje, não se enquadram, porém, como problemas estritamente econômicos, relativos ao montante de força de trabalho que o obreiro transfere ao empregador em face do contrato pactuado. É que os avanços das pesquisas acerca da saúde e segurança no cenário empregatício têm ensinado que a extensão do contato do empregado com certas atividades ou ambientes laborativos é elemento decisivo à configuração do potencial efeito insalubre ou perigoso desses ambientes ou atividades. Tais reflexões têm levado à noção de que a redução da jornada em certas atividades ou ambientes, ou a fixação de adequados intervalos no seu interior, constituem medidas profiláticas importantes no contexto da moderna medicina laboral. Noutras palavras, as normas jurídicas concernentes à jornada e intervalos não são, hoje, tendencialmente, dispositivos estritamente econômicos, já que podem alcançar, em certos casos, o caráter determinante de regras de medicina e segurança do trabalho, portanto, normas de saúde pública 1 .
Corroborando com o entendimento do professor, vem sendo inserido nesse debate algumas normas constitucionais brasileiras e até mesmo internacionais que não poderiam ser objeto de transação entre as entidades de classe.
No âmbito constitucional, vem sendo ressaltado que o artigo 225 garante a todos o direito a um meio ambiente equilibrado, abrangendo também o ambiente de trabalho (conforme o artigo 200, inciso VIII, da Constituição Federal), por ser fundamental para uma vida saudável. Dessa forma, tanto o Poder Público quanto a sociedade, incluindo os empregadores, têm a responsabilidade de protegê-lo e preservá-lo. Além disso, conforme o artigo 7.º, inciso XXII, da Constituição Federal, é um direito dos trabalhadores, tanto urbanos quanto rurais, a diminuição dos riscos ocupacionais por meio da aplicação de normas de saúde, higiene e segurança.
No cenário internacional, a garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável foi incorporada à quinta categoria dos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, conforme estabelecido pelas Convenções n.º 155 e 187 da OIT. Além disso, a Agenda 2030 da ONU definiu o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico – cuja Meta 8.8 prevê a proteção dos direitos trabalhistas e a promoção de condições seguras para todos os trabalhadores, incluindo migrantes, com atenção especial às mulheres migrantes e àqueles em empregos precários.
Considerando todo o contexto envolvido é certo que a discussão acerca da matéria não se exauriu por meio do Tema 1046. Inclusive, é necessário destacar que em 2023, a Suprema Corte, ao julgar ação direta de inconstitucionalidade na qual eram questionados diversos pontos da Lei 13.103/2015 referentes à jornada de trabalho, bem como a pausas para descanso e repouso semanal de motoristas rodoviários profissionais (ADI n.º 5.322), considerou incompatível com a Carta Magna a produção legislativa estatal que inviabilizava a recuperação física desses trabalhadores.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, consignou que "o descanso tem relação direta com a saúde do trabalhador, constituindo parte de direito social indisponível". Com base nessa compreensão, o Tribunal considerou inconstitucionais inúmeros dispositivos celetistas que flexibilizavam (fracionavam ou reduziam) os descansos interjornada e semanais dos motoristas profissionais.
Tal entendimento vem levantando questionamentos entre os aplicadores e operadores do direito sobre o fato de a indisponibilidade do direito social ao descanso ser um privilégio apenas dos motoristas profissionais ou se estenderia a outros trabalhadores.
Integrando ao debate, recentemente a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, sob a Relatoria da Ministra Maria Helena Mallmann, se posicionou no sentido de que “não se justifica a assertiva de que somente os descansos dos motoristas profissionais assumem a característica de direito social indisponível, porque, em maior ou menor medida, o risco de acidentes está presente em outras atividades além do transporte rodoviário de cargas e de pessoas”.
Na decisão foi destacado ainda que “são comparáveis aos riscos da atividade dos motoristas profissionais aqueles originados do labor em fábricas; usinas (notadamente termonucleares); refinarias; plataformas de petróleo; aeronaves; hospitais; postos de gasolina; etc.
Concluindo-se que o parâmetro de constitucionalidade levado em conta no julgamento da ADI n.º 5.322 aplica-se a outras atividades profissionais, notadamente aquelas que geram risco acentuado ao próprio trabalhador e a terceiros. Desse modo, à luz da abrangência que o STF conferiu ao art. 7.º, XXII, da Constituição Federal, o direito ao repouso compõe aquilo que vem se denominando patamar mínimo civilizatório, de modo que não há como tomar indistintamente por válida toda e qualquer norma coletiva que importa na redução dos parâmetros legais associados aos descansos intrajornada, interjornada, semanal e anual (férias)2.
O que vem se destacando nesse debate, portanto, é que há circunstâncias excepcionais que podem ensejar a declaração de invalidade da norma coletiva atinente aos intervalos intrajornada. A título exemplificativo, citam-se a duração do descanso inferior a 30 minutos; a prestação habitual de jornadas extenuantes; a execução de atividades penosas (tal como o trabalho em minas de subsolo; carvoarias; lavouras de corte de cana-de-açúcar ou coleta de lixo em vias públicas); e a execução de atividades que provoquem risco extraordinário para si mesmo ou para terceiros (como a de operadores de voo e motoristas profissionais), não bastando, para tanto, a mera percepção de adicional de risco ou de periculosidade .
De outro lado, o que se consolida é que se não ficar configurada alguma das excepcionalíssimas hipóteses que inviabilizariam a flexibilização da duração do intervalo intrajornada, como as citadas acima, o intervalo intrajornada pode sim ser reduzido conforme a necessidade setorial, sem que essa redução seja incompatível com o seu objetivo que é o descanso e proteção do trabalhador, resguardando sua saúde.
A existência de tal debate no entanto, não traz qualquer grande mudança no entendimento atual, o que traz tranquilidade à classe econômica e às empresas no geral. Inclusive, até momento, majoritariamente vem sendo aplicado o entendimento firmado na Tema 1046, sem levar em consideração as nuances do caso concreto.
Não obstante ausência de efeitos práticos atuais, a discussão merece atenção dos empregadores especialmente porque o debate promete se acalorar com o passar do tempo e refletir nas decisões judiciais especialmente nas ações em que envolve as hipóteses excepcionais. É possível afirmar que tal tema justificaria, inclusive, uma consultoria jurídica especializada para acompanhar as movimentações acerca do assunto evitando passivos trabalhistas no futuro.
1 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 20. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023. p.1075
2TST. Recurso de Revista nº 0000463-47.2017.5.12.0046. 2ª Turma do TST. Relatora Ministra Maria Helena Mallmann. Julgado em 25/07/2024.