A regularização de imóveis pode apresentar diversos desafios e um deles é se deparar com a expressão "domínio útil" por ocasião da análise da matrícula do imóvel objeto da análise. A expressão "domínio útil" do assento registral imobiliário refere-se a uma situação jurídica em que a PROPRIEDADE PLENA do bem está desdobrada em dois direitos distintos: o DOMÍNIO DIRETO, que permanece com o proprietário original (geralmente um ente público ou uma entidade privada, como a União), e o DOMÍNIO ÚTIL, que é o direito de uso e fruição do imóvel por parte de um terceiro, denominado "enfiteuta" ou "foreiro". Essa configuração é típica de imóveis submetidos ao regime de enfiteuse ou aforamento, em que o domínio útil pode ser transferido, alienado ou, em alguns casos, adquirido por USUCAPIÃO, desde que preenchidos os requisitos legais. A possibilidade de regularização de um imóvel com essa característica por meio da usucapião, especialmente na modalidade extrajudicial, depende de uma análise cuidadosa das circunstâncias do caso concreto e da legislação aplicável, mas é importante conhecer desde já precedentes valiosos como o REsp 575572/RS julgado em 06/09/2025 que é categórico e didático:
"STJ. REsp 575572/RS. J. em 06/09/2005. Civil e processo civil. Recurso especial. Usucapião. Domínio público. Enfiteuse."É possível reconhecer a usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tinha sido, anteriormente, instituída enfiteuse, pois, nesta circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao Estado. Recurso especial não conhecido".
Como sabemos, Usucapião é instituto legitimamente reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro que prestigia o direito de propriedade e o direito à moradia (arts. 5º e 6º da CRFB/88), que se concretiza como um modo originário de aquisição da propriedade e também de direitos reais, como o DOMÍNIO ÚTIL, pela posse prolongada e qualificada. No caso de imóveis com domínio útil, a usucapião pode ser viável desde que o imóvel esteja submetido ao regime de aforamento e que o possuidor tenha exercido a posse de forma contínua, mansa, pacífica e com"animus domini"pelo período exigido em lei. O artigo 1.238 do Código Civil estabelece que, na modalidade extraordinária, o prazo para aquisição é de 15 anos, reduzido para 10 anos se o possuidor tiver estabelecido moradia habitual ou realizado obras de caráter produtivo no imóvel. Como vimos, a jurisprudência reforça que, nesses casos, a usucapião do domínio útil (e não a Usucapião da propriedade do imóvel público - o que é incabível) não afeta o domínio direto, que permanece com o proprietário original, como a União ou outro ente público, como sentencia o REsp citado.
É importante destacar que o fato de se tratar de usucapião de Domínio Útil não poderá representar obstáculo para o seu processamento pela via cartorária: a usucapião extrajudicial, embasada no artigo 216-A da Lei de Registros Publicos e regulamentada atualmente pelo Provimento CNJ 149/2023, é uma alternativa viável para a regularização de imóveis com domínio útil, desde que atendidos os requisitos legais. Esse procedimento permite que o reconhecimento da usucapião seja realizado diretamente no Cartório de Imóveis, sem a necessidade de um processo judicial, o que pode tornar o procedimento mais célere e até mesmo em alguns casos menos oneroso. Toda a documentação exigida pela Regulamentação deve ser apresentada, com destaque para a ATA NOTARIAL que é um item exigido apenas na via extrajudicial. Na via Extrajudicial também se exige a representação por ADVOGADO, tal como ocorre na via Judicial.
Portanto, a regularização de um imóvel cuja matrícula informe" domínio útil "por meio da usucapião extrajudicial é plenamente possível, tal como acontece há muito tempo na via judicial, desde que atendidos os requisitos legais e superados eventuais obstáculos do caso concreto, principalmente constatada a existência de enfiteuse ou aforamento anterior. A análise prévia e cuidadosa da documentação e das circunstâncias do caso concreto, aliada à assistência de um Advogado Especializado, é essencial para o sucesso do procedimento de regularização nestes casos. A usucapião, seja judicial ou extrajudicial, representa uma importante ferramenta para a regularização fundiária e a garantia do direito à propriedade, contribuindo para a segurança jurídica e a função social da posse e da propriedade.
Por fim, recente decisão do STJ consolidando a possibilidade da regularização de imóvel através da Usucapião que mira no Domínio Útil:
" STJ. AREsp: 2453583/RS. J. em: 11/06/2024. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. USUCAPIÃO. TERRENO DE MARINHA. BEM PÚBLICO. AQUISIÇÃO DE DOMÍNO PLENO. IMPOSSIBILIDADE. AQUISIÇÃO DE DOMÍNIO ÚTIL. VIABILIDADE. EXISTÊNCIA DE ENFITEUSE OU AFORAMENTO ANTERIOR. SÚMULA 7/STJ. INCIDÊNCIA. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015. NÃO CONFIGURADA. Cuida-se, na origem, de Ação de Usucapião promovida Kátia Rosana Lipinski Alexandre, objetivando a declaração de domínio de imóvel localizado na Travessa Carneiro Júnior, nº 136, Bairro Cidade Nova, Comarca de Rio Grande/RS. Defende que é detentora da posse mansa pacífica e ininterrupta (com animus domini) há mais de sete anos, bem assim de não existir inscrição imobiliária para o endereço do imóvel em questão. II. A sentença de primeiro grau foi no sentido de rechaçar a possibilidade de aquisição do domínio pleno do terreno de marinha, contudo, de ser admissível a aquisição do domínio útil do terreno, tendo em vista a existência de enfiteuse ou aforamento prévios em nome da corré Construtora Piratini, conforme registrado na matrícula do imóvel. III. O TRF da 4ª Região, em sede recursal, negou provimento ao recurso de apelação da União, entendendo pela possibilidade de aquisição do domínio útil do terreno, em razão de restar comprovado a existência de enfiteuse em nome da Construtora Piratini. IV. Recurso especial da União alegando violação dos arts. 489 e 1.022 do CPC/2015, ante a ausência de enfrentamento, no aresto recorrido do conteúdo de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. Aponta, ainda, violação dos mesmos dispositivos tidos como não analisados, os quais regulam as exigências para o regime enfiteutico e desdobramento do domínio útil. V. Entendimento do STJ e do STF de ser possível o reconhecimento da usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tenha sido, anteriormente, instituída enfiteuse, pois, nesta circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao Estado (RE 218.324/PE, Relator Ministro Joaquim Barbosa, Julgamento em 20/04/2010, Segunda Turma, DJe 28/05/2010 e AgInt no REsp 1642495, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 01/06/2017). VI. É inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial quanto à natureza jurídica da posse do imóvel público (terreno de marinha), se por ocupação ou por titularidade de domínio útil, pois exigiria o reexame do conjunto probatório já analisado, providência impossível pela via estreita do recurso especial, ante a incidência do enunciado da Súmula 7/STJ.VII. Recurso Especial conhecido parcialmente e, nesta parte, desprovido".