Resumo: O presente artigo analisa a aplicação da teoria da perda de uma chance no contexto da responsabilidade civil médica, especialmente em casos de erro médico. A teoria, originária do direito francês, permite a reparação de danos quando uma conduta ilícita reduz significativamente as chances de obtenção de um benefício, como a cura ou a sobrevida de um paciente. No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça tem consolidado essa abordagem, reconhecendo que a perda de uma chance constitui um dano autônomo indenizável. Para aprofundar essa análise, o artigo examina o Recurso Especial nº 1985977 - DF, que envolveu a omissão estatal ao não internar uma criança com pneumonia bacteriana, contrariando as diretrizes médicas. O estudo discute os fundamentos jurídicos da teoria, sua aplicabilidade no direito brasileiro, as dificuldades na quantificação do dano e os desafios enfrentados por médicos e tribunais. Conclui-se que a teoria da perda de uma chance representa um avanço na responsabilidade civil médica, garantindo a reparação adequada em casos onde a causalidade direta é de difícil comprovação.
Palavras-chave: Perda de uma chance; erro médico; responsabilidade civil; dano indenizável; nexo de causalidade; jurisprudência do STJ.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Teoria da Perda de uma Chance e sua Aplicação na Responsabilidade Civil Médica. 3. A Jurisprudência do STJ e o Caso do Recurso Especial nº 1985977 – DF. 3.1. Contexto Fático. 3.2. Fundamentos Jurídicos da Decisão. 4. Desafios e Críticas à Aplicação da Teoria da Perda de uma Chance no Direito Médico. 4.1. Dificuldade na Quantificação do Dano. 4.2. Exigência de Chance Séria e Real. 4.3. Resistência dos Profissionais da Saúde. 5. Conclusão
1. Introdução
A teoria da perda de uma chance surgiu no direito francês e tem sido cada vez mais aplicada no Brasil em diversas áreas, especialmente no campo da responsabilidade civil médica. A problemática central reside na dificuldade de comprovação do nexo causal em casos em que a conduta médica reduziu as probabilidades de cura ou sobrevida do paciente, sem que seja possível afirmar, com certeza absoluta, que a conduta foi a causa direta do dano final.
A relevância da temática se intensifica com o crescente número de ações judiciais envolvendo erro médico e a necessidade de garantir uma reparação justa para os danos sofridos pelos pacientes. O estudo buscará demonstrar a viabilidade da aplicação da teoria da perda de uma chance no contexto dos erros médicos, com ênfase na jurisprudência recente do STJ.
2. A Teoria da Perda de uma Chance e sua Aplicação na Responsabilidade Civil Médica
A teoria da perda de uma chance prevê a responsabilização do agente que, por sua conduta ilícita, priva a vítima de uma oportunidade razoável de obter um benefício ou evitar um prejuízo. No âmbito da responsabilidade civil médica, essa teoria se aplica quando o erro ou a omissão do profissional de saúde reduz significativamente a probabilidade de sucesso de um tratamento, mesmo que não se possa comprovar que o dano final decorreu exclusivamente da conduta médica.
De acordo com Yamashita e Duarte Filho (2023), a perda de uma chance se subdivide em dois tipos principais no contexto médico-hospitalar:
Perda da chance de evitar um prejuízo: ocorre quando a omissão ou erro impede que o paciente tenha acesso a um diagnóstico ou tratamento adequado, aumentando os riscos de complicações ou morte.
Perda da chance de obter um benefício: manifesta-se quando um procedimento não realizado ou um diagnóstico tardio compromete as perspectivas de cura ou melhora da qualidade de vida do paciente.
A doutrina brasileira tem acolhido essa teoria como uma forma intermediária de responsabilização, sendo aplicada quando há uma chance real e séria de um desfecho mais favorável ao paciente, frustrada pela atuação médica inadequada (CAVALIERI FILHO, 2020).
3. A Jurisprudência do STJ e o Caso do Recurso Especial nº 1985977 – DF
A aplicação da teoria da perda de uma chance no Brasil tem sido consolidada principalmente pela jurisprudência do STJ. No Recurso Especial nº 1985977 - DF, julgado em 2024, discutiu-se a responsabilidade do Estado pela morte de uma criança de nove meses diagnosticada com pneumonia bacteriana.
No caso analisado pelo STJ, a criança apresentava um histórico de prematuridade e doença pulmonar crônica. Ao ser levada ao hospital com sintomas de pneumonia, foi diagnosticada corretamente, mas recebeu alta sem internação, contrariando as diretrizes do Ministério da Saúde, que recomendam a internação para crianças com doenças pulmonares preexistentes. No dia seguinte à alta hospitalar, a criança faleceu em casa.
O STJ entendeu que a ausência de internação hospitalar privou a criança da chance real e concreta de receber um tratamento adequado e de evitar o óbito, aplicando a teoria da perda de uma chance para reconhecer a responsabilidade do Estado.
O acórdão do STJ considerou os seguintes pontos cruciais para a aplicação da teoria da perda de uma chance:
Descumprimento de protocolo médico: O hospital não seguiu a recomendação do Ministério da Saúde para internação de crianças com pneumonia e histórico de doença pulmonar grave.
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Hipossuficiência probatória: O Tribunal reconheceu a dificuldade da família da vítima em comprovar, com certeza absoluta, que a internação teria evitado o óbito, o que justificou a inversão do ônus da prova.
Probabilidade razoável de sobrevida: A Corte entendeu que a internação teria aumentado significativamente as chances de a criança sobreviver, ainda que não fosse possível afirmar que o tratamento hospitalar teria garantido a cura.
A decisão reforça a ideia de que a perda de uma chance é um dano autônomo indenizável, independentemente de prova categórica sobre o resultado final.
4. Desafios e Críticas à Aplicação da Teoria da Perda de uma Chance no Direito Médico
Apesar dos avanços jurisprudenciais, a aplicação da teoria da perda de uma chance no direito médico ainda enfrenta desafios doutrinários e práticos.
Diferentemente dos danos materiais e morais, a perda de uma chance não pode ser indenizada pelo valor integral do dano final, mas apenas pela redução da probabilidade de um desfecho favorável. A quantificação desse prejuízo é uma questão controversa e depende da análise de probabilidades médicas e estatísticas.
A doutrina exige que a chance perdida seja concreta e mensurável, afastando meras especulações. No entanto, a subjetividade dessa análise pode levar a decisões divergentes entre os tribunais.
A aplicação da teoria gera receio entre os profissionais de saúde, que temem uma ampliação excessiva da responsabilidade médica. No entanto, a jurisprudência do STJ tem estabelecido que a responsabilização depende da demonstração de que a conduta médica violou protocolos estabelecidos ou comprometeu significativamente o prognóstico do paciente.
5. Conclusão
A teoria da perda de uma chance tem se consolidado no Brasil como um importante instrumento para garantir a responsabilização civil em casos de erro médico, especialmente quando há incerteza quanto ao nexo causal direto entre a conduta médica e o dano final.
O julgamento do Recurso Especial nº 1985977 - DF pelo STJ representa um avanço significativo na aplicação da teoria no âmbito da responsabilidade civil médica, reafirmando que a perda de uma chance concreta e razoável de cura ou sobrevida é um dano indenizável.
Diante disso, sugere-se que a aplicação dessa teoria seja acompanhada por critérios objetivos que garantam segurança jurídica, tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde.
Referências
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil: Teoria e Prática. 4. ed. São Paulo: Editora RT, 2021.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2020.
NORONHA, Fernando. Teoria da Perda de uma Chance: Fundamentos e Aplicações. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.
ROSADO, Ruy. Responsabilidade Civil Médica e Perda de Chance. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
YAMASHITA, Hugo Tubone; DUARTE FILHO, Marco Antônio Savazzo. "Indenização por Perda de Chance". Revista de Direito Privado, vol. 117, ano 24, p. 161-182, São Paulo: Editora RT, jul./set. 2023.