Brasília, 13 de fevereiro de 2023
Introdução
Desde o “descobrimento” do Brasil, termo questionável pela desvalorização da cultura indígena que já estava presente em território brasileiro, instaurou-se um processo de dominação de origem portuguesa.
Tal processo se manteve vigente até a independência, cujas consequências mantiveram seus efeitos mesmo após 1822. Da mesma forma, as relações sociais foram estabelecidas seguindo critérios de preconceitos baseados na cor, raça e etnia dos indivíduos.
Apresentando como metodologia principal a análise crítica de autores e movimentos do histórico brasileiro, este trabalho apresenta, em suas bases, a exclusão história do povo negro nas decisões de poder como ponto de partida.
Nesse aspecto, o presente trabalho tem por objetivo estudar, como pergunta norteadora principal:
Até que ponto as heranças e as contradições da história influenciam na cidadania do povo afrodescendente?
Segundo o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, todos são iguais perante a lei. Essa igualdade, no entanto, responde aos princípios da equidade, em que, na medida das desigualdades já existentes, são justificáveis medidas de compatibilização de direitos.
Contrariamente, o contexto histórico brasileiro não foi permeado pelos ideais garantidores de direitos da Constituição Federal de 1988, fato que será estudado durante este trabalho. Ainda nessa linha de pensamento, serão abordadas obras de notáveis autores que consolidem a percepção de opressão histórica gerada contra a população negra, principalmente no que concerne à desigualdade de direitos e oportunidades.
Por fim, vale salientar o “abandono legal” sofrido pela população afrodescendente, marginalizados das decisões de poder, espaços políticos, culturais, empresariais, além de toda desigualdade no que tange à questão do ensino básico, tanto no ensino fundamental e médio, processo de alfabetização e, também, no acesso ao ensino superior.
Desenvolvimento
Inicialmente, o contexto histórico brasileiro de 1822 não estabelecia uma sociedade homogênea de direitos. Advindo de uma das colonizações mais escravocratas da história mundial, o Brasil detinha bases econômicas puramente norteadas pela força de trabalho negra. Vale destacar, no entanto, que o Brasil também se destacava por possuir uma numerosa população de negros livres, condição de estudo deste trabalho.
Afastados das fazendas cafeeiras e campos de trabalho forçado, tal população se mantinha num impasse do Estado brasileiro: enquanto o pensamento liberal asseguraria as liberdades e garantias individuais, era incisivo ao manter o “direito de propriedade”, fato que justificaria a escravidão.
Nesse contexto conturbado, o livro “Escravidão e cidadania no Brasil monárquico”, de Hebe Maria Mattos, remonta brilhantemente o período estudado. Professora universitária, a autora se dedica ao estudo das desigualdades de cor desde sua graduação, em 1980. Em sua pesquisa de mestrado, abordou a questão do escravo relacionada aos grandes proprietários de terras, fato que apresenta como uma dicotomia.
Além disso, Hebe estudou o período pós-abolição, assim como a invisibilidade do povo recém-liberto, fato que será analisado posteriormente neste trabalho. No livro apresentado, vale citar, por exemplo, o contexto das américas, uma vez que o Brasil teve um processo abolicionista atrasado ao máximo, de modo que os demais países do continente já haviam abolido a escravidão enquanto as elites brasileiras lutavam pelos seus interesses de lucro a todo custo.
As desigualdades sociais vistas no período estudado detêm bases intrínsecas à sociedade do período, baseadas em ideias de superioridade de raça, noções biológicas e excludentes. A própria noção do termo raça, no contexto da escravidão dos Estados Unidos da América, influenciou fortemente o Brasil república a manter a ordem social vigente.
Hebe possui uma lógica fundamental de abordagem, ao promover uma análise histórica que traduz o contexto do brasil independente sem retirar as bases da coroa portuguesa, que promovia a dominação sobre os povos baseando-se na fé. Nesse sentido, as ideias de evangelização da igreja católica foram norteadoras do processo de “domesticação” dos indígenas, assim como a dominação sobre os povos africanos.
Dessa maneira, as relações de cidadania foram marcadas por tais amarras históricas, ainda que disfarçadas pelo aparato legal. Nesse sentido, a Constituição de 1824 abordou descrição acerca de quem poderia ser considerado cidadão no Brasil:
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.
Desse modo, os próprios portugueses que se mantivessem no Brasil poderiam ser considerados cidadãos, além disso, a cidadania ainda é garantida aos “ingênuos” ou libertos. Vale destacar, no entanto, que a carta magna de 1824 estabelece o voto censitário, ou seja, houve um estabelecimento de renda mínima para que se tivesse acesso às sessões eleitorais e, além disso, um outro requisito de renda, dessa vez ainda maior, para que fosse possível a candidatura do cidadão a um cargo eletivo.
É importante salientar, ainda, que há uma imensa lacuna entre a equiparação da cidadania ocorrida na Constituição de 1824 e a real consolidação de tais direitos. Em um contexto de escravidão ainda vigente, as discriminações raciais no cotidiano da população se mantiveram constantes, inclusive com as desconfianças acerca da liberdade do cidadão, frequentemente confundido com “escravos fugitivos”.
No que tange à população parda, tais direitos expressos no positivismo da lei também não excluem as desigualdades diárias, no entanto, é indiscutível que o tom de pele mais claro trouxe à população parda muito mais facilidade e respeito no convívio social.
Acerca, inclusive, da origem de tal população, é notável salientar o processo ocorrido no Brasil conhecido como “embranquecimento populacional”. Tal condição é muito bem representada na obra “A Redenção de Cam”, pintada em 1895. Na pintura, Modesto Brocos representa uma recém-nascida que possui a pele clara.
Esse bebê, no entanto, está cercado por sua vó, uma escrava liberta que agradece aos céus por sua filha, que pode ser considerada como parda, ter se casado com um homem branco. Dessa maneira, sua neta nasceu com um tom de pele que proporcionaria melhor condição de vida a ela, uma vez que estaria menos sujeita às opressões e discriminações do convívio social do século XIX.
Figura 1 - A Redenção de Cam, de Modesto Brocos
Disponível em: www.pt.wikipedia.org/wiki/A_Redenção_de_Cam, acesso em 13/02/2023.
No contexto apresentado, em meados do século XIX, a cena política assistiu de maneira singular ao processo da escravidão. Mesmo que o debate e a transformação dos radicais liberais, posteriormente consolidados como republicanos, eram singulares em defender a garantia e emancipação das liberdades, mesmo assim, no entanto, tal setor social apenas garantiu apoio à abolição em 1887, quando tal movimento já dominava as discussões no país.
Essas ideias são ponto de debate do livro “República, democracia e federalismo”, de José Murilo de Carvalho, que aborda o contexto histórico de 1870 a 1891, o Manifesto Republicado de 1870 e a Constituição de 1891, respectivamente.
Atrelado ao paradigma apresentado, tendo como pano de fundo as contradições liberais do século XIX, é importante notar importantes figuras intelectuais e políticas do período. Dentre elas, vale citar Alberto Sales, irmão de Campos Sales que, posteriormente, viria a ser presidente da república. Nesse contexto, Alberto era considerado um típico defensor dos pensamentos da elite do período, que fica evidenciado em uma de suas mais famosas falas: “O africano, além de ser muito diferente do europeu, debaixo de muitos pontos de vista anatômicos e fisiológicos, ainda se acha em um grau muito embrionário da evolução mental”.
Outro nome de importante destaque é Rui Barbosa. Importante jurista e político, foi notório liberal, além de ministro da fazenda. Tal período no cargo foi justamente durante a abolição, atuação que foi duramente criticada, uma vez que Rui Barbosa realizou uma queima de arquivos de dados estatais acerca dos proprietários de escravos e suas posses no ministério que comandava.
Essa medida, no entanto, pode ser considerada extremamente controversa, uma vez que, ao mesmo tempo que impediria qualquer pedido de indenização estatal para os grandes proprietários após a abolição, também impediu que os até então escravos reivindicassem qualquer reparação.
Ainda nessa ideia de paradigma, Rui Barbosa é tema da coletânea “Apreciação Geral da Reforma”, um aglomerado de discursos parlamentares do jurista. Nesse livro, além de Rui Barbosa criticar a lei Feijó, por conta de sua ineficácia na prática, é relator de um parecer acerca da “emancipação dos escravos”, é abordada uma crítica do parlamentar ao “arbítrio” de liberdade dos senhores feudais, a favor da abolição.
Diante dos expostos, nota-se que a questão da discriminação étnico-racial do Brasil detém bases estruturais, intrínsecas ao cotidiano, herdadas da colonização de exploração, perpassando o período da independência, abolição, a era Vargas, ditadura militar e até mesmo o contexto atual.
Assim, mesmo que a cidadania fosse garantida aos negros, não se pode afirmar no sentido da concretização de direitos, que ficaram escritos no papel, mas divergem da realidade das senzalas e quilombos.
Conclusão
Diante dos argumentos, autores e obras referenciados neste trabalho, fica evidente que a construção social herdada da colonização portuguesa se manteve no período da república, principalmente pelo interesse de manutenção dos interesses das elites detentoras do poder. Além disso, as pesquisas de Hebe Mattos servem como ponto de partida para elucidar a falsa utopia de que pretos, pardos e indígenas teriam efetivamente cidadania na Constituição de 1824.
Retomando a pergunta norteadora da pesquisa, fica evidente que os impactos da discriminação contra afrodescendentes perduram aos dias atuais. Nessa temática, é fundamental citar o livro “Pequeno Manual Antirracista”, de Djamila Ribeiro. Na obra, a autora apresenta o racismo como um complexo sistema de opressões que não é um ato individual, que cria desigualdades e um abismo social.
Para superar essa situação, Djamila propõe medidas de cunho antirracistas para alterar o status social de preconceitos. Durante a argumentação, é apresentado o conceito de lugar de fala, termo usado pela autora para explicitar a importância de se dar voz às minorias, que muitas vezes são sub-representadas por vozes que não compartilham das mesmas opressões cotidianas do grupo.
Portanto, as heranças e as contradições da história representam um impasse à realização da cidadania do povo afrodescendente, uma vez que seu caráter estrutural na sociedade promove opressões diárias, sufocamentos e cessação de direitos contra um povo cujos familiares foram escravizados há menos de 140 anos.
Para amenizar tal situação, é fundamental a criação e manutenção de políticas públicas e gestões governamentais que garantam a equidade, no que concerne, por exemplo, à manutenção da lei de cotas, instrumento de reparação histórica que vem transformando os corredores das universidades públicas no Brasil.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 de fevereiro de 2023.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de fevereiro de 1891. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 13 de fevereiro de 2023.
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em 13 de fevereiro de 2023.
BROCOS, Modesto. A Redenção de Cam. 1895 Pintura a óleo sobre tela, 199cm x 166cm, disponível em: www.pt.wikipedia.org/wiki/A_Redenção_de_Cam, Acesso em 13 de fevereiro de 2023.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Emancipação dos Escravos, parecer formulado pelo deputado Ruy Barbosa como relator das comissões reunidas de orçamento e justiça civil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1884.
CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo. Belo Horizonte: Varia História, 2011, p. 141-157.
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.