Houve época, em nosso país, em que, destacadamente, todo brasileiro se julgava um qualificado técnico de futebol, com capacidade, inclusive, de criticar o trabalho de treinadores de equipes profissionais e, até mesmo, da seleção nacional. Prevalecendo o “achismo”, não raras vezes com pressupostos equivocados, o fato ensejava até debates acalorados e, dificilmente, chegava-se a um consenso. A intensidade se reduziu, mas a prática continua.
É que, atualmente, em paralelo ao futebol, há um outro tema que vem ocupando espaço em nossas vidas: a discussão da segurança pública ou, como vem sendo tratada restritiva e generalizadamente, a contenção da criminalidade, em particular, a violenta.
A cada dia, a cada momento na mídia surge um “especialista” dando palpite (não chega a ser nem inferência), apresentando esdrúxulas propostas salvadoras, milagrosas. Órgãos públicos, que têm compromisso com a apresentação de efetivas políticas públicas, estão aparelhados, em maioria, com apaniguados, totalmente alienados em relação ao tema. Cientistas e pesquisadores da área, quase sempre, apresentam ora estudos abstratos, teóricos, vazios, para atender exigência imposta a bolsista, ora textos maledicentes para atender a uma “exigência ideológica remunerada”. A postura de maioria dos políticos é assustadora: não têm noção do conteúdo do discurso preparado pelo despreparado assessor; vão à tribuna “para cumprir tabela”, conforme linguagem do futebol, para fingir que estão atendendo clamores de seus eleitores. Contudo, ouso dizer que nenhum dos citados tem responsabilidade específica, nesse imbróglio reinante nessa barafunda em que vivemos, tão grande quanto os profissionais da área. Refiro-me à vertente doutrinária. A doutrina sobre proteção da sociedade, defesa social, salvaguarda ecossistêmica e afins mostra-se anacrônica, defasada, insuficiente, inadequada. A par de algumas contribuições individuais, não se observam movimentações sistêmicas para incrementá-la. Via de consequência, ocorrem equívocos terminológicos, desentendimentos conceituais, etc.
Citam-se, a seguir, dois exemplos flagrantes. O primeiro é a insistência (ou pirraça?) do Ministro Lewandowski, da Justiça e Segurança Pública, em apresentar uma PEC para resolver o problema da (in)segurança pública em nosso país. Consta que a Casa Civil teria dado uma travada, porque percebeu o arroubo, o êxtase da pretensão de resolver uma questão de Estado com um documento ministerial que melhora alguns pontos na causalidade, desconsiderando as causas e os efeitos dessa insegurança.
Outro fato, que seria cômico se não fosse trágico, é essa luta feroz para trocar a denominação Guarda Municipal para Polícia Municipal. Inclusive, há, no Congresso, uma descabida proposta de PEC para fazê-lo. Algumas cidades, açodadamente, já colocaram o novo nome em viaturas. Quando o Tema 656, do TSE, acatou a tese de que citado órgão municipal pode fazer policiamento ostensivo e comunitário, reconheceu que ele realiza atividade típica de Polícia. Ou seja, a Guarda Municipal é um órgão policial (pois realiza específica atividade de Polícia) que, ao lado de outros órgãos policiais, integra o sistema policial do município. Esse conjunto é que tem a denominação de Polícia Municipal.
Objetivamente, Polícia Municipal é gênero, Guarda Municipal é espécie. A Guarda pode ter outro nome? Sim, inclusive pode ter o substantivo Polícia e um adjetivo, que só não pode ser Municipal.
Então, é de se perguntar: esses políticos apressadinhos, desinformados, adeptos da pirotecnia política vão despintar as viaturas ou vão determinar que um órgão recémcriado desfile, diariamente, essa gafe, essa insensatez?
Outro fato é que, dias atrás, o MPSP expediu nota, constando que “a expressão polícia é utilizada para órgãos específicos, com atribuições bem delineadas no texto constitucional, que não se confundem com as das guardas, não podendo o município, a pretexto de autonomia legislativa, alterar a denominação da guarda municipal consagrada no artigo 144, §8º, da Constituição Federal, mesmo que ambas possam atuar na área de segurança pública, desempenhando funções complementares ou eventualmente coincidentes, como a prisão em flagrante, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Tema 656, de repercussão geral”. A alteração de denominação de guarda municipal para polícia municipal, de fato, não pode ocorrer. Contudo, o argumento apresentado é inconsistente, visto que a Constituição nomina órgãos policiais utilizando letras minúsculas, ou seja, faz citação de substantivos comuns e não de substantivos próprios. Vale dizer, o nome do órgão, o substantivo próprio não é considerado no texto constitucional.
Enfim, a estruturação da defesa da sociedade deve começar com o exame de seus fundamentos, que exige profundo conhecimento da doutrina policial: a legislação, a terminologia e as conceituações. Com a palavra os pesquisadores da área, sejam policiais ou não!