1 INTRODUÇÃO AO TEMA
A fase atual do capitalismo anuncia um sistema destrutivo, em que se amplia o empobrecimento e a miserabilidade de toda a classe trabalhadora, que está frequentemente desprovida de direitos sociais do trabalho. No Brasil, sempre vivenciamos as formas mais intensas e nefastas de exploração do trabalho e de precarização sem limites. Convive-se com o desemprego monumental, com a destruição ambiental, com a terceirização, com a flexibilidade e com a informalidade.
Diante de todo esse paradigma destrutivo das relações laborais, procura-se investigar se existe a possibilidade de “desmercantilizar” o trabalho, afastando-o do paradigma neoliberal, regulando o direito do trabalho de forma protetiva em um contexto de desigualdades e de subdesenvolvimento. Para essa análise, utilizou-se as pesquisas bibliográfica e documental, assim como a pesquisa de dados secundários.
2 CONCEITOS SOBRE O TRABALHO MEDIADO POR PLATAFORMAS DIGITAIS
Com o intuito de melhor compreender o contexto de extrema precarização laboral, mormente no que tange ao panorama do trabalho mediado por plataformas digitais, é preciso trabalhar alguns conceitos e aspectos que surgem quando se trata do tema.
Observa-se que a Indústria 4.0 atua dentro da velha lógica do capital de eliminar ao máximo o trabalho vivo, partindo do acirramento do processo de desenvolvimento técnico-científico conhecido como maquinaria e grande indústria, a exemplo do aumento da automação e da perda de controle sobre o processo por parte das trabalhadoras e dos trabalhadores. Trata-se de uma continuidade da etapa da grande indústria, em vez do surgimento de uma nova sociedade disruptiva e futurística (Arias, Pinto, 2023).
Dessarte, segundo Raianne Coutinho (2021), a Revolução 4.0 intensificou os processos produtivos automatizados, em toda cadeia geradora de valor, de modo que a logística empresarial seja toda controlada de modo digital, o que automatizou certas atividades, levantando questionamentos se ainda haveria trabalho no futuro. A racionalidade capitalista que impulsiona o capital possui um ímpeto de expansão que se lastreia na busca de formas mais baratas de exploração do trabalho humano.
Assim, o desenvolvimento das tecnologias digitais no interior da Indústria 4.0, mormente no que tange à automação, redefiniu a arena de luta de classes mundial à proporção que sofisticou as possibilidades de expropriação, levando-as a patamares inéditos, ampliando as desigualdades e a violência própria à divisão internacional, regional e racial do trabalho. Isso eleva absurdamente a subsunção real e formal da vida aos tempos (abstratos) da produção capitalista (Faustino; Lippold, 2023).
A Indústria 4.0, em geral, serve para indicar a digitalização e a automatização da produção e o papel central dos dados nos negócios. A expressão tem como origem um projeto estratégico do governo alemão e foi lançado em uma das maiores feiras de negócios do mundo, a Hannover Messe, que ocorreu em 2012. Do ponto de vista crítico, a Indústria 4.0 apresenta significado apenas ideológico, a serviço de uma marca do governo alemão, sendo necessário tomar cuidado ao utilizar essa expressão (Grohmann; Salvagni, 2023).
Na era da financeirização do capital, que prioriza o lucro das instituições financeiras, ocorre a centralização total da propriedade e um controle individualizado da trabalhadora e do trabalhador por meio de algoritmos, bem como uma grande desregulação do trabalho. O regime do trabalho mediado por plataformas envolve diversas maneiras de extração do valor a partir de diferentes plataformas de trabalho (Caldas, 2021).
Para Grohmann e Salvagni (2023), a financeirização é um padrão sistêmico de riqueza baseado em um processo de criação de excedente não explicado pela força de trabalho humano. Ou seja, é um componente estrutural do atual modo de produção capitalista que está no cerne dos negócios por plataformas. Para esses autores, o modelo das plataformas só emerge após um contexto de financeirização pelo mundo.
No que concerne à plataformização do trabalho, em conformidade com Grohmann (2020), a plataformização do trabalho é conceituada como a dependência que trabalhadoras, trabalhadores, consumidoras e consumidores passam a ter das plataformas digitais, incluindo suas lógicas algorítmicas, dataficadas e financeirizadas. Logo, o trabalho digital pode ser concebido como tarefas realizadas por pessoas que produzem valor para as plataformas a partir do cumprimento de contratos, nem sempre vistos como tais. São atividades marcadas por grande dependência tecnológica e submetidas à medição de rendimento.
A plataformização significa um foco mais detido nas plataformas digitais, abrangendo diferentes perfis, mecanismos e atividades de trabalho, a exemplo de treinadoras e treinadores de inteligência artificial e trabalhadoras e trabalhadores sexuais, etc., com diferentes e desiguais manifestações de raça, de gênero, de classe, de sexualidade, de localização, dentre outros. Não existe somente um tipo de plataforma, por isso há dificuldades de generalização de qualquer tópico quando se trata de trabalho por plataformas (Grohmann; Salvagni, 2023).
Já Ludmila Abílio (2020) denomina uberização do trabalho a tendência em curso que pode ser generalizável pelas relações de trabalho, que engloba diferentes setores da economia, tipos de ocupação, níveis de qualificação e rendimento, condições de trabalho, em âmbito global. É um termo que é derivado do fenômeno social que tomou visibilidade com a entrada da empresa Uber no mercado, referindo-se a processos que não restringem a essa empresa e nem se iniciam com ela, e que culminam em uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho.
A uberização seria um processo mais amplo, para além das plataformas digitais, inclusive enquanto processo de informalização e consolidação do trabalhador sob demanda. Isto é, a uberização seria um processo que vai além das próprias plataformas digitais e significa a subsunção do trabalho informal pelo capital e a transformação de cada trabalhadora e de cada trabalhador em trabalhadora/trabalhador sob demanda. O conceito “sob demanda” é a principal característica (Grohmann; Salvagni, 2023).
Como resultado, existe uma enorme massa de pessoas desempregadas que passam a trabalhar sob o comando das tecnologias digitais e seus algoritmos, o que permite o incentivo à individualização do trabalho que se consubstancia no empreendedorismo, na autonomia, conseguindo burlar a legislação protetora do trabalho. Os resultados são inúmeros, a saber: jornadas de trabalho extenuantes; salários reduzidos; dispensas sumárias; não custeamento da compra ou locação de veículos, motocicletas, bicicletas, celulares, internet, no qual o trinômio exploração/espoliação/expropriação se mesclam e se intensificam.
No próximo tópico, o objetivo é entender como o fenômeno do trabalho mediado por plataformas implica na superexploração dos trabalhadores.
3 TRABALHO MEDIADO POR PLATAFORMAS E A SUPEREXPLORAÇÃO DOS TRABALHADORES
Recentes pesquisas científicas evidenciam que o perfil padrão dos trabalhadores mediados por plataformas de entregas e de transporte coincide, de alguma maneira, com os trabalhadores do século XVIII, existindo uma verdadeira devastação das condições de trabalho. No século XXI, os trabalhadores que são mediados por plataformas agem coletivamente para reivindicar salário-mínimo, limite de jornada, repouso semanal e proteção previdenciária contra riscos e acidentes.
Esta pauta possui semelhança com a pauta dos movimentos paredistas do “breque dos apps”, uma greve nacional dos entregadores de aplicativos marcada para o dia primeiro de julho de 2020, discutida e decidida em grupos de WhatsApp de entregadores de alguns estados brasileiros. As reivindicações eram: aumento do valor das corridas; aumento do valor mínimo por entrega; fim dos bloqueios e dos desligamentos indevidos; seguro de roubo, de acidente e de vida; fim do sistema de pontuação e auxílio pandemia (EPI’s e licença).
Esse movimento faz lembrar a base do crowsourcing, que é uma multidão de trabalhadores disponíveis e engajados, que não são contratados ou pré-selecionados. Eles aderem às atividades disponíveis, arcam com os riscos e custos, dedicam o seu tempo de trabalho a tarefas pelas quais podem ou não ser remunerados, em atividades que podem ou não ser reconhecidas como trabalho. São trabalhadores just-in-time, quer dizer, trabalhadores disponíveis ao trabalho, que são utilizados de acordo com as determinações das empresas. O trabalhador just-in-time travestem-se como um empreendedor de si, considerando que é transferido para o trabalhador um gerenciamento de si, ou seja, um autogerenciamento subordinado, que ocorre na relação com as regras que regem ferrenhamente o trabalho (Ludmila Abílio, Amorim, Grohmann, 2021).
Cada vez parece ter mais sentido o termo “gamificação” que pode ser definido como a utilização de um sistema de scores e pontuações que acabam por criar rankings, classificações e níveis de engajamento dos entregadores. Quanto maior a “pontuação”, mais bem posicionado estará o entregador numa certa escala. Essa posição será determinante para receber mais ou menos produtos. Ganha-se pontos em cada entrega realizada e perde-se pontos em “faltas” ou “erros” (Festi, 2023).
A gamificação produz vários efeitos negativos sobre os entregadores de aplicativos, a exemplo da intensificação da competição entre eles com o fim de obter um maior número de entregas e, com isso, maior remuneração, bem como o maior controle político das empresas sobre os entregadores, pois são supervisionados por um ser humano (a/o operador/a logística/o) que poderá identificar os agentes que paralisaram em um determinado dia para participar de uma greve e puni-los com um bloqueio total ou parcial de seu acesso à plataforma ou com a diminuição da quantidade de entregas destinadas a ele (Festi, 2023).
Depreende-se que o perfil predominante do trabalhador em plataformas não é o de empreendedores que exercitam a autonomia no trabalho, definindo quando e quanto tempo trabalhar ou mesmo daqueles que conseguem receber rendimentos maiores que a média dos empregados. Por intermédio de uma pesquisa realizada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), no caso da plataforma Uber, revelou-se um perfil de motorista que trabalha, em geral, por exclusividade, por mais de oito horas diárias e mais de quarenta e quatro horas semanais, recebendo uma remuneração bruta inferior a dois salários-mínimos (Oliveira; Assis; Costa, 2019).
Nesse sentido, a pesquisa realizada por meio de parceria da Central Única de Trabalhadores (CUT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2021, revelou que nove de cada dez trabalhadores de aplicativos de entrega são homens, a maioria é jovem (até trinta anos), preta ou parda (68%), e tem, em média, renda mensal de R$ 1.172,63 (mil cento e setenta e dois reais e sessenta e três centavos), o que representa um ganho líquido de R$ 5,03 (cinco reais e três centavos) por hora trabalhada (Central Única dos Trabalhadores, 2021).
Questiona-se, perante todo esse paradigma destrutivo das relações laborais, se existe a possibilidade de “desmercantilizar” o trabalho. Para Dutra (2017), “desmercantilizar” o trabalho, no Brasil, significaria o afastamento do paradigma neoliberal, regulando de maneira protetiva as experiências de trabalho reminiscentes da escravidão (a exemplo do trabalho doméstico), estender o direito do trabalho para além do emprego (incluindo a garantia contra a dispensa arbitrária), bem como garantir as políticas sociais de renda mínima, sobretudo em um contexto de desigualdades e de subdesenvolvimento.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, o perfil desses trabalhadores em plataformas de transporte e de entrega aponta que trabalham sob jornadas extensas e extenuantes. Trata-se de um trabalho sem ou com pouca proteção previdenciária, sem apoio para equipamentos de segurança individual e sem seguros contra riscos em ocasiões de adoecimento. Além disso, são remunerados com baixos salários, mormente quando se realiza a dedução das despesas de aquisição e de manutenção de instrumentos de trabalho.
Nessa toada, concordando com Carelli e Oliveira (2021), pode-se afirmar que é falsa a narrativa de que são pessoas que trabalham em pouco tempo graças à plena liberdade. Em geral, não há prosperidade econômica, pois os mecanismos de controle, em especial, a precificação, estabelece quem é a parte que se apropria da maior parte dos frutos do trabalho.
No entanto, acredita-se que se pode ter esperança em reatar com o que Alain Supiot (2014) denominou “Espírito de Filadélfia”, na medida em que é possível submeter todos os Estados ao respeito de direitos e liberdades, universalmente conhecidos, e a lançar as bases normativas de um ideal de justiça comum a todos os povos do mundo (Supiot, 2014).
A Declaração de Filadélfia adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), na busca da reconstrução do mundo pós-guerra, estabelece um entendimento amplo sobre a enorme importância da dimensão social e do valor do trabalho e dos seus direitos, com base no princípio de que “o trabalho não é uma mercadoria”, na valorização desse como mecanismo de redistribuição e promoção da justiça social, assim como promove a ideia de regulação internacional do econômico e do social (Ferreira, 2012).
Os Estados, por sua vez, têm o dever de garantir a aplicação do princípio da solidariedade, que deve ser empregado para além das fronteiras nacionais. De acordo com Alain Supiot (2014), deveria passar da solidariedade negativa, que prevalece hoje em dia nas relações entre Estados, a uma solidariedade positiva, que se apoia em objetivos comuns de trabalho decente e de justiça no regime das trocas entre os países (Supiot, 2014).
Acredita-se que, pela via da centralidade do trabalho como emancipação humana, poderia ser possível resgatar o Espírito de Filadélfia, no sentido de proteger os recursos humanos, o Direito do Trabalho e a seguridade social, garantindo a segurança física e econômica dos trabalhadores e de suas famílias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker- fanoniana. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
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OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; ASSIS, Anne Karolline Barbosa de; COSTA, Joelane Borges. Uberização do trabalho: análise crítica das relações de trabalho prestadas por aplicativos. 2019. Relatório de Pesquisa (Pibic 2018-2019) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.
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