Por centenas de anos, a escravização de africanos negros constituiu um sistema econômico lucrativo para os europeus. A partir da abolição da escravidão nos EUA, por força da 13ª Emenda à Constituição dos EUA, foram forjadas novas formas de garantir a hierarquia racial e manter um sistema de produção com mão de obra sem custos. O documentário “A 13ª emenda” (título original: “13th”, documentário de 2016 produzido por Ava DuVernay, Howard Barish e Spencer Averick, distribuído pela Netflix), mostra como foram construídos estes novos mecanismos de subjugação da população negra nos EUA.
Conforme mostra o documentário, inicialmente foram criadas as leis “Jim Crow”, que institucionalizavam a segregação dos negros em locais públicos, sob pena de prisão a quem desobedecesse. A seguir, no governo do presidente Richard Nixon (que ocorreu de 1969 a 1974), instaurou-se a “guerra às drogas”, que transformou o problema social do vício em drogas, que até então havia sido tratado como questão de saúde, em uma questão de segurança, um problema de polícia. Essa mudança de enfoque trouxe impacto especial para a população negra, que em sua maioria habita bairros pobres, pois é nesses bairros que a polícia concentra suas ações, enquanto o consumo de drogas em bairros privilegiados não é incomodado pelas forças policiais. Nos anos seguintes, a situação agravou-se, sobretudo após o surgimento do crack. O crack nos EUA se tornou uma droga consumida majoritariamente pela população pobre e negra. Nesse contexto, foram criadas e aplicadas penas mais rígidas para a posse de quantidades muito menores de crack do que de cocaína, que possui o mesmo princípio ativo, mas que era consumida majoritariamente pela elite branca. Como consequência, o número de negros presos aumentou.
Subsequentemente, foram criadas várias outras leis que também ampliaram o encarceramento de negros, como, por exemplo, as "Three Strikes Laws", leis que impõem penas rígidas para criminosos condenados pela terceira vez, que têm por premissa a irrecuperabilidade de quem tem múltiplas condenações. As "Three Strikes Laws" foram muito criticadas por aplicarem penas desproporcionalmente altas de prisão a crimes que muitas vezes nem eram violentos.
O resultado dessa política de encarceramento é o aumento significativo da população carcerária: a taxa de encarceramento (número de pessoas sentenciadas à prisão por 100 mil habitantes) aumentou 270% entre 1975 e 2000 nos EUA. Por outro lado, o efeito dessa política na criminalidade é reduzido: pesquisas mostram que o aumento do encarceramento não implica em redução de crimes violentos (STEMEN, 2017).
Essas leis de ampliação do encarceramento foram aprovadas no esteio da 13ª emenda, que apresentou uma exceção em relação à proibição do trabalho forçado: os presidiários. Ou seja, a 13ª emenda proibiu o trabalho compulsório em todos os lugares dos EUA exceto na prisão. Assim, criou-se um sistema institucionalizado de encarceramento em massa de pobres e negros, de maneira que pudesse ser viabilizada a exploração da força de trabalho dessa população por empresas.
Para melhor compreensão do fenômeno, é importante a análise do encarceramento massificado em sua relação com a economia.
Em uma situação de elevada competição econômica, a sobrevivência empresarial requer constante aumento de rendimentos. Isso implica em uma tendência de redução de dispêndio com mão de obra, de modo a aumentar a lucratividade do negócio, que propicia atratividade de investimentos. Portanto, as empresas procuram operar com o mínimo necessário de empregados e com os menores salários possíveis, o que resulta em desemprego e diminuição de salários do trabalhador, aprofundando a desigualdade social. Segundo o Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022, produzido pelo economista Thomas Piketty 01, metade da população mundial vive com apenas 8% da renda e com somente 2% da riqueza gerada.
O neoliberalismo aguçou este quadro desde os anos 70 e 80, ao propor, como solução para as crises do capitalismo, redução de gastos governamentais. No caso dos EUA, a privatização das prisões e o uso do trabalho dos encarcerados por empresas são mecanismos aderentes tanto ao programa de diminuição de gastos governamentais, como também são formas de aumento de lucro para as empresas por meio da redução de dispêndio com mão de obra (MINHOTO, 2002).
Segundo a perspectiva de Max Weber, o Estado moderno se constrói a partir da racionalização das relações de poder, ou seja, da eliminação da subjetividade no exercício de governo. Impera o denominado domínio legal-racional, através da existência de leis impessoais e de uma burocracia entendida como o governo da razão (MALISKA, 2006). Esse aparato é um meio de organização social baseada na promoção da ordem, e movimentos de ruptura dessa estrutura são reprimidos, se necessário, com violência. De fato, o Estado detém o monopólio da violência dentro de seu território. Assim, pelo fato do Estado possuir esse aparato de controle social e a possibilidade de uso da violência sobre os seus cidadãos, as empresas, dentro do cenário de busca pela maneira de extrair o máximo de lucratividade, procuram ingerência desse domínio legal-racional burocrático.
O documentário “A 13ª emenda” mostra essa forma de atuação ao apresentar o grupo ALEC - American Legislative Exchange Council (Conselho Americano de Intercâmbio Legislativo, em tradução livre). Essa associação é, na verdade, um grupo de lobby, através do qual as corporações pressionam pela aprovação de leis que as favorecem. Um exemplo de lei promovida pela ALEC é a lei “Stand Your Ground”, pela qual é permitido ao cidadão americano utilizar força letal contra alguém que considere agressor, bastando que o cidadão alegue que sentiu que a sua vida ou que a sua propriedade está em perigo. A lei causou aumento de venda de armas, de tal forma que um dos maiores beneficiários dela foi o Walmart, que faz parte da ALEC e que é o maior vendedor de rifles nos EUA. A ALEC também potencializa o domínio legal-racional ao agir de forma direta no sistema prisional: devido ao processo de privatização das cadeias, as empresas associadas à ALEC se tornaram administradoras de penitenciárias (em especial a CCA - Corrections Corporation of America).
Portanto, o Estado moderno neoliberal utiliza a burocracia estatal para atender a necessidade de aumento de lucro das empresas às custas não somente do aumento da desigualdade mas também da manutenção da dominação hierárquica sobre parcela da coletividade. Empresas e associações como a ALEC aproveitam-se desta organização estatal burocrática sustentada por sólido aparato técnico-administrativo para executar controle social com aparência de legitimidade. Essa união entre empresas e Estado tem um caráter dissimulatório: o uso da burocracia cria a imagem de “despolitização” do poder, cultivando na sociedade uma maior facilidade de submissão (O´NEILL, 1986). Destarte, o aparato estatal, aliado a interesses econômicos, efetiva um controle total de seus cidadãos (físico e comportamental), no qual o bem estar da coletividade não é o principal objetivo e no qual os principais prejudicados são aqueles pertencentes às classes socialmente marginalizadas.
A maneira de resistir a essa pressão econômica e política desses agentes que não buscam a realização do interesse público é através da participação democrática dos cidadãos nas decisões políticas. Nos EUA, a política de encarceramento foi freada em muitos Estados a partir da década de 2000, havendo queda na população prisional do país mais recentemente: 19 Estados reduziram o encarceramento nos anos 2010, e experimentaram também redução de taxas de criminalidade. Um evento importante que ocorreu nesse período foi o movimento "Black Lives Matter", que, em resposta à truculência e violência das instituições estatais contra negros, levou à sociedade a se posicionar cobrando das autoridades mudanças na política criminal.
No Brasil, a Constituição estatui no seu primeiro artigo que a República Federativa tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Além disso, a Carta Maior estabelece no seu terceiro artigo que o Estado brasileiro tem por objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos. Por isso, as políticas de segurança pública não podem servir a interesses empresariais que colocam a busca pelo lucro acima das necessidades da coletividade.
A concepção de segurança pública e de aplicação de penas criminais de encarceramento que se coaduna com a Constituição é aquela que se harmoniza com o princípio democrático, com sólida base nos direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana (SOUZA NETO, 2010). Para que esse ideal seja efetivado, a sociedade deve se mobilizar para que o Estado de Direito prevaleça frente aos interesses particulares que não estão alinhados aos objetivos e fundamentos que a nossa Constituição apresenta. Somente assim a criação e implementação de leis e de políticas públicas estarão voltadas para o enfrentamento de problemas sociais e de acordo com a promoção da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS:
MALISKA, Marcos Augusto. Max Weber e o estado racional moderno. Revista Eletrônica do CEJUR. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. v. 1, n. 1, ago./dez. 2006
MINHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Lua Nova. 2002, n.55-56, pp.133-154.
O'NEILL, John. The Disciplinary Society: From Weber to Foucault. The British Journal of Sociology, Vol. 37, No. 1, Mar. 1986. , p . 42-60.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Constitucionalismo democrático e governo das razões: estudos de direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
STEMEN, Don. The Prison Paradox: More Incarceration Will Not Make Us Safer. New York: Vera Institute of Justice, 2017.
01 disponível em https://wir2022.wid.world/