RESUMO: Uma das principais características do serviço público consiste na estabilidade de seus servidores. Esta característica é, por muitos setores da sociedade, tida como um privilégio que não deveria existir. Neste trabalho buscaremos demonstrar que a estabilidade dos servidores públicos não pode ser confundida com privilégio sob nenhum prisma, pois que encerra em si uma condição estruturante das instituições que compõe a administração estatal e que a protege de abusos de poderes econômicos e, principalmente, políticos. Ainda analisaremos um experimento que nos mostra como a natureza humana poderia contribuir para corromper as instituições públicas com maior facilidade sem o instituto da estabilidade.
Palavras-chave: Abuso, Corrupção, Estabilidade, Experimento, Ilegalidade, Serviço Público.
INTRODUÇÃO
Não é de hoje que os servidores públicos em geral são encarados por muitos setores da sociedade como detentores de privilégios que não têm razão de existir. Um desses ditos privilégios é a estabilidade de que dispõe alguns servidores, ou seja, suas manutenções nos cargos públicos, dos quais só podem ser destituídos mediante processos administrativos legalmente estabelecidos que confiram o direito do contraditório e da ampla defesa.
Essa diferença entre os servidores púbicos que gozam de estabilidade prevista em lei e a maioria dos trabalhadores faz com que eles sejam encarados com uma espécie de casta de privilegiados, entretanto, essa impressão não poderia estar mais distante da verdade.
Neste trabalho buscaremos, antes de tudo, esclarecer a finalidade última da estabilidade de certos servidores públicos. Desta forma, não nos debruçaremos sobre amontoados de normas legais que regem os servidores desta ou daquela atividade típica do Estado, pois que o objetivo a ser buscado aqui será o de desvelar a face da estabilidade, não pelo prisma legal que, em que pese seja muito importante, em última análise, apenas deriva de sua essencialidade para conservar a retidão nas instituições de Estado.
Analisaremos ainda como um experimento realizado nos anos 1960 demonstra que a complexidade e certas nuances da psique humana contribui para que a estabilidade dos servidores públicos continue sendo necessária, constituindo-se num pilar ou sustentáculo das instituições de Estado contra abusos de todos os tipos que poderiam corroê-las de dentro para fora em patente desserviço à sociedade.
ARMADOS CONTRA ABUSOS
Servidores públicos lidam diariamente com conflitos de interesses. Como representantes do Estado, precisam aplicar o que as leis determinam de forma imparcial e equânime, sendo-lhes vedado moverem-se aos sabores de pendores pessoais ou de modo a favorecer terceiros. Atuando em órgãos fiscalizadores, reguladores, policiais e até mesmo no judiciário, não é de causar espanto que, volta e meia, esses profissionais ditos privilegiados recebam ordens ou propostas que soam, na melhor das hipóteses, pitorescas.
Diante de situações assim, o normal é que pensemos que um “não” bem dito baste para que o pleito dito irregular seja rechaçado e que o interessado simplesmente se renda ao conformismo da lei, afinal, todos devemos obediência a ela. Provavelmente um belo e categórico “não” resolve a questão na maioria dos casos, mas sempre haverá aquela pequena parcela de indivíduos ou grupos que se acham acima da lei. Aqueles que a enxergam como algo não a ser cumprido, mas sim a ser burlado a qualquer custo para que seus objetivos escusos sejam alcançados. Ocorre que como estamos falando de órgãos públicos, cujos executores das atividades e guardiões são seus servidores, o bem que se veria atingido negativamente pelo eventual acatamento de um pedido ou ordem ilegal seria a sociedade. Não estamos, portanto, falando de uma concessão ou, por assim dizer, de uma cortesia que o particular teria liberdade para conceder, a depender do caso, e cujo ônus seria por ele suportado, não impondo prejuízo nenhum ao erário. Logo, sendo dever do servidor prestigiar a sociedade e a lei, deve se opor com veemência a pedidos ou mesmo a ordens desse tipo. Mas surge a questão: como fazê-lo sem que seja prejudicado, perseguido ou mesmo ameaçado de algum modo pelos interessados? Imagine se um servidor de um órgão ambiental, por exemplo, pudesse simplesmente ser demitido do cargo por negar a concessão de uma licença de exploração notadamente irregular a uma pessoa economicamente influente, digamos, no meio político? Seria um completo caos na administração do Estado e um total desmando nos seus órgãos, não é? Eis no que consiste, portanto, o instituto da estabilidade. É ele que confere força ao posicionamento do servidor que pode e deve, sem vacilação ou receio de represálias, impor a lei em detrimento de interesses escusos que comprometem as instituições de Estado. Portanto, a estabilidade, em que pese seja um atrativo das carreiras do setor público, não guarda em sua essência o intuito de conceder privilégios pessoais aos servidores, mas sim de proteger o Estado e a sociedade de indivíduos ou grupos que buscam se locupletar por meio de favorecimentos pessoais ilícitos, senão vejamos:
O preceito da estabilidade do servidor público, segundo destacam alguns estudiosos, não pode ser interpretado como um privilégio que confere ao mesmo a vitaliciedade no cargo ou função desempenhada. A estabilidade deve ser analisada como um instrumento garantidor da excelência da prestação de serviços à sociedade, evitando que a administração pública possa ficar comprometida pelo uso político de suas atividades, refletindo interesses clientelistas e paroquiais, gerando a descontinuidade, arbitrariedade técnica, bem como perda da memória técnica da administração (MACHADO; UMBELINO, pág. 9, 2001).
Nesta esteira, convém desconstruir outro mito que permeia o imaginário brasileiro acerca do assunto aqui tratado: o de que a estabilidade de servidores públicos é um hábito colonialista e arcaico de países emergentes. Em parte essa impressão tem como combustível o capitalismo pronunciado em países como os Estados Unidos, no qual o empreendedorismo e a iniciativa privada são sistematicamente incentivados, inclusive culturalmente. De longe tendemos a pensar que a maior economia do mundo não seja afeita a estabilidade de servidores de órgãos públicos, mas essa tendência não condiz com a realidade. Seguindo recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além dos EUA, outros países desenvolvidos como Alemanha, Bélgica e Canadá adotam a estabilidade no serviço público como forma de prestigiar o bom desenvolvimento da administração pública.
OBEDIÊNCIA SIM, MAS SOMENTE À LEI
O filósofo e escritor francês Voltaire (1694 – 1778) admirada os ingleses por sua administração pública moderna e costumes avançados em relação aos de seu país natal. Admirava especialmente o arcabouço legal inglês, que libertava seus cidadãos de qualquer tipo de servidão que não fosse à lei:
Não podem todos os cidadãos ser igualmente poderosos, mas podem todos ser igualmente livres: foi o que o inglês conseguiu... Ser livre é não se sujeitar a coisa alguma, salvo ás leis (DURANT, pág. 247, 1942).
Pois bem, o tópico que abordaremos agora, bem como o que ele nos revela, deixaria Voltaire um tanto quanto decepcionado. Os ordenamentos jurídicos, em grande parte, são construídos como mecanismos que tencionam impor regras ou limitar impulsos da natureza humana. Entretanto, uma coisa é editar leis e escrever suas frias letras no papel; outra bem diferente é dar-lhes vida na prática, pois é aqui que age nossa biologia e nossos instintos, por assim dizer.
Quando falamos em obediência de regras, sejam elas positivadas ou meras convenções sociais, torna-se conveniente que analisemos como, em certa medida, a estabilidade dos servidores públicos, cerne deste trabalho, relaciona-se com nossa tendência natural de obedecer a figuras de autoridade ou com aparência de autoridade, ainda que contrarie a lei, a moralidade ou os costumes.
Para tanto, analisaremos como as doutrinas nazistas se entrelaçaram com a máquina pública do Estado alemão à partir de 1933 e removeu seu caráter técnico guiado por leis e normas, ao passo que as substituíram pelas ideologias. A profunda reforma na administração pública promovida pelo regime nazista impunha obediência absoluta às suas políticas de segregação racial, que mais tarde culminariam nos campos de extermínio. Para que houvesse motivação, por assim dizer, o regime substituiu, em instituições chaves, como forças policiais e órgãos de propaganda, antigos diretores e chefes, burocratas de carreira, por lideres que eram membros ou simpatizantes do Partido Nazista. Com essa manobra, a meritocracia e os critérios objetivos, que até então regiam as carreiras dos servidores e conferiam eficiência e lisura à máquina pública, deram lugar ao subjetivismo, de modo que somente permaneciam e ascendiam rapidamente em suas carreiras, aqueles que se mostrassem dispostos a aderir às novas políticas impostas pelo regime, ainda que fossem ditadas de maneira velada.
Atualmente temos a impressão de que a matança promovida pelos nazistas era de conhecimento geral na Alemanha, mas isso não é verdade. Apesar de parte das políticas terem sido implantadas às claras, como as Leis de Nuremberg, que estabeleciam critérios para a cidadania no Reich e para a proteção do sangue e da honra alemãs, as políticas de extermínio não eram de conhecimento público, e os lideres do regime se esforçaram para que permanecesse em segredo. Para isso, usavam de eufemismos, como, por exemplo, “tratamento especial”, para se referirem às execuções em massa daqueles que eram tidos como indesejados. Logo, os servidores público, militares ou civis, que se mostrassem dispostos a agirem à margem das leis positivadas e sujassem suas mãos às escondidas do público, rapidamente ganhavam a simpatia dos seus chefes e, com isso, ascendiam em suas carreiras:
O resultado era uma crescente arbitrariedade, à medida que o estilo altamente personalizado de governo de Hitler entrava num inevitável e irreconciliável conflito com a necessidade burocrática de normas reguladoras e procedimentos definidos de forma clara. A necessidade arraigada de sigilo, sua preferência por reuniões privadas com seus subordinados (que podia facilmente dominar) e seu forte favoritismo em relação a ministros e outros líderes, tanto do partido como do Estado, eram ingredientes acrescentados que ajudavam a solapar os padrões formais de governo e administração (KERSHAW, pág. 356, 2008).
Um dos casos mais emblemáticos de rápida ascensão e ganho de prestígio dentro do regime nazista foi o do Tenente Coronel Adolf Eichmann, a quem foi confiada a administração e a implementação da chamada “Solução Final”, que era outro eufemismo para o censo da população judaica, tanto na Alemanha quanto nos territórios ocupados, mas que tinha como finalidade seu transporte e execução nos campos de extermínio. Considerado criminoso de guerra, ao final do conflito conseguiu fugir da Europa libertada pelos aliados e com documentos falsos se estabeleceu na Argentina. Entretanto, passados quase vinte anos, foi localizado pelo Serviço de Inteligência de Israel – Mossad -, que obteve êxito em retirá-lo clandestinamente da América do Sul para levá-lo à julgamento, no qual foi condenado à morte por enforcamento, pena executada em 1962. Durante seu interrogatório, porém, algo chamou a atenção de seus captores: Eichmann não demonstrava arrependimento pelo que fizera, tendo ficado claro que, em sua própria visão, estava apenas obedecendo às ordens que havia recebido, de modo que em nada importava quais fossem, sua tarefa deveria ser a de cumpri-las com a máxima eficiência.
Enquanto as notícias sobre a captura e o julgamento de Eichmann ainda estampavam os jornais, nos EUA, um professor de psicologia da Universidade de Yale chamado Stanley Milgram, também de origem judaica, estranhou a frieza e a ausência de empatia do oficial nazista durante seu interrogatório. Sendo um acadêmico, as perguntas não saiam de sua mente, tendo então decidido conduzir um experimento visando entender até onde uma pessoa pode ir apenas por ter recebido ordens:
Milgram montou um laboratório na Universidade de Yale onde duas pessoas a cada vez, aparentemente voluntárias para pesquisa, seriam sorteadas para as posições de “professor” e “cobaia”. Na verdade, o sorteio era falso e apenas os indicados como “professores” eram voluntários. Quem desempenhava o papel de cobaia era um ator contratado. O teste consistia na repetição pelo professor de pares de palavras que a cobaia deveria memorizar. Para as respostas erradas, o professor deveria aplicar choques elétricos, acionando botões à sua frente. Os choques iam se tornando mais fortes de modo que, a partir de certa intensidade, a cobaia começava a gritar e a exigir que o experimento terminasse. Os choques eram fictícios, mas o ponto é que os voluntários imaginavam que fossem reais (ROLIM, 2017).
Os resultados do experimento foram publicados no trabalho intitulado como Obediência à Autoridade. Nele, Milgram concluiu que mais da metade dos participantes aplicaram choques na voltagem máxima, de modo que, caso estivessem sendo realmente aplicados, levariam à morte. O professor se impressionou também com a linguagem corporal da maioria dos voluntários que, a cada choque que aplicavam - ou que pensavam estar aplicando -, olhavam para um homem - outro ator - que permanecia no mesmo recinto trajando jaleco e que, propositalmente, se portava com autoridade diante dos voluntários. Milgram entendeu que esses olhares buscavam detectar alguma reação da figura de autoridade que lhes pudesse revelar sua aprovação ao choque aplicado. Em síntese, era como se os voluntários quisessem agradar, por assim dizer, a autoridade que assistia ao experimento, pouco importando se para isso fosse preciso infligir sofrimento ou mesmo levar à morte outra pessoa. Uma conclusão espantosa, mas bastante reveladora acerca da psique humana.
CONCLUSÃO
O esforço depreendido neste trabalho buscou unir coisas que, de relance, parecem não guardam qualquer relação umas com as outras. Pode, num primeiro momento, ter soado curioso e mesmo sem nexo falarmos sobre uma característica das carreiras do serviço público, no caso, a estabilidade, e relaciona-la com eventos históricos marcantes, como a implantação das políticas nazistas na Alemanha nos 1930 e, por fim, com um experimento de psicologia que buscava entender os limites morais do ser humano.
Apesar da aparência inicial de falta de nexo entre os assuntos aqui abordados, espera-se que tenha sido possível evidenciar com a máxima clareza possível a existência de vínculos entre todos eles no contexto das estruturas das instituições de Estado, podendo vir a ser, perigosamente, manejados para sua desconstrução e implantação de agendas políticas, por vezes, sombrias.
É preciso ter em mente que governo Estado e não se confundem, pois enquanto o primeiro é transitório, podendo ser renovado de tempos em tempos por meio de eleições, o segundo permanece inalterado, independentemente das sucessivas trocas de governos. Esta característica estruturante que sustenta e dá forma ao Estado só é possível graças aos muitos órgãos e instituições que o compõe, sendo solidamente dirigidas e atendidas por servidores de carreira que, com o passar dos anos, em virtude da estabilidade de seus cargos, aprendem como a máquina estatal funciona, dominam as leis que a rege e tornam-se capazes de mantê-la em funcionamento, mesmo em períodos turbulentos e de crises agudas.
Por derradeiro, espera-se que tenha sido possível evidenciar que o efeito mais importante da estabilidade dos servidores públicos se manifesta na força de frearem eventuais abusos e desmandos que podem se apresentar tanto como ordens diretas ou como sutis pedidos feitos veladamente. Releva frisar ainda que, mesmo numa democracia, pode emergir um líder carismático e autoritário, como o que emergiu na Alemanha em 1933, cuja consolidação do poder dependerá, em grande parte, da tomada ideológica da máquina pública, de modo que apenas poderá ser barrado por aqueles que a compõe, mas para isso precisarão estar munidos de instrumentos que lhes fortaleçam juridicamente, a fim de que não possam ser simplesmente substituídos por pessoas dispostas a agradar em troca de cargos e de prestígio.
REFERÊNCIAS
. DURANT, Will. História da Filosofia, Ed. Companhia Editora Nacional – São Paulo, Tradução de Godofredo Rangel e Monteiro Lobato. 1942;
. KERSHAW, Ian. HITLER. Tradução de Pedro Maia Soares, Editora Companhia das Letras, 2008, ISBN 978-85-359-1758-1;
. MACHADO, Érica Mássimo; UMBELINO, Lícia Maria. A questão da estabilidade do servidor público no Brasil: perspectivas de flexibilização. ENAP - Escola Nacional de Administração Pública, 2001. Disponível em:
https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/385/1/2texto.pdf. Acesso em: 26 mar. 2025;
. ROLIM, Marcos. O experimento de Milgram. Jornal Extra Classe, 2017. Disponível em:
https://www.extraclasse.org.br/opiniao/colunistas/2017/07/o-experimento-de-milgram/. Acesso em: 27 mar. 2025.
No privilege! Stability is the State's weapon against abuse of power
ABSTRACT: One of the main characteristics of the public service is the stability of its employees. This characteristic is, by many sectors of society, considered a privilege that should not exist. In this paper we will seek to demonstrate that the stability of public employees cannot be confused with a privilege under any perspective, since it contains within itself a structuring condition of the institutions that make up the state administration and that protects it from abuses of economic and, mainly, political powers. We will also analyze an experiment that shows us how human nature could contribute to corrupting public institutions more easily without the institution of stability.
Key words : Abuse, Corruption, Stability, Experiment, Illegality, Public Service.