Do inquérito à pronúncia no tribunal do júri – algumas dicas para os defensores

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31/03/2025 às 11:10
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Resumo: Instituição secular o Júri ainda seria justificável no mundo atual – necessária análise sobre fatores históricos que levaram à sua instituição e o mundo atual – algumas questões se levantam com análise de algumas dicas para o tribuno de defesa.


Aspectos Gerais do Procedimento nos Crimes de Alçada do Tribunal do Júri

Historicamente se tem apontado a Carta Foral conhecida como Magna Charta Libertatum, da Inglaterra de 1.215, como termo inicial, a pedra de toque ou fundamental, de inúmeros princípios processuais de índole constitucional, eis que, pela primeira vez, durante a Idade Média, o poder de um soberano, no caso, João Sem Terras, foi controlado como forma de se conter uma revolta de outros nobres (barões) em estado de insurreição (o que, segundo certa corrente constitucionalista seria um embrião dos fundamental right, embora outro segmento os já vislumbrasse na própria Grécia Antiga).1

Tal merece ser dito em virtude do fato de que a partir de tal dado histórico se tem reconhecido o direito de um homem a ser julgado por seus pares, o que é o fundamento da idéia de um Tribunal do Júri, enquanto órgão jurisdicional em que cidadãos do povo são convocados para que exerçam função temporária de juízes de direito.

Parte da doutrina, inclusive, estabelece essas origens, em tempos ainda mais remotos, como a centeni comites no direito germânico antigo, de influência romana, o que chegou aos dias atuais por intermédio de Henrique II da Inglaterra, por volta do ano 1.100.2 Outros vão ainda mais longe no tempo, no próprio Império Romano e na Grécia Antiga, com as previsões, respectivamente, dos judicis jurati e dos dikastas 3 .

No Brasil, o júri surge, pela primeira vez, pela Lei de 18 de junho de 1.822, destinando-se, originariamente, a processar e julgar os crimes de imprensa, sob a égide da denominação “juízo dos Jurados”, e, em 1.824, com o advento da primeira Constituição brasileira, passa a ganhar status constitucional.4 Tal condição de garantia constitucional persiste até os dias atuais, em que o Júri continua a ser visto como uma liberdade pública, ou seja, um direito fundamental do indivíduo, por força do disposto na norma contida no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d” CF.

E, nesta condição, por força do previsto no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV CF, tal garantia se constitui em verdadeira cláusula pétrea que sequer admite possibilidade de emenda constitucional que lhe venha suprimir. Com relação ao tema, de se destacar que o texto constitucional pátrio alude à competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, mas, como adverte parte da doutrina, tal competência constitucional não impede que tal órgão jurisdicional venha a julgar outros tipos de delitos conexos com esses crimes dolosos contra a vida, nas hipóteses do artigo 78, inciso I CPP, nem tampouco impede que a lei amplie as hipóteses de outros delitos que possam vir a serem julgados pelo mesmo órgão, apenas e tão somente impede que crimes dolosos contra a vida não sejam julgados por ele.5

Do mesmo modo, outros delitos que envolvam a morte da vítima, como o sequestro seguido de morte e o latrocínio, por serem definidos como crimes patrimoniais (o bem jurídico visado pelo agente seria o patrimônio e não a vida da vítima, propriamente dita), não serão julgados pelo Tribunal do Júri.6

Outro dado introdutório interessante, sobretudo quando se analisa o procedimento do Tribunal do Júri, é a constatação de que não só crimes dolosos contra a vida apenados com reclusão, como o homicídio, podem ser processados por este rito, como também alguns apenados com detenção, como é o caso específico do infanticídio e do autoaborto, mas, seja num caso (apenamento com reclusão), seja no outro (apenamento com detenção), o procedimento a ser empregado (bifásico como se exporá) será o mesmo.

Tanto assim que doutrinadores tem apontado para o fato de que o procedimento do júri, enquanto juiz natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, pode ser considerado escalonado7, ou seja, composto de duas fases, a primeira se encerrando com a decisão de pronúncia.

No entanto, a pergunta que não se faz é: Por que ainda se manter o Tribunal do Júri, enquanto foco de grande número de formalidades processuais, com procedimento longo e moroso, se, em verdade, delitos com penas muito maiores, em que também se vulnera o direito a vida (latrocínio como pontuado acima), são julgados em uma fase procedimental (ainda que ordinária) por juízes de varas comuns?

Tem-se aí, o quanto apontado pelo prestigiado professor de sociologia jurídica José Eduardo Faria (que foi meu professor) há que se fazer referência à função onírica do direito – a sociedade precisa de colunas romanas, togas e salões de julgamento que permeiam um certo preciosismo do direito romano (e é idealizada por Hollywood, por exemplo) em casos rumorosos como os que envolvem a perda de uma vida humana.

O razonable man (paradigma do homem médio – o bônus pater famílias romano) do direito da Common Law, para que se alcance uma certa catarse social e com isso se prestigiar a ideia de que o crime não compensa precisa ver as instituições funcionando – o crime de homicídio tem grande relevância religiosa (“não matarás”) o justifica a solenidade para a sua apuração – ao se ver o rosto do réu transfigurado na mesa (recentemente se tem determinado que o mesmo seja apresentado sem algemas8 e com os trajes que escolher9 – em conjunto com a defesa para escrutínio dos senhores jurados – por razões óbvias, melhor que se apresente com terno do que em uniforme da unidade prisional), como forma de uma certa expiação pública de constitucionalidade duvidosa para que se alcance uma certa prevenção geral na prática de um delito.

A defesa constatando que o acusado está algemado, sem prévia ordem escrita e fundamentada – e se de lançar dúvidas sobre decretações de tais medidas de ofício, sem pedido justificado da acusação e sendo o réu exposto em uniformes que lhe retirem a própria dignidade perante os seus pares leigos que irão julga-lo deve haver pronta manifestação da defesa.


Procedimento

Seguindo, portanto, o objetivo do trabalho proposto, dessas duas fases (fase sumária, onde o rito a ser empregado é próximo ao do rito ordinário e a fase plenária, perante o órgão colegiado), apenas e tão somente será analisada a primeira.

Não se pode perder de vista que a noção de procedimento tem a ver com a noção de fase judicial, na medida em que, como sabido, o processo é um instrumento do direito de ação, sendo certo que tal instrumento forma, na sua essência, uma relação jurídica entre o Juiz e as partes, sendo o procedimento um conjunto de atos coordenados pelos quais se desenvolve o processo.10

Mas, em processo penal, não se pode perder de vista o fato de que as ações penais somente serão iniciadas se houver justa causa para a sua propositura, o que faz supor, na generalidade dos casos, a existência de dados sobre a provável demonstração da materialidade e da autoria delitivas, o que é geralmente obtido em fase extrajudicial, ou seja, na fase da apuração policial do delito. Costuma-se, em doutrina, inclusive asseverar, em sede de processo penal, que “antes de ser iniciada a fase judicial da persecução criminal, não há instrução e, sim, investigação”11, tanto que ainda não existe relação processual.

E a atividade policial se iniciará pela notitia criminis chegada à Autoridade Policial e seus agentes, sendo que a primeira poderá formalizar a instauração do inquérito pela portaria ou por requisição do Ministério Público ou do Juiz de Direito, ou, ainda, mediante requerimento da vítima (artigo 5º e seus parágrafos e incisos CPP), podendo ocorrer, ainda, de início da atividade policial pelo auto de prisão em flagrante (artigos 8º e 301 e seguintes CPP).

Dada a gravidade dos crimes dolosos contra a vida, com penas mínimas e máximas em patamares mais exasperados, muito provavelmente não se iniciará uma ação penal desta natureza, tendo como peça informativa um termo circunstanciado de ocorrência (nos termos da Lei nº 9.099/95), verificado nos chamados crimes de menor potencial ofensivo. Da mesma forma, por envolver ameaça não se cuidaria de situações que possam admitir plea bargaing em ANPP.

Assim, muito embora, tecnicamente, a fase de inquérito policial não possa ser considerada como integrante do procedimento, que, como dito acima, tem matiz jurisdicional, tais constatações se fizeram necessárias posto que a persecução penal somente poderá ser iniciada, com o recebimento regular de uma denúncia, se o inquérito policial for elaborado com as cautelas legais e se apontar para indícios suficientes da materialidade e da autoria do delito, não ocorrendo, pelo óbvio, as situações descritas no artigo 43 e seus incisos CPP.

Mas já se poderia questionar, em casos de demora, o porquê haveria muitos pedidos de prazo para diligências, sobretudo quando entre um e outro não se praticar o ato colimado – a Lei de Abuso de Autoridade veda o prolongamento indeterminado de procedimentos investigatórios – e seria muito interessante levantar eventualmente se ocorre apenas demora injustificada por falta de interesse no processo ou se haveria fatores externos para a demora – por exemplo, a autoridade policial quer ouvir alguém em Roraima e expede a carta precatória policial para lá – a pessoa não se localiza – e se fica insistindo nisso por meses e meses sem apontamentos de diligências na sede deprecada e sem cobranças.

Ou se busca intencionalmente a prescrição – o que põe em xeque o trabalho policial, ou há interesse na localização a todo custo de uma pessoa (por quê? Qual sentimento estaria por trás disso? ou há simples negligência pura e simples?) em qualquer dessas hipóteses já seria de se buscar aferir ou questionar tais causas – e, em sendo o caso, apontando isso aos senhores jurados. A priori o Estado tem o dever de eficiência e pedidos de prazo devem ser motivados e justificados – excessos não motivados de prazo levam a questionamentos deferidos em favor da defesa12.

Sabido que quando determinado indiciado estiver respondendo solto ao inquérito, o prazo de sua remessa à Justiça é de trinta dias. Se o fato for de difícil elucidação, a autoridade policial poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz (parágrafo 3º do artigo 10 CPP).

Ao receber o requerimento de dilação de prazo, a lei não prevê que o juiz deva dar vista ao Ministério Público, mas essa providência faz todo o sentido porque o promotor pode entender que já existem elementos suficientes para a propositura da ação penal. Apenas se não houver denúncia, o prazo deverá ser marcado pelo juiz em consideração às diligências pendentes e à complexidade do caso. Quando a demora é injustificável a luz da ideia de razoabilidade de proporcionalidade, os inquéritos têm sido trancados e se tem liberado valores e bens apreendidos. Nesse sentido:

STJ - HABEAS CORPUS: HC 653299 SC 2021/0081833-3 Acórdão publicado em 25/08/2022 Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES PREVISTOS NOS ARTS. 168. E 171 DO CÓDIGO PENAL E NOS ARTS. 102, 106 E 107 DO ESTATUTO DO IDOSO. SUPOSTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E ALEGADA ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. QUESTÕES JÁ APRECIADAS NOS AUTOS DO HC N. 499.256/SC. OCORRÊNCIA DE FISHING EXPEDITION. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. EXCESSO DE PRAZO PARA A CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIGADO SOLTO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. TRANCAMENTO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A suposta ausência de justa causa e a alegada ilegitimidade do Ministério Público já foram apreciadas por esta Corte Superior nos autos do HC n. 499.256/SC , o que impede o conhecimento do writ no ponto. 2. A alegada ocorrência de fishing expedition não foi analisada pelo Tribunal local, o que impede a manifestação desta Corte Superior, sob pena de indevida supressão de instância. 3. O prazo para a conclusão do inquérito policial, em caso de investigado solto: é impróprio; assim, pode ser prorrogado a depender da complexidade das investigações. De todo modo: consoante precedentes desta Corte Superior, é possível que se realize, por meio de habeas corpus, o controle acerca da razoabilidade da duração da investigação, sendo cabível, até mesmo, o trancamento do inquérito policial, caso demonstrada a excessiva demora para a sua conclusão. 4. A propósito, "ainda que não decretada a prisão preventiva ou outra medida cautelar diversa, o prolongamento do inquérito policial por prazo indefinido revela inegável constrangimento ilegal ao indivíduo, mormente pela estigmatização decorrente da condição de suspeito de prática delitiva" (RHC 135.299/CE, Relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 25/3/2021). 5. Constata-se, no caso, o alegado constrangimento ilegal decorrente do excesso de prazo para a conclusão do inquérito policial na origem, instaurado em 2013, ou seja, há mais de 9 (nove) anos. As nuances do caso concreto não indicam que a investigação é demasiadamente complexa; apura-se o alegado desvio de valores supostamente recebidos pelo Paciente, na qualidade de advogado da vítima (pessoa idosa, analfabeta e economicamente hipossuficiente); há apenas um investigado; foi ouvida somente uma testemunha e determinada a quebra do sigilo bancário de duas pessoas, diligências já cumpridas. Outrossim, a investigação ficou paralisada por cerca de 4 (quatro anos e a autoridade policial, posteriormente, apresentou relatório que concluiu pela inexistência de prova da materialidade e de indícios suficientes de autoria. No entanto, a pedido do Ministério Público, a investigação prosseguiu. 6. Mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo) - cláusula pétrea instituída expressamente na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 45. /2004 -, um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa. 7. Colocada a situação em análise, verifica-se que há direitos a serem ponderados. De um lado, o direito de punir do Estado, que vem sendo exercido pela persecução criminal que não se finda. E, do outro, do paciente em se ver investigado em prazo razoável, considerando-se as consequências de se figurar no polo passivo da investigação criminal e os efeitos da estigmatização do processo. 8. Ordem concedida para trancar o Inquérito Policial objeto da presente impetração, sem prejuízo da abertura de nova investigação, caso surjam provas substancialmente novas.

STJ - RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS: RHC 135299 CE 2020/0254852-3 Acórdão publicado em 25/03/2021 Ementa: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. GESTÃO FRAUDULENTA OU TEMERÁRIA. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. ATIPICIDADE NÃO CONFIGURADA. EXCESSO DE PRAZO. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. 1. Em princípio, o trancamento do inquérito policial, assim como da ação penal, é medida excepcional, só sendo admitida quando dos autos emergirem, de plano, e sem a necessidade de exame aprofundado e exauriente das provas, a atipicidade da conduta, a existência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e provas sobre a materialidade do delito. 2. Não merece acolhimento a tese defensiva de que a conduta criminosa supostamente praticada pelo recorrente seria atípica, ao argumento de que o delito em questão seria de mão própria, uma vez que, nos termos do art. 30. do Código Penal, é possível a participação de pessoa despida de condição especial na prática do delito de gestão fraudulenta. Precedente. 3. É aplicável o postulado da duração razoável do processo, previsto no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal , no âmbito dos inquéritos policiais. É que, "conquanto a Constituição Federal consagre a garantia da duração razoável do processo, o excesso de prazo na conclusão do inquérito policial [...] poderá ser reconhecido caso venha a ser demonstrado que as investigações se prolongam de forma desarrazoada, sem que a complexidade dos fatos sob apuração justifiquem tal morosidade" ( HC n. 444.293/DF , relator Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 3/12/2019, DJe 13/12/2019). 4. No caso, não obstante a complexidade das investigações relatada pelo Juízo de primeiro grau, vislumbra-se o alegado constrangimento ilegal decorrente do excesso de prazo para a conclusão do inquérito policial na origem, instaurado em 2015 para apurar o crime de gestão fraudulenta/temerária supostamente cometido pelo ora recorrente. 5. Ademais, inexiste lastro probatório que autorize o prosseguimento da investigação, haja vista que, malgrado passados aproximadamente 6 anos do início da investigação, não foi encontrado algum indício ou prova que caracterize a justa causa para a continuidade do inquérito em desfavor do recorrente. Ressalte-se que, na hipótese, a substituição de garantia que ensejou a investigação pela prática de crime de gestão temerária/fraudulenta indicaria possivelmente a diminuição do risco da operação, e não o contrário. Nesse sentido, caso de fato houvesse uma fundada dúvida em relação ao incremento de risco para a caracterização do referido delito, tal análise seria relativamente simples, notadamente por meio de exame pericial pelo qual fosse efetivamente demonstrado o incremento de risco, o que não justifica o prolongamento da investigação pelo longo período de 6 anos. 6. Embora tenha explicitado a Corte de origem que "uma tramitação delongada de tal procedimento ensejaria um pedido de relaxamento de prisão", mas que o recorrente nem sequer está custodiado, deve-se asseverar que, ainda que não decretada a prisão preventiva ou outra medida cautelar diversa, o prolongamento do inquérito policial por prazo indefinido revela inegável constrangimento ilegal ao indivíduo, mormente pela estigmatização decorrente da condição de suspeito de prática delitiva. 7. Recurso ordinário provido para determinar o trancamento do inquérito policial na origem contra o recorrente.

TRF-4 - HABEAS CORPUS: HC 50535633420214040000 5053563-34.2021.4.04.0000 Acórdão publicado em 09/02/2022 Ementa: HABEAS CORPUS. EXCESSO DE PRAZO PARA CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O reconhecimento do excesso de prazo somente é admissível quando a demora for injustificada, impondo-se a adoção de critério de razoabilidade no exame da sua eventual ocorrência. 2. Os prazos para conclusão de inquérito policial ou instrução criminal não são peremptórios, podendo ser dilatados dentro de limites razoáveis, quando a complexidade da investigação assim exigir. 3. Havendo demora injustificada na conclusão do inquérito policial e no oferecimento de denúncia em caso sem complexidade, a configurar constrangimento ilegal por excesso de prazo, deve a ordem ser concedida. 4. Ordem de habeas corpus concedida

Com toda a licença do mundo, todos tem direito de serem julgados dentro de um tempo razoável – e o Estado lato sensu, tem o dever de ser eficiente – a Ministra Nancy Andrighi tem pontuado que um processo que demore muito para ser solucionado acaba por violar direitos humanos fundamentais, eis que existe evidente apreensão em torno da ideia de um processo – e aqui se chama a atenção de que, um processo penal, pela intensidade da possibilidade de apenamento em uma situação de se remeter alguém para uma instituição total é algo por demais grave.

A questão carcerária no país é insólita ao ponto do STF, acolhendo a ideia esboçada na Corte Suprema Colombiana, trouxe para o Brasil (inicialmente por voto do Ministro Marco Aurélio) a ideia de um ECI – um verdadeiro estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, com violações generalizadas, dos mais variados níveis acerca de violação de preceitos fundamentais.

O Estado deve pontuar logo, se tem indícios e diligências viáveis para imputar autoria de um ilícito a alguém (indiciamento) – já que o mesmo STJ em magistral voto do Ministro Ricardo Levandowski, fez alusão à vedação de que um indivíduo tenha sobre si, por muito tempo uma Espada de Damôcles pela demora de solução judicial – em perfeita analogia (discussão, insista-se, em torno de solidariedade constitucional que veda expedientes que tendam a gerar guetos de exclusão e marginalização social – artigos 1º, III e 3º e seus consectários CF).

Um indivíduo suspeito já tem sobre si a desconfiança geral e o Estado não têm poder ou direito para prosseguir com esta estado de suspeita, sem provas e dados confiáveis, por longo tempo – dificultando que ocorra uma superação do evento pelo esquecimento. Já se pontuou acima que o estado lato sensu não tem poder – já que a persecução seja exceção admitida apenas quando a lei o autorizar – sendo vedado prolongar para continuar investigando indefinidamente – o que pode gerar abuso de autoridade. A jurisprudência é pródiga, por exemplo, em permitir liberação de bens e valores em caso de demora indevida de patrimônio, o que vale para investigações. Tome-se por exemplo:

TRF-3 - MANDADO DE SEGURANÇA CRIMINAL: MSCrim 50085717820224030000 SP Acórdão publicado em 19/12/2022 Ementa: E M E N T A MANDADO DE SEGURANÇA. EXCESSO DE PRAZO PARA A CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. AFASTAMENTO DAS MEDIDAS CAUTELARES PATRIMONIAIS. POSSIBILIDADE. LIBERAÇÃO E DESBLOQUEIO DE BENS CONSTRITOS. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Em que pese alguma hesitação da jurisprudência quanto ao cabimento do mandado de segurança contra medida que, em feito de natureza penal, decreta a constrição de bens, o remédio constitucional é cabível. 2. A chamada operação Vagatomia foi deflagrada para apurar a "venda de vagas" no curso de Medicina no âmbito da Universidade Brasil. Um dos elementos indiciários de provas, que subsidia as apurações, foi a colaboração acordada por uma das investigadas, que prestou declarações ao ilustre Delegado da Polícia Federal em 12/09/2019. Em 07/10/2019, foram oferecidas quatro denúncias, contudo em nenhuma delas os pacientes foram denunciados. 3. Em que pese os elementos quanto à atuação dos pacientes no esquema criminoso, não houve, até o presente momento, o oferecimento de denúncia em seu desfavor, como se infere das informações prestadas pela autoridade impetrada. 4. Passado cerca de mais de 3 (três anos do início das investigações, não há acusação formalizada, não se afigurando razoável manter por tempo indeterminado o andamento das investigações. Houve retardo injustificado na tramitação do inquérito policial, o que conduziu ao seu trancamento no bojo de Habeas Corpus impetrado em favor dos impetrantes. 5. Em consequência ao trancamento das investigações é cabível o afastamento das medidas constritivas patrimoniais e a liberação dos bens a eles pertencentes, e porventura ainda constritos. 6. Segurança concedida.13

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Há que se observar, inclusive, que pedidos de prazo sucessivos – como vem ocorrendo, somente se justificam se houver causa concreta para que se realizem – não são admitidos pedidos de prazo sucessivos, sem realização de diligências entre eles14.

Por vezes os criminalistas se esquecem de que lidam cm agentes públicos (policiais, promotores, magistrados que, no geral, salvo exceções, atuam muito bem no exercício de suas funções), mas como nenhuma pessoa é perfeita, não se pode esquecer de que tais agentes se sujeitam ao cumprimento de deveres administrativos, devem atuar dentro de um estado de legalidade, sempre atuando a luz da razoabilidade e da proporcionalidade – igualmente valores constitucionais – e qualquer ato incompatível com tais condutas pode ocasionar situações que implicam em ilegalidades que tornam provas e atos processuais nulos, ilícitos e ilegítimos.

Mesmo em sede doutrinária se aponta no sentido de que medidas nestas condições havidas em face do acusado padece de legalidade devendo ser prontamente revogada:

"Da mesma forma que se admite o reconhecimento fotográfico, também tem sido usado como prova inominada o reconhecimento fonográfico, conhecido como clichê fônico. Supondo-se um crime praticado por criminosos encapuzados, ou usando capacetes, é possível que a vítima faça o reconhecimento do acusado através de sua voz. Mais uma vez, deve ser usado o procedimento probatório previsto para o reconhecimento de pessoas. Seu valor probatório é relativo, sendo inviável que um decreto condenatório esteja lastreado única e exclusivamente em um reconhecimento fonográfico. Importante esclarecer que esse reconhecimento fonográfico não se confunde com o exame pericial de verificação de locutor (ou de autenticidade de voz), tido como exame pericial feito por perito oficial (ou por dois peritos não oficiais) para verificar se a voz gravada em interceptações telefônicas judicialmente autorizadas provém (ou não) do aparelho fonador de determinada pessoa. Tanto o reconhecimento fonográfico quanto o exame de verificação de locutor demandam um comportamento ativo do acusado, na medida em que este deve pronunciar algumas palavras ou frases para que testemunhas, ofendidos e peritos possam analisar sua voz. Logo, queremos crer que o acusado não está obrigado a fornecer material fonográfico, sob pena de violação ao princípio da não autoincriminação." (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed. Niterói: Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2012. v.1. p. 1002).

Assim, se exorta a uma reflexão sobre a função dos magistrados que se debruçam sobre a justiça criminal, sobretudo tendo-se presente que a missão transcendental do Juiz criminal não é a de encarcerar, prender ou tripudiar os jurisdicionados, ou de condenar os justiçáveis, simplesmente pelo prazer de prender ou para dar vazão aos seus modismos e às suas idiossincrasias, mas sim a de resguardar os direitos fundamentais do cidadão acusado da prática de um delito, frente ao poder do Estado, segundo o que se filtra, “verbi gratia”, da seguinte ensinança da jurisprudência:

“A missão mais importante do Juiz criminal é resguardar os direitos fundamentais do cidadão frente ao Poder do Estado. Ao Juiz criminal cabe a função de resguardar e proteger os direitos individuais do homem diante do poder punitivo do Estado.” (HC nº 362.090/6, de São Paulo, 4ª Câmara, TACrim/SP, rel. o Juiz Marco Nahum, in Boletim AASP nº 2172, página 1510-j).

Aliás, sobre a atuação do Juiz Criminal numa sociedade democrática, vale citar a lapidar lição de ALBERTO SILVA FRANCO, in “Crimes Hediondos”, Editora Revista dos Tribunais, 1993, página 45, que preconiza com toda propriedade:

“No Estado de Direito, Juiz Criminal não é policial de trânsito; não é vigia de esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do Estado leviatânico. Não tem o encargo de bloquear a maré montante da violência ou de refrear a criminalidade agressiva e ousada. (...). A missão do Juiz Criminal é bem outra: é exercer a função criativa nas balizas da norma incriminadora, é infundir, em relação a determinadas normas punitivas, o sopro do social; é zelar para que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial dos direitos do cidadão; é garantir a ampla e efetiva defesa do contraditório e a isonomia de oportunidades, favorecendo o concreto exercício da função de defesa”.

E não se pode deixar de atentar para o fato de que a Administração Pública não pode deixar de atuar sem base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A propósito, a professora Lúcia Valle Figueiredo conclui, em seu “Curso de Direito Administrativo”, pág. 47:

“Em síntese: a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre as situações postas e as decisões administrativas. Vai se atrelar às necessidades da coletividade, à legitimidade, à economicidade”.

Por seu turno, o princípio da proporcionalidade obriga a permanente adequação entre os meios e os fins, banindo-se medidas abusivas ou de qualquer modo com intensidade superior ao estritamente necessário. O publicista Juarez Freitas assim registra, inO controle dos atos administrativo e os princípios fundamentais”, 2ª. ed., São Paulo, Editora Malheiros, 1999, p. 57): “O administrador público, dito de outra maneira, está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos”

Bem lembrado, por Márcio Elias Fernando Rosa, em seu “Direito Administrativo”, Editora Saraiva, quando leciona: “Assim como o princípio da razoabilidade, o da proporcionalidade interessa em muito nas hipóteses de atuação administrativa interventora na propriedade, no exercício do poder de polícia e na imposição de sanções”.

A Constituição Federal, ao consagrar no seu texto os direitos e garantias fundamentais, insculpiu o princípio básico do processo civil sobre o qual todos os outros se sustentam, qual seja, o princípio do devido processo legal. Assim, o artigo 5º, inciso LIV, CF, prescreve que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Sobre a garantia, se tem o quanto apontado por Nelson Nery Júnior:

Bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa.15

No mesmo sentido, se tem as ponderações de José Rogério Cruz e Tucci16, de quem tenho a honra de ter sido aluno, e de haver participado de palestras e seminários com ele – no sentido de que o devido processo legal esteja ligado à ideia de que se tenha desenvolvido o processo, de acordo com a lei e que tais leis pelos quais se desenvolva, devam ser justas (se uma lei que estabeleça determinado ato processual é inconstitucional, anacrônica, desproporcional ou não razoável, mesmo que cumprida não pode ser considerada como elemento caracterizador de um devido processo legal).

Desta feita, considerada a complexidade do due process of law, tal postulado pode ser analisado por diferentes prismas. Em sentido mais amplo e genérico, o princípio do devido processo legal tutela os bens da vida atinentes à vida, liberdade e propriedade. Quando caracterizado de forma bipartida, seu aspecto material ou substancial (substantive due process) indica a atuação no que concerne ao direito material, manifestando-se em todos os campos do direito.

Desse modo, por exemplo, no âmbito do direito administrativo, o devido processo legal manifesta-se sobre o postulado da legalidade, o qual representa a garantia dos cidadãos em face do abuso de poder governamental. Em seu sentido processual (procedural due process), o referido preceito tutela direitos por meio do processo judicial ou administrativo, resguardando o acesso à justiça, as garantias processuais constitucionais, bem como a efetividade da tutela jurisdicional.

Ademais, em complemento à ideia de legalidade se pede vênia para voltar à boa doutrina, como o Curso de Direito Administrativo, p. 100, 25ª Ed., 2008, Ed. Malheiros, de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão somente obedecê-las e cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos, cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no direito brasileiro.”

E ainda, (Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 26. ed., p. 949):

“Violar um princípio é mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”

Assim é que o devido processo legal, como preceito básico, é “o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies”.17 É certo que, o due process of law deve ser interpretado de forma ampla, abarcando não somente as garantias processuais da isonomia, da ampla defesa, do juiz natural e do contraditório, mas também a celeridade e efetividade da tutela jurisdicional.

Assim, deve ser propagada a lição de Nelson Nery Júnior, atinente à evolução do conceito do devido processo no tempo, a qual ensina que a doutrina e a jurisprudência ampliaram o âmbito de abrangência desse princípio, conferindo-lhe uma interpretação elástica, em prol dos direitos fundamentais do cidadão.18

Logo, o princípio do devido processo legal não pode ser concebido apenas como garantia da observância do procedimento estatuído na lei, mas sim como corolário da efetividade da tutela jurisdicional, concedendo proteção eficaz aos jurisdicionados.

Isso, ademais, se faz para evitar situações abusivas – em que se tem que não se tenham elementos que evidenciem uma autoria, mas em que se tenha mera percepção pessoal ou algum outro interesse escuso para prejudicar o acusado (razões políticas, financeiras, inimizades etc) – por isso que a jurisprudência em alusão a eventos como temporada de caça (ao réu nesse caso) ou expedição de pesca (fishing excursion, document hunting, hunting expedition ou fishing expedition19 como ficaram estabelecidas tais situações no âmbito da Common Law) em que se sai à cata de medidas mirabolantes e excessivas para tentar lincar fatos e elementos sem qualquer fiapo para investigar – prática mais do que abolida e reconhecida como ilegal pela jurisprudência.

Por mais que a sociedade tenha uma impressão, ademais, de que esse garantismo leve a uma impunidade – o que é uma ideia que não se revela verdadeira na prática – isso previne que qualquer pessoa prejudique indevidamente outra sem base legal sólida – há que se conter certos mitos.

Os bens jurídicos tutelados são a legalidade, eficiência e celeridade da Administração Pública e da Administração da Justiça. Também a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o Princípio da Razoabilidade dos Prazos, hoje previsto expressamente na Constituição Federal (artigo 5º., LXXVIII). Não deixa de ser tutelada a honra do cidadão investigado certamente atingida durante o calvário das apurações que se alongam.

A lei descreve a conduta como estender a investigação, procrastinando-a, ou seja, demorar na prática dos atos investigatórios de forma desnecessária, atrasando voluntariamente seu andamento. A finalidade dessa conduta deve ser abrangida pelo dolo específico comum a todos os crimes de abuso de autoridade, conforme consta do artigo 1º, § 1º, da Lei nº 13.869/19, assim como ter o fito de prejudicar o investigado ou fiscalizado.

E, com relação ao procedimento jurisdicional, ou seja, encerrada a fase extrajudicial (a persecução pelo inquérito policial), o rito a ser empregado, seja o crime doloso contra a vida apenado com reclusão ou com detenção (como dito acima), é o procedimento previsto nos artigos 394 a 497 CPP, o qual, como igualmente dito acima, se divide em duas fases (juízo escalonado), sendo a primeira conhecida como fase da formação da culpa, sumário da culpa20 ou instrução preliminar21.

Alguns autores referem-se ao judicium accusationis (sumário da culpa) e ao judicium causae (julgamento pelo Tribunal do Júri ou fase plenária).22 Outro dado interessante é o de que, nos crimes dolosos contra a vida, a ação penal é eminentemente de iniciativa pública incondicionada, sendo de atribuição exclusiva do Ministério Público, nos termos do artigo 129 e seus parágrafos CF.

A exceção doutrinária apontada para justificar o início da ação penal por queixa-crime, nos crimes dolosos contra a vida, consiste na situação da ação penal privada subsidiária do ofendido, nos estritos termos do artigo 29 CPP.23

Neste caso peculiar, tem-se entendido que ocorrerá um litisconsórcio ativo, entre o querelante e o Ministério Público, de índole facultativa para o primeiro e obrigatória para o segundo24, com a especificidade, apontada pela doutrina, de que não se formam duas ações em conexão contra o mesmo réu, e que o querelante poderá abandonar o feito a qualquer tempo, não sendo o mesmo permitido ao órgão ministerial, dizendo-se que o Ministério Público seria um assistente obrigatório, nestas situações, cabendo-lhe assumir, conforme as circunstâncias, a função de parte principal.25

Mas, considerando-se que tenha sido encerrado o inquérito policial (em se cuidando de réu preso em flagrante ou por prisão preventiva o prazo de encerramento será de 10 dias, e, estando solto, será de 30 dias, nos termos do artigo 10, caput CPP), não sendo o caso de arquivamento ( com as cautelas do artigo 28 CPP) ou pedido de diligências, será oferecida a denúncia pelo Ministério Público enquanto titular da ação penal (ou quando possível a queixa, tal como mencionado), o Juiz verificará a possibilidade de seu recebimento sob pena de interposição de recurso em sentido estrito – artigo 581 e seus consectários CPP.

Para a análise da questão do recebimento, o Juiz estará atento aos requisitos descritos no artigo 41 CPP, ou seja, atentará para a verificação de que a peça contém a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado (ou, se necessário for, os esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo), a classificação do crime e o rol de testemunhas.

E como se cuida de um ato judicial, com conteúdo decisório, tal deve ser expressamente fundamentada, como, aliás, estabelece a norma contida no artigo 93, inciso IX CF. A questão, no entanto, não é uniforme em sede doutrinária e jurisprudencial, sendo conveniente que se destaque a opinião de Fernado Capez a respeito do tema:

“É certo que o Juiz deverá limitar-se a analisar a existência de ou não de indícios suficientes do fato e sua autoria, sem incursionar pelo mérito, informado pelo princípio in dúbio pro societate, mas não nos parece consentâneo com a nova ordem constitucional (art. 93, IX) dispensar toda e qualquer motivação. A jurisprudência, no entanto, ressalvados os crimes falimentares, onde há exigência expressa (Dec.-Lei n. 7.661/45, art. 109, par. 2°), tem entendido que a decisão que recebe a denúncia ou queixa não tem carga decisória e, portanto, não precisa ser fundamentada, até porque isso implicaria em antecipação indevida do exame do mérito (STJ, 6ª T., RHC 4801/GO, DJU. 18. dez. 1.995, p. 44624; 5ª T. RHC 1.000, DJU, 15 abr. 1.991, p. 4307) ...”26

Mas, estando presentes indícios suficientes da materialidade e da autoria delitivas, a denúncia provavelmente será recebida, sendo certo que, na sequência, resolvidas diligências pleiteadas, eventualmente, pelo Ministério Público (busca de folhas e certidões de antecedentes, ofícios a órgãos públicos, etc.), como facultado pelo artigo 47 CPP ( embora a lei lhe permita, inclusive, que os requisite diretamente ), o Magistrado deverá determinar a citação do acusado e sua intimação para o interrogatório judicial (como, ademais, já prevê o artigo 394 CPP).

As citações, como sabido, no processo penal, devem obedecer ao disposto nos artigos 351 e seguintes úteis CPP, devendo-se requisitar réus presos para que sejam apresentados à Autoridade Judiciária competente para o interrogatório (nunca se podendo esquecer que a citação é formalidade essencial do processo, sendo o ato através do qual se dá conhecimento ao acusado de que contra si corre uma ação penal, dispondo de prazos para se defender).

A citação, inclusive, tem sido considerada, âmbito do processo penal, como ato de “chamamento do acusado a juízo, vinculando-o ao processo e seus efeitos, pois pela citação válida, completa-se a relação processual e o processo pode desenvolver-se regularmente”.27

A maior cautela, no entanto, que se deve observar, diz respeito ao fato de que se deve atentar para a alteração legislativa do regime jurídico do interrogatório no processo penal, permitindo ao acusado o acesso prévio a consulta com seu defensor e o direito do patrono de efetuar reperguntas ao seu cliente, o que se aplica, inclusive, no procedimento penal de apuração dos crimes dolosos contra a vida, matéria que se examina no presente trabalho.

Com isso, parece óbvio, se tem que o legislador pátrio pretendeu conferir maior efetividade ao princípio da ampla defesa, previsto pelo artigo 5º, inciso LV CF em vigor, posto que sempre se entendeu o interrogatório do acusado como uma peça de autodefesa28 (agora integrada e amparada pela defesa técnica – inclusive mais de um interrogatório se a defesa antever necessidade para tanto – uma vez que o imperativo constitucional se dê no sentido de uma defesa ampla e não restrita – mas sem abusos obviamente – a partir da demonstração plausível da necessidade – não haveria que se impedir interrogatórios em favor da defesa – e como se tem o direito ao silêncio como regra – a Promotoria não poderá exigir repetições ou forçar interrogatórios e nem os jurados poderão formar opinião contra o réu por conta disso – o que deve ser explicado – a defesa deve explorar tais dados como receio razoável – risco de morte se falar, risco à integridade de familiares etc).

Sobre repetições, tem-se entendimento do TJSP a respeito da interpretação do artigo 196 CPP que dispõe sobre interrogatório. Nesse sentido, aponta Damásio de Jesus (Código de Processo Penal Anotado, p. 181, 2009): “Repetição de interrogatório. Deve ser realizada quando surgem, na ação penal, novos elementos que exigem explicações do réu. Nesse sentido: TJSP, JTJ 191/296”.

Na mesma obra e mesma página, Damásio afirma que o indeferimento da realização de novo interrogatório deve ser fundamentado. Lógico eis que a motivação é da essência de qualquer decisão judicial (artigo 93, IX CF) – e se tem entendido que a motivaçao deve se dar em relação a argumentos que deveriam ser analisados pois seriam aptos a levarem à prolaçao de decisão sem sentido contrário ao que se verificou ao final (entram em cenas os argumentos adequados ou obiter dicta).

Vale apontar que a motivação adequada, além da salutar ideia de que mantém a imparcialidade do julgador (esse tem que explicar seu posicionamento a luz de critérios racionais e lógicos), permite que a parte controle a ideia de que a parte teve suas razões efetivamente apreciadas (o right to be heard – ou direito ao contraditório como garantia de que se foi ouvido).

Sabe-se que há grandes dificuldades de uma estrutura insuficiente para tantos processos – mas em processo penal há enorme importancia de se evitar o estado de coisas inconstitucional (ECI) previsto no Informativo STF 470 (Ministro Luiz Fux).

Assim também pontifica Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, p. 427): “Renovação do interrogatório: há variadas razões que podem levar à realização de novo interrogatório ao longo da instrução: ..... f) surge uma prova nova, como uma testemunha, desejando o réu manifestar-se sobre o seu depoimento, desconhecido até então...”.

O Promotor de Justiça e Professor de Processo Penal da UNESP, Antônio Alberto Machado, sustenta que:

“Sempre será uma faculdade do juiz ou tribunal, conforme disposto no art. 196. do CPP. E enquanto ato defensivo, desde que demonstrada a pertinência e relevância de um novo interrogatório, sempre será um direito do réu, numa devida homenagem ao princípio constitucional da ampla defesa. Na prática, significa dizer que, se o juiz determinar a realização de um novo interrogatório, o réu será obrigado a se submeter a esse ato novamente; se, por outro lado, o réu requerer que seja refeito o seu interrogatório em juízo, constatada a pertinência e relevância desse outro interrogatório para a prova, o juiz estará obrigado a deferir sua realização. Nesse caso, quando requerido pelo acusado, o indeferimento do ato por parte do juiz poderá configurar verdadeiro cerceamento de defesa, capaz de ensejar até a anulação do processo (MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 4ª Ed. São Paulo: 2012, p.478).

Há precedente do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo essa tese:

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. DENÚNCIA POR DUPLO HOMICÍDIO QUALIFICADO. ADITAMENTO À DENÚNCIA REALIZADO POR OCASIÃO DAS ALEGAÇÕES FINAIS. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO CONTRA TERCEIRA VÍTIMA. FATO NOVO. AUSÊNCIA DE NOVO INTERROGATÓRIO. OFENSA À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. NULIDADE RECONHECIDA. NECESSIDADE DE REFAZIMENTO DE ATOS DO PROCESSO. PRISÃO CAUTELAR QUE PERDURA MAIS DE SEIS ANOS. EXCESSO DE PRAZO. ILEGALIDADE. MATÉRIA NÃO ENFRENTADA PELA CORTE DE ORIGEM. IRRAZOABILIDADE. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESSA EXTENSÃO, CONCEDIDA. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO, PARA RELAXAR PRISÃO RECONHECIDA ILEGAL POR EXCESSO DE PRAZO. I. Hipótese em que foi promovido aditamento à denúncia para incluir nova imputação referente a tentativa de homicídio qualificado contra vítima não relacionada com a imputação original, o que consubstancia fato novo a demandar a realização de novo interrogatório, sob pena de nulidade, que ora se reconhece. II. Determinada a retomada da instrução processual anterior à pronúncia e verificado o transcurso de seis anos de prisão cautelar até o momento, exsurge patente o constrangimento ilegal a que se submete o paciente, apto a ensejar a concessão da ordem de ofício por esta Corte. III. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida para cassar o acórdão atacado e a sentença de pronúncia, mantendo a instrução processual realizada até o oferecimento da defesa preliminar subsequente ao aditamento recebido, e determinar seja assegurado ao paciente o direito de ser interrogado acerca da imputação veiculada através do aditamento à denúncia (tentativa de homicídio qualificado contra a vítima Luciana Ferreira Costa), após o que o processo deve retomar seu curso regular. IV. Ordem concedida de ofício para permitir que o paciente aguarde solto eventual julgamento pelo Tribunal do Júri, se por outro motivo não estiver preso (HC 197.941/CE, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 20/06/2012).

Se o acusado, citado pessoalmente, não comparecer, ser-lhe-á decretada a revelia, salvo se o fizer por motivo justificado. O mesmo ocorrerá se vier a mudar de endereço, após a citação, sem comunicação ao juízo, nos estritos termos do quanto estabelecido pelo artigo 367 do Código de Processo Penal, aplicável ao procedimento dos crimes dolosos contra a vida.

Do mesmo modo, se a citação ocorrer pela via editalícia, devendo o edital conter os requisitos previstos no artigo 365 e seus incisos CPP, será de se observar se o acusado comparecerá ou nomeará defensor para o ato, posto que, caso contrário, por força da alteração da redação do artigo 366 CPP o Juiz deverá suspender o processo e o decurso do lapso prescricional, aguardando a localização do acusado.

Caso surja a necessidade de adoção de providências urgentes, a prova poderá ser colhida antecipadamente, com a presença do Ministério Público e de um defensor dativo indicado pelo juízo (se estiverem presentes os requisitos legais, ou seja, os arrolados no artigo 312 CPP, a saber, a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, a garantia de aplicação da lei penal ou a conveniência da instrução criminal, o Juiz poderá decretar a prisão preventiva do acusado).

Superadas tais ponderações, como a presença advogado do acusado será necessária no interrogatório, provavelmente seu defensor já sairá intimado, nesta oportunidade ( interrogatório ) para a apresentação da defesa prévia ( salvo, por razões óbvias, se ocorrer uma situação anormal, como as destacadas acima, ou seja, por exemplo, revelia de um acusado pessoalmente citado, ocasião em que, como dito acima, haverá necessidade de nomeação de um defensor dativo para tanto ), no prazo de três dias, tal como disposto no artigo 395 do Código de Processo Penal ( a lei se refere a alegações escritas e rol de testemunhas ).

A doutrina esclarece que a intimação para a apresentação de resposta à acusação seja um ato judicial obrigatório, mas a apresentação pelo defensor é facultativa, pelo que, por razões óbvias, não ensejará o reconhecimento de nulidade.29 Interessante, no entanto é a ideia de que o Pacto de San José confere um direito supraconstitucional de que o acusado seja acompanhado, quando possível, por advogado de sua confiança – logo de se questionar alguns posicionamentos em que o patrono escolhido tenha outra audiência previamente designada e não se redesigne o ato.

Nesse caso, antes de violação de uma prerrogativa do defensor, se tem que o direito supraconstitucional do acusado restará afrontado. Com maior razão ainda haverá nulidade se o Plenário se realizar em tais condições.

Nesses delitos as penas geralmente recomendam o rito processual mais alongado já que tomados os depoimentos (se não for o caso de testemunhas residentes fora da Comarca e que deverão ser ouvidas por Carta Precatória, caso não compareçam espontaneamente), resolvendo-se eventuais incidentes típicos desta fase (como, por exemplo, as contraditas e acareações, se necessário for), o Juiz já designará audiência para oitiva das testemunhas de defesa ( igualmente, para preservar o princípio constitucional da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, a defesa poderá arrolar até oito testemunhas), interrogando-se o acusado ao final.

Encerrada a coleta da prova oral, o Magistrado, após encerrar a instrução, passará à fase das alegações finais, que, ao contrário do que ocorre no rito ordinário dos crimes apenados com reclusão, não se encontra prevista no artigo 500 do Código de Processo Penal, mas, ao contrário, está prevista no artigo 406 do referido diploma processual penal.

Tais alegações serão apresentadas, em primeiro lugar pelo Ministério Público (se houver assistente de acusação, o mesmo terá igual prazo em relação ao órgão ministerial, se manifestando após o mesmo), e, após, pela defesa, sendo fixado o prazo de cinco dias para tanto, sendo certo que, mesmo que existam vários réus, o prazo será único para tanto, correndo em cartório.30 De forma contraditória em relação ao princípio constitucional da ampla defesa (referido acima), e como à própria busca da verdade real, o artigo 406 do Código de Processo Penal, em seu parágrafo segundo, proíbe a juntada de documentos novos aos autos.

Mas isso não chega a gerar maiores polêmicas posto que se a parte não pode juntar documentos novos, pode pedir autorização ao Juiz para que os requisite ou determine exibição, já que o artigo 407 CPP, permite ao Juiz, após o encerramento da fase do artigo 406 do mesmo diploma, determinar diligências instrutórias necessárias a evitar causas de nulidade ou para o esclarecimento da verdade dos fatos ( a busca da verdade real a que se aduziu acima ), inclusive estando autorizado o Julgador a inquirir testemunhas.

Com isso parece não haver inconstitucionalidade na proibição de juntada de documentos novos, o que pode ser suprido pelo Juiz, em ato seguinte, como destacado acima, o que, ademais, não poderia ser diferente para a garantia do princípio do livre convencimento motivado do Julgador, o que somente pode ser efetivo, se lhe se conferir amplos poderes de instrução.

Mas obviamente que o juízo não deva partir para um protagonismo que seja de tal sorte que passe a suprir falhas eventuais da acusação – o que comprometeria a imparcialidade objetiva do julgador (sobre o que escreverei em outro artigo).

Se não houver necessidade dessas novas diligências, o Magistrado deverá proferir sua decisão que poderá, ou não, ser considerada uma sentença, de acordo com o que vier a ser decidido nesta fase.

Com efeito, o Magistrado poderá, nesta oportunidade, nos termos dos artigos 408 a 411 CPP, pronunciar o acusado se estiver convencido da existência de indícios suficientes da materialidade e da autoria delitivas, caso contrário, proferirá decisão de impronúncia, ou, até mesmo, se entender que não se cuida de situação de crime doloso contra a vida, discordando da capitulação contida na denúncia, poderá proceder à desclassificação do delito, o que deslocará a competência do julgamento para a Justiça Comum.

Por fim, nos termos previstos no artigo 411 do Código de Processo Penal, caso o Magistrado entenda que se cuida de situação de exclusão de tipicidade ou de isenção de pena, deverá proceder à absolvição sumária do acusado ( neste caso, a decisão terá natureza jurídica de sentença e não de decisão interlocutória ), devendo tomar a cautela de recorrer de ofício de sua decisão.

Aliás, convém que se destaque que a pronúncia, em sede doutrinária, tem sido entendida como uma “decisão processual de conteúdo declaratório em que o Juiz proclama admissível a acusação”, sendo certo, ainda, que, “na pronúncia, há um mero juízo de prelibação, pelo qual o juiz admite ou rejeita a acusação, sem penetrar no exame do mérito”.31

Mas, de se consignar que, nesta fase, se entender pela pronúncia, o Magistrado concluirá pela prova da existência do crime e pelos indícios suficientes da autoria, devendo-se compreender, por isso, como assevera Vicente Greco Filho:

“Prova da existência do crime significa convicção de certeza sobre a materialidade, ou seja, exemplificando no homicídio, certeza sobre a ocorrência de morte não natural, provocada por alguém. Indício suficiente da autoria significa a existência de elementos probatórios que convençam da possibilidade razoável de que o réu tenha sido o autor da infração.”32

Cuida-se, também de uma decisão interlocutória mista, não terminativa, que apenas encerra a primeira fase do procedimento escalonado a que se aludiu acima, fixando a competência do Tribunal do Júri para o julgamento do feito, por isso que, em sede de pronúncia, não pode o Juiz se alongar no exame do mérito, não sendo recomendável que teça comentários que possam influenciar o ânimo dos jurados33.

Interessante destacar, ainda sobre o tema, o teor do enunciado da Súmula nº 191 do Superior Tribunal de Justiça, que entende que a decisão de pronúncia interrompe o curso da prescrição punitiva, ainda que venha a ocorrer, posteriormente, desclassificação por parte dos jurados em sede de julgamento plenário.

Caso o Juiz não se convença da presença de tais indícios de autoria, ou não se convença da comprovação da materialidade delitiva, o correto será que prolate uma decisão de impronúncia.

Parte da doutrina aponta a peculiar situação de decisões de despronúncia34, que ocorrem quando o Juiz pronuncia o acusado, mas, diante de interposição de recurso em sentido estrito pelo defensor do acusado (artigo 581, inciso IV CPP), o Magistrado, em sede de juízo de retratação, se convence do desacerto da decisão anterior, e volta atrás em relação á sua decisão anterior que passará ser de impronúncia.

O mesmo se dá caso o Tribunal venha a acolher o referido recurso em sentido estrito, o qual teve seguimento porque o Magistrado não se retratou, optando pela sustentação da pronúncia35.

Por outro lado, o fato de haver sido impronunciado, ou despronunciado, como dito acima, o acusado, não implica em dizer que o mesmo se verá livre da acusação, em caráter definitivo, posto que, se por acaso, surgirem novas provas, novo processo poderá ser instaurado contra o mesmo36 (pelo óbvio, enquanto não se verificar a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva).

Caso o Juiz se convença de ocorrência de crime diverso do imputado na denúncia ( ou queixa, conforme o caso destacado acima da ação penal subsidiária do ofendido ), não sendo este crime de competência do Tribunal do Júri ( ou seja, um crime doloso contra a vida ), deverá proceder à desclassificação do acusado, o que implicará, nos termos do artigo 410 do Código de Processo Penal, em necessidade de remessa dos autos ao juízo competente (no caso, o juízo singular), com a oportunidade para oitiva de testemunhas, adoção das providências do artigo 499 CPP, etc.

Se o Juiz se convencer de ocorrência de outro crime, não imputado na denúncia, mas que ainda seja de competência do Tribunal do Júri, deverá proceder à mutatio libeli, a que alude a norma contida no artigo 384 do Código de Processo Penal, para que não se viole o princípio da ampla defesa, constitucionalmente assegurado, como destacado acima.37

Isso, pelo óbvio, se ocorrer situação que implique em alteração da descrição do fato imputado na denúncia, mas não na hipótese mais simples, de situação de mera discordância da capitulação do fato narrado na denúncia, quando, então, o Magistrado poderá, sem necessidade de alteração da peça exordial acusatória, aplicar o disposto no artigo 383 CPP.38

Nesta fase, diga-se, de passagem, costuma-se analisar elementos evidenciadores, ou não, da intenção do agente, às mais das vezes demonstrados por atos praticados pelo autor do delito. Com efeito, nesta direção apontam as decisões dos Tribunais pátrios, demonstrando alguns atos exteriores, como evidenciadores da intenção homicida:

"Constituem início de execução, reveladores da intenção do réu, os atos objetivos de usar arma de poder mortífero para alcançar parte letal do corpo da vítima." TAMG, Rel. Des. Hélio Costa,RF 205/247.

"Um disparo de arma de fogo na direção de uma pessoa, não significa, só por só, tentativa de homicídio. para reconhecê-la, é mister que se verifique a ocorrência de uma série de sinais objetivos de identificação anteriores, coetâneos e posteriores à própria ação ofensiva. A existência de precedente ameaça, ou de ressentimento entre o agente e a vítima, o meio vulnerante empregado, a região afetada pela agressão, as palavras ou atitudes do autor diante do resultado produzido, tudo isso deve ser observado, medido e avaliado..." TJSP, Rel. Silva Franco, RT 525/345.

Na desclassificação, portanto, o que se tem é uma manifestação judicial no sentido de que o Tribunal do Júri não será considerado o Juiz Natural da apuração do fato, posto que o Juiz não se convenceu da ocorrência de um crime doloso contra a vida.

Por último, ainda, nesta fase, tem-se a possibilidade do Magistrado se convencer da ocorrência de situação excludente da ilicitude (e o Código de Processo Penal, promulgado em 1.941, portanto antes da Reforma da Parte Geral do Código Penal, verificada em 1.984, faz referência no artigo 411 aos artigos da Parte Geral revogada) ou de isenção de pena, o que o levará a proferir uma decisão de absolvição sumária.

Como, ao contrário da pronúncia ou da desclassificação, não se cuida de uma decisão fixando competência do Julgador para o fato, mas se cuida de uma decisão absolutória, a mesma tem natureza jurídica de sentença proferida pelo juízo monocrático, fazendo coisa julgada material.39

Em sede de absolvição sumária, o Juiz fica adstrito ao princípio in dúbio pro societate, de modo que as situações excludentes de ilicitude e de isenção de pena (situações de inimputabilidade), devem restar evidentes, patentes, de modo que, se houver dúvida, deve-se pronunciar o acusado para que o Tribunal do Júri, juiz natural constitucionalmente estabelecido, como demonstrado acima, decida a questão. Neste sentido, a opinião de Fernando da Costa Tourinho Filho, para quem, dizendo muito em pouco, confirma essa peculiaridade, no que tange à absolvição sumária:

"Pode também o Juiz proferir sentença absolutória, nos termos do artigo 411 CPP. Entendendo que o ato praticado pelo réu não foi antijurídico ou ausente de culpabilidade, pode absolvê-lo sumariamente, desde que, no particular, as provas sejam estremes de dúvida..............Se o Tribunal do Júri julga os crimes dolosos contra a vida, depois que o Juiz togado julga procedente o "jus accusationis", e como não pode dizer que procede o direito de acusar, se, o ato foi praticado, digamos, em legítima defesa, é intuitivo possa haver a absolvição sumária, desde que não haja nenhuma dúvida sobre a existência da excludente de antijuridicidade.” 40

Além do entendimento doutrinário a respeito, já retromencionado, também vem a jurisprudência majoritária dos Tribunais pátrios cristalizando a tese da não aplicação do brocardo latino "in dubio pro reo" nos casos da absolvição sumária disciplinada no artigo 411 CPP. Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

" A absolvição sumária do artigo 411 CPP só tem lugar quando a excludente da culpabilidade desponte nítida, clara, de forma irretorquível, da prova dos autos. Mínima que seja a hesitação da prova a respeito, impõem-se a pronúncia para que a causa seja submetida ao Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, por força de mandamento constitucional." RT 656/279

Ainda neste sentido, v.g., STF, RTJ 63/833; 61/344; TJSP, RT 503/328; 514/348;564/326 e 655/275, dentre inúmeras outras. A cautela que se deve ter, nessa situação, de absolvição sumária, é atentar para a necessidade de interposição de recurso de ofício pelo Magistrado, sendo certo que, neste caso, se verifica, além da possibilidade do chamado recurso oficial (artigo 574, inciso II CPP), será possível a interposição de recurso em sentido estrito (artigo 581, inciso VI do mesmo diploma legal), de modo que, em tese, tem-se como possível que o Juiz, em sede de retratação, volte atrás na sua decisão de absolvição sumária, em exceção à regra de que somente caberia o recurso de apelação em face de sentenças absolutórias definitivas ( artigo 593, inciso I CPP).41

Consigna-se, por fim, que, com a prolação da decisão de pronúncia, com as cautelas destacadas acima, não havendo interposição de recurso, ou se houver interposição, se não houver conhecimento ou provimento recursal estaria encerrada esta fase processual, restando, agora, o início da segunda fase do procedimento escalonado, a se verificar com a apresentação do libelo-crime acusatório, pelo Promotor de Justiça, em relação ao que, no entanto, para que não se extrapole o âmbito do presente trabalho, não serão tecidos outros comentários.

Sobre o autor
Julio Cesar Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Faculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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