A Lei n° 14.245/2021, mais conhecida como Lei Mariana Ferrer, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 22 de novembro de 2021, fruto do Projeto de Lei n° 5096/2020 de autoria da Deputada Federal Lídice da Mata com a participação de mais de 20 parlamentares. A Lei Mariana Ferrer foi sancionada sem vetos pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial da União no dia 23 de novembro de 2021.
A Lei nº 14.245 recebe o nome de Mariana, modelo e influenciadora digital que alegou publicamente, por meio de suas redes sociais, ter sido dopada e estuprada no ano de 2018 enquanto trabalhava como embaixadora de uma festa em um beach club de Florianópolis – Santa Catarina. O caso alcançou conhecimento nacional e provocou grande comoção diante dos relatos, fotos e detalhes compartilhados pela vítima. A hashtag “#JustiçaForMariFerrer” tornou-se um dos assuntos mais comentados no mundo virtual naquela época.
O Ministério Público de Santa Catarina, em 2019, apresentou denúncia contra o empresário André de Camargo Aranha pelo estupro de Mariana. André foi acusado pelo crime de estupro de vulnerável, caracterizado pela conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com alguém que não pode oferecer resistência, nos termos do §1°, art. 217-A do Código Penal, penalizado com reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
E m 2020, durante o julgamento do caso que ocorreu de maneira remota, o advogado do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho, em incontáveis vezes durante a audiência desrespeitou a dignidade de Mariana, ofendendo-a verbalmente e trazendo naquela ocasião, dados da vida pregressa da jovem, fotos postadas por Mariana em suas redes sociais e que não tinham a menor relação com o processo que estava sendo julgado, com o intuito de manchar sua imagem e honra em uma técnica de defesa no mínimo vergonhosa, transformando a vítima em verdadeira ré e materializando a dolorosa vitimização secundária, conceituada pelo doutrina criminológica como sendo aquela que “ocorre no âmbito dos órgãos formais do Estado. Também chamada de “Revitimização” ou de “Sobrevitimização”, é aquela causada pelas instâncias formais que detêm o controle sobre o âmbito social (isto é, em delegacias, no Ministério Público etc.). Abrange os custos pessoais derivados da intervenção do sistema legal que podem aumentar o sofrimento da vítima. Ocorre quando há desrespeito às garantias e aos direitos fundamentais das vítimas de crime no curso da investigação ou do processo penal.” 1
O que está em debate não é a absolvição do empresário, que de fato ocorreu em setembro de 2020 e outubro de 2021, em primeira e segunda instância, respectivamente. O que se planeja debater são as estratégias defensivas altamente ofensivas perpetradas contra Mariana que assistia atônita uma audiência que julgaria um crime contra sua dignidade sexual administrada exclusivamente por homens.
O jornal The Intercept 2 ao divulgar um vídeo da audiência, no qual o advogado de defesa exibiu pretensiosamente fotos da vítima, supostamente sensuais, que mais uma vez, não possuíam qualquer relação com o que estava sendo julgado, provocou uma enorme reação nas redes sociais. No ocorrer do episódio, Mariana chorou e pediu por aquilo que nós acreditamos ser o mínimo a ser ofertado a uma mulher nessas condições: respeito.
Independentemente de qual será a sentença prolatada, independentemente na crença da veracidade das alegações da vítima ou do acusado, independentemente de qualquer juízo de valor sobre o processo em curso, não podemos abrir mão do respeito. É preciso que nesses casos a concentração se volte para o fato criminoso discutido e não para o que a vítima faz, fez ou venha a fazer em sua vida privada.
A Lei Mariana Ferrer foi criada como um instrumento apto a preservar e proteger a dignidade das vítimas e testemunhas dos crimes contra a dignidade sexual, evitando o desrespeito e os constrangimentos absurdos e inadmissíveis. Sabemos que o tratamento conferido às vítimas e testemunhas nesse tipo de crime pelos órgãos de justiça em incontáveis casos são tão graves quanto aquele ofertado à Mariana.
Não há como negar que os ideais machistas e sexistas ainda exercem uma preponderante influência em nosso meio social, jurídico, familiar, profissional, acadêmico e em todos os outros. Em se tratando de processos judiciais, sobretudo aqueles que versam sobre a temática delicada da dignidade sexual é possível perceber mais claramente a força dessas correntes. O que não quer dizer que isso não deva mudar, pelo contrário. Mulheres vítimas das mais variadas formas de abuso viram rés tanto da sociedade quanto do próprio sistema de justiça quando julgadas preceitos misóginos reproduzidos cotidianamente. A vida pregressa de uma mulher condena, os relacionamentos pretéritos de uma mulher condenam, as vestimentas “provocativas” de uma mulher condenam, a vida sexual de uma mulher condena, os comportamentos “inadequados” de uma mulher condenam, o machismo condena. Ironicamente, são as vítimas que já iniciam o penoso processo judicial condenadas.
A Lei n°14.245/21, apesar de ter sido alvo de críticas daqueles que dizem que o referido dispositivo legal afronta a necessária plenitude da defesa, na verdade, reforça que os direitos e garantias das vítimas também merecem ser tutelados. A ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência conferidos aos acusados precisam estar em harmonia com a preservação da dignidade e integridade da vítima. Afinal, não é a vítima ou a testemunha que estão sendo julgadas. Só assim é possível que se tenha um processo penal mais justo e menos revitimizante.
Por fim, o referido dispositivo legal modificou alguns artigos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei n° 9099/95 que regulamenta os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. No âmbito do Código Penal, a alteração trazida pela Lei Mariana Ferrer concentrou-se no acréscimo do parágrafo único do art. 344. que diz respeito ao crime de coação no curso do processo, prevendo uma causa especial de aumento de pena, (de 1/3 até a metade), incidente na terceira fase da dosimetria, nos processos que envolvam crimes contra a dignidade sexual.
No âmbito do Código de Processo Penal, a referida lei criou dois artigos, o art. 400-A e o art. 474-A. O artigo 400-A determina que na audiência de instrução e julgamento, em especial nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todos os envolvidos no processo deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima. O artigo 474-A, por sua vez, estabelece que durante a instrução em plenário todos os sujeitos envolvidos no processo devem respeitar a dignidade da vítima. Em ambos os dispositivos, estão previstas em caso de descumprimento, a responsabilização civil, penal e administrativa. Apesar dessas responsabilidades não estarem inteiramente regulamentadas, é possível buscar junto ao Conselho Superior do Ministério Público, ao Conselho Nacional de Justiça e nos próprios juízos cíveis eventual dano moral praticado contra a vítima pelos sujeitos do processo.
Importante destacar ainda que, com o advento da Lei 14.245/2021, os dados que não tenham relação com o processo a ser julgado não poderão ser juntados aos autos, como por exemplo: vida sexual pregressa da vítima, fotos postadas pela vítima em suas redes sociais, relacionamentos passados, roupas utilizadas pela vítima, comportamentos da vítima em sua esfera privada, dentre outros. É claro que a lei assume papel de relevante significado na luta contra o desrespeito que mulheres vítimas de crimes sexuais sofrem, mas só dispositivos legais não bastam para que toda uma cultura deselegante e ofensiva caia por terra, ainda há muito o que caminhar e o que conquistar. Por ora, celebramos os pequenos passos.
22 de agosto de 2022, 13h41
1 https://www.cnmp.mp.br/defesadasvitimas/vitimas/vitimizacao︎
2 https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/