O reconhecimento do dano moral no ordenamento jurídico brasileiro é uma conquista relativamente recente, fruto da Constituição Federal de 1988, que, em seus artigos 5º, incisos V e X, consagrou a reparação por danos à honra, à intimidade e à imagem. Antes disso, o Judiciário brasileiro rejeitava tais pleitos sob o argumento de que o sofrimento da alma seria incomensurável, intangível, impossível de ser tarifado. Com a nova ordem constitucional, essa barreira foi superada, mas o caminho para uma aplicação plena e eficaz desse direito permanece tortuoso, como demonstra o recente julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) em um caso de injúria racial.
No caso em questão, relatado pelo desembargador João Augusto Garcia, uma ré foi condenada por proferir expressões como "negra macaca" contra a vítima, configurando injúria racial – crime que fere não apenas o indivíduo, mas a dignidade de toda uma coletividade. A palavra da vítima, corroborada por testemunhas, foi considerada "segura e consistente", e o magistrado reconheceu a gravidade do ato. Contudo, ao fixar a indenização, o tribunal reduziu o valor inicial de 20 salários-mínimos para apenas um, sob a justificativa da condição financeira da ré, uma servente escolar com renda inferior a dois salários-mínimos 01.
Esse episódio escancara uma contradição persistente no Judiciário brasileiro: embora o dano moral tenha sido formalmente acolhido, sua reparação é frequentemente minimizada, seja por dificuldades na comprovação objetiva do sofrimento, seja por uma visão conservadora que prioriza a capacidade econômica do ofensor em detrimento da gravidade do ato e da necessidade de punição exemplar. Tal postura contrasta radicalmente com o modelo norte-americano, onde indenizações por danos morais – os chamados punitive damages – são calculadas não apenas para compensar a vítima, mas para punir o agressor e dissuadi-lo de reincidir, levando em conta a situação socioeconômica de ambas as partes.
No Brasil, a redução da indenização para um salário-mínimo, ainda que compatível com a renda da ré, ignora o impacto devastador da injúria racial na psique da vítima e na sociedade como um todo. O dano moral, por sua natureza, é uma "agressão à alma", como bem apontado, e não pode ser mensurado por exames médicos ou recibos. Exigir sua comprovação objetiva é negar sua essência. Mais grave ainda é a mensagem implícita dessa decisão: a de que a gravidade da ofensa pode ser relativizada pela pobreza do ofensor, o que enfraquece o caráter pedagógico da sanção e perpetua a banalização do sofrimento alheio.
A prática brasileira de fixar indenizações irrisórias – muitas vezes inferiores ao custo de uma ação judicial – revela uma resistência histórica em atribuir ao dano moral o peso que ele merece. Enquanto nos Estados Unidos casos de discriminação racial podem resultar em indenizações milionárias, no Brasil o valor de um salário-mínimo (R$ 1.412,00 em 2025) é tido como suficiente para reparar uma ofensa que ataca a dignidade humana em seu cerne. Essa discrepância não reflete apenas uma diferença cultural ou jurídica, mas uma falha estrutural em compreender o dano moral como instrumento de justiça social.
Para ilustrar uma abordagem mais alinhada com a função punitiva e reparadora do dano moral, vale citar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No Recurso Especial nº 1.665.219/RS, julgado em 2017, a Corte fixou indenização de R$ 50.000,00 por danos morais em um caso de discriminação racial em ambiente de trabalho, destacando que o valor deveria refletir "a reprovabilidade da conduta e a necessidade de desestimular práticas semelhantes". O relator, ministro Luis Felipe Salomão, enfatizou que a indenização deve ter caráter pedagógico, indo além da mera capacidade financeira do ofensor, para garantir que a reparação seja sentida como tal.
O caso do TJ/SP, portanto, é um retrocesso. Reduzir a indenização a um salário-mínimo não pune, não educa e não repara. Pelo contrário, sinaliza que ofensas graves podem ser toleradas desde que o agressor seja economicamente vulnerável – uma lógica que, paradoxalmente, desprotege as vítimas, muitas vezes igualmente vulneráveis. É urgente que o Judiciário brasileiro abandone essa timidez histórica e passe a tratar o dano moral com a seriedade que a Constituição lhe confere, alinhando-se a padrões internacionais que reconhecem seu papel transformador. Só assim a "agressão à alma" deixará de ser um conceito abstrato para se tornar um direito efetivamente protegido.
01 (conforme noticiado em https://www.migalhas.com.br/quentes/427571/injuria-racial-tj-sp-reduz-indenizacao-de-20-para-1-salario-minimo)