Justiça Eleita: Entre a ficcção de Grisham e a realidade da política judicial nas Américas

09/04/2025 às 17:13
Leia nesta página:

A discussão sobre o modelo de eleição popular para juízes, recentemente incorporado na legislação mexicana e amplamente debatido nos Estados Unidos – como no caso da eleição da juíza da Suprema Corte de Wisconsin –, evoca uma série de reflexões que transcendem o campo do Direito. Trata-se de um fenômeno que dialoga diretamente com temas caros à democracia, à independência judicial e ao risco da captura ideológica do Judiciário por interesses econômicos e partidários.

A literatura não ficou alheia a essas questões. O autor norte-americano John Grisham, notabilizado por seus romances jurídicos, antecipou em suas obras uma série de problemáticas que hoje vemos se materializar em contextos reais.


"A Apelação" e o Caso de Wisconsin

No romance "A Apelação" (2008), Grisham narra a história de uma grande corporação condenada a pagar uma indenização milionária por contaminação ambiental. Para reverter a decisão, seus executivos decidem financiar a campanha de um candidato conservador para a Suprema Corte do estado, substituindo a juíza que votou contra seus interesses. O livro expõe como a eleição judicial pode ser manipulada por grupos com poder financeiro, comprometendo a imparcialidade judicial 1.

A história se aproxima perigosamente do que ocorreu em Wisconsin, em abril de 2025, quando a juíza liberal Susan Crawford venceu uma eleição para a Suprema Corte estadual após uma disputa marcada por gastos históricos, com mais de US$ 100 milhões investidos, incluindo US$ 25 milhões do bilionário Elon Musk para apoiar seu oponente conservador, Brad Schimel 2. Essa foi apenas uma entre várias disputas judiciais americanas com valores milionários: em 2023, a disputa pela Suprema Corte de Illinois também ultrapassou a marca de US$ 50 milhões em gastos, segundo dados do Brennan Center for Justice 3.

O paralelo evidencia que, longe de se tratar de mera especulação literária, os riscos de uma justiça "eleita" se materializam com facilidade quando não há mecanismos de controle adequados sobre o financiamento de campanha e a influência externa nos pleitos judiciais.


A Reforma Mexicana: O Judiciário como Espaço Eleitoral

Em setembro de 2024, o Congresso mexicano aprovou uma reforma constitucional que determina a eleição popular para todos os magistrados do país, incluindo ministros da Suprema Corte. A medida, proposta pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, foi justificada como uma tentativa de democratizar o Judiciário e afastar as elites da sua condução. Contudo, a proposta também foi alvo de críticas por possível tentativa de captura institucional e politização das decisões judiciais 4.

Segundo o jurista mexicano Diego Valadés, ex-procurador-geral da República, a proposta representa uma "tentativa clara de enfraquecer o Estado de Direito em nome de uma suposta participação popular" 5. Para Valadés, as eleições judiciais podem agravar a desigualdade de acesso à justiça, favorecendo candidatos com maior acesso a recursos ou conexões partidárias.

O modelo mexicano retoma o dilema explorado em "O Dossiê Pelicano" (1992), onde Grisham mostra como vacâncias na Suprema Corte geram uma corrida por nomeações de juízes alinhados a interesses corporativos. No método mexicano, a pressão é ainda maior: não se trata apenas de nomeação, mas de campanhas populares financiadas, com grande risco de judicialização da política e de politização da justiça 6.


A Língua Afiada da Ficcção e a Crueza da Realidade

Grisham, em obras como "O Júri" (1996) e "A Firma" (1991), demonstra como o sistema de justiça norte-americano é permeado por interesses não apenas jurídicos, mas também políticos e econômicos 7. A transformação do juiz em um ator eleitoral reforça essa tendência, pois ele passa a depender do apoio de grupos com capacidade de mobilização e financiamento.

A pergunta que fica é: quem será representado por um juiz eleito com o apoio de empresas, partidos ou lobbies ideológicos? A resposta, como nos alerta Grisham, pode comprometer não apenas o caso em julgamento, mas a própria legitimidade da Justiça como órgão imparcial.


Por que o Brasil não deve seguir esse caminho

A Constituição Federal de 1988 consagrou a independência do Poder Judiciário como um dos pilares do Estado Democrático de Direito (art. 2º e art. 95). A escolha de magistrados segue critérios técnicos por meio de concursos públicos (juízes de primeira instância) ou nomeação após sabatina (nos tribunais superiores) 8.

Implementar eleições populares para juízes no Brasil significaria romper com esse modelo meritocrático e abrir caminho para a contaminação do Judiciário por influências eleitoreiras. Como alerta Lenio Streck, jurista e ex-procurador de Justiça: "juízes não devem agradar as massas, mas aplicar o Direito com técnica e coragem" 9.

Mais ainda: segundo dados do CNJ, o Brasil já sofre com o descrédito institucional. Submeter juízes à pressão de campanhas eleitorais, alianças partidárias e financiamentos de campanha pode agravar a desconfiança e desfigurar o papel do magistrado como garantidor de direitos fundamentais 10.


Conclusão: O Risco de um Futuro Distópico

As eleições judiciais em democracias consolidadas não são, por si só, um problema. Entretanto, quando acompanhadas de um cenário de hiperfinanciamento, baixa regulação e campanhas ideologicamente inflamadas, podem desfigurar os pilares da imparcialidade e da segurança jurídica.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

John Grisham, mesmo escrevendo ficção, nos oferece um espelho inquietante da realidade. O que parecia exagero literário nos anos 1990 e 2000, hoje se materializa nas cortes de estados como Wisconsin e nas reformas de países como o México.

Cabe aos juristas, à sociedade civil e à classe política refletirem se estamos construindo um Judiciário mais próximo do povo ou apenas mais vulnerável aos donos do poder.

No Brasil, é imperativo que resistamos a essa tentação. Nossa história de combate ao autoritarismo e defesa da ordem constitucional não comporta aventuras populistas que comprometam a independência do Poder Judiciário.


Referências Bibliográficas

1 GRISHAM, John. A Apelação. Trad. Alves Calado. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

2 AP News. "Wisconsin supreme court race a litmus test for Elon Musk's political power". 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/wisconsin-supreme-court-elon-musk-trump-2aae240fc9fd0b1d996b7aa644397fa1

3 BRENNAN CENTER FOR JUSTICE. Judicial Elections Campaign Spending Database. 2023. Disponível em: https://www.brennancenter.org

4 CONJUR. "México aprova eleição popular para juízes de qualquer instância". 12. set. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-12/mexico-aprova-eleicao-popular-para-juizes-de-qualquer-instancia/

5 VALADÉS, Diego. Entrevista ao El País. "Eleição popular de juízes no México é retrocesso". 2024.

6 GRISHAM, John. O Dossiê Pelicano. Trad. Alves Calado. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

7 GRISHAM, John. O Júri. Trad. Alves Calado. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. e A Firma, 1991.

8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 2º e Art. 95.

9 STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2014.

10 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório Justiça em Números 2023. Brasília, 2023.

Sobre o autor
Gustavo Lopes Pires de Souza

Doutor Honoris Causa pela Emil Brunner World University; Mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lérida (Espanha); MBA em Consultoria e Gestão Empresarial; Especialista em Gestão em Marketing Digital; Ouvidor pela Escola Nacional da Administração Pública; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Colunista; Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior; Professor em instituições de ensino nacionais e internacionais; Palestrante de eventos e conferências no Brasil, América Latina e Europa. - @gustavolpsouza

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos