Do fim da censura à curadoria da informação: Uma análise da liberdade de expressão no Brasil

09/04/2025 às 14:30

Resumo:


  • A Constituição de 1988 marcou o fim da censura no Brasil, garantindo a livre expressão do pensamento e vedando o anonimato.

  • Apesar da abolição constitucional da censura, novos desafios surgiram, como o controle da informação por meio de curadoria e a influência das plataformas digitais na disseminação de informações.

  • A regulação das redes sociais tem sido debatida pelo judiciário brasileiro, enquanto a imprensa busca restaurar sua relevância diante da disseminação de notícias falsas e da perda de credibilidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A livre expressão do pensamento, prevista no Artigo 5º, inciso IV da Constituição Federal do Brasil, marcou o encerramento formal dos mecanismos de censura que caracterizaram os períodos autoritários da história brasileira. Este dispositivo constitucional estabeleceu dois pilares fundamentais para a liberdade de expressão: a garantia da manifestação do pensamento em suas diversas formas e a vedação do anonimato, visando a responsabilização por aquilo que é expresso. A promulgação da Constituição em 1988 representou um marco na redemocratização do país, rompendo com um passado de repressão e controle da informação.

No entanto, a afirmação inicial da Constituição sobre o fim da censura pode gerar uma percepção de liberdade irrestrita. A questão central levantada é que, apesar da abolição constitucional da censura, o controle da informação persiste, embora por meio de mecanismos mais sutis e complexos. A proibição do anonimato, embora intencionada para promover um debate transparente e responsável, também pode apresentar desafios para indivíduos que temem represálias ao expressar opiniões divergentes em contextos de desequilíbrio de poder ou polarização social.

O ponto crucial da discussão contemporânea sobre a liberdade de expressão não reside propriamente na existência formal desse direito, mas sim na curadoria das informações que efetivamente alcançam as grandes massas. A curadoria, entendida como o processo de seleção, organização e apresentação de informações, implica inevitavelmente um filtro que pode influenciar significativamente o acesso e a visibilidade de diferentes perspectivas. A transição de uma censura estatal explícita para uma curadoria menos transparente representa uma mudança na natureza do controle da informação. A censura, como instrumento direto de supressão de conteúdo indesejado, era facilmente identificável e frequentemente enfrentava resistência. Em contraste, a curadoria pode ser apresentada como um processo neutro ou até benéfico, como no caso da filtragem de desinformação, tornando-se potencialmente mais insidiosa em suas formas de influência.

Na sociedade pré-digital, o Estado e o capital a ele alinhado exerciam um controle significativo sobre os mecanismos de veiculação da informação de massa. As emissoras de televisão e rádio operavam mediante concessão pública, um sistema que historicamente conferiu ao governo um poder considerável sobre o setor. A prerrogativa de conceder e renovar licenças permitia ao Estado influenciar o conteúdo transmitido, seja através de incentivos, seja pela ameaça de não renovação. Os jornais, por sua vez, dependiam em grande medida da publicidade oficial para sua sobrevivência financeira. Essa dependência criava uma vulnerabilidade, onde a crítica ao governo poderia resultar na perda de importantes fontes de receita, impactando a linha editorial dos veículos. No âmbito cultural, artistas frequentemente dependiam de subvenções públicas para realizar seus trabalhos. Embora o financiamento estatal possa fomentar a produção artística, também existe o potencial para que o Estado favoreça manifestações culturais alinhadas com suas ideologias, marginalizando expressões divergentes ou não convencionais. Nas instituições de ensino, o controle de cátedra conferia grande poder aos professores titulares, influenciando o direcionamento do debate acadêmico e potencialmente limitando a diversidade intelectual. O sistema de cátedra, com sua estrutura hierárquica, poderia, em certos casos, inibir a livre exploração de ideias e a manifestação de opiniões que desafiassem as visões estabelecidas.

O advento da sociedade em redes e das plataformas digitais transformou radicalmente a disseminação de informações e opiniões. Pela primeira vez, grandes contingentes de pessoas puderam ter acesso a informações e expressar suas opiniões sem a necessidade da chancela das instituições tradicionais como a academia, a indústria cultural ou a imprensa. A atenção e o tempo dos indivíduos ganharam um valor equivalente ao financeiro, pois na sociedade democrática de massas, a informação influencia opiniões, que por sua vez determinam votos e decisões de compra. Essa mudança representou um desafio para os antigos "gatekeepers" da informação – donos de canais de TV e rádio, produtores e reitores – que antes selecionavam conteúdos para repercussão massiva, numa relação dialética entre seus interesses políticos e econômicos e as restrições e intervenções públicas. Indivíduos com visões excêntricas ou não alinhadas podiam até discursar livremente, mas suas vozes raramente ultrapassavam um círculo social limitado.

Nesse contexto, a censura tradicional tornou-se uma técnica ultrapassada para o controle da informação. A própria existência de vozes marginais, sem acesso aos meios de comunicação de massa, paradoxalmente legitimava a ordem estabelecida, comprovando a aparente ausência de censura e a liberdade vigente. A mídia tradicional, ao permitir uma certa diversidade de opiniões dentro de um espectro limitado, enquanto excluía vozes que desafiavam fundamentalmente o sistema, criava uma fachada de abertura e liberdade que mascarava os mecanismos subjacentes de controle.

As grandes empresas de tecnologia, as "big techs", criaram instrumentos que transpuseram os mecanismos de controle da veiculação de informações e inutilizaram o sistema de curadoria estabelecido pela Constituição de 1988. O Estado, a indústria cultural e de comunicação, bem como as universidades e coletivos de professores, ressentem-se dessa perda de poder. A influência das plataformas digitais, com seu alcance global e a capacidade de moldar o fluxo de informações através de algoritmos, representa uma nova forma de poder que desafia as estruturas tradicionais.

Essa transformação explica as posições do judiciário face à regulação das redes sociais, bem como a ânsia da imprensa – que na ordem anterior lutou contra a censura – por uma regulamentação que devolva as posições indesejáveis ao ostracismo e restabeleça a autoridade (e a rentabilidade) do sistema. O judiciário brasileiro tem debatido ativamente a necessidade e os limites da regulação das plataformas digitais, buscando um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a necessidade de combater a desinformação e proteger os processos democráticos. A imprensa, por sua vez, demonstra preocupação com a disseminação de notícias falsas e a perda de credibilidade, vendo na regulamentação uma possível forma de restaurar sua relevância e modelo de negócios.

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Em conclusão, a análise revela uma complexa evolução na dinâmica da liberdade de expressão e do controle da informação no Brasil. A superação da censura formal pela Constituição de 1988 abriu caminho para novas formas de influência, especialmente com a ascensão das plataformas digitais. A curadoria da informação, antes exercida principalmente pelo Estado e pelo capital a ele alinhado através de mecanismos como concessões de mídia, publicidade oficial e controle acadêmico, agora é significativamente moldada pelos algoritmos e políticas das grandes empresas de tecnologia. Essa mudança gera um debate acalorado sobre a necessidade e os limites da regulamentação, com o judiciário e a imprensa buscando formas de adaptar-se a essa nova realidade e restaurar a confiança no fluxo de informações. O desafio reside em encontrar um equilíbrio que garanta a liberdade de expressão em sua plenitude, ao mesmo tempo em que se combate a desinformação e se promove um debate público saudável e plural.

Sobre o autor
Rafael Pereira de Menezes

Analista judiciário do TRE/PR desde 2009. Servidor do PJU desde 2005. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2004. Mestre e Doutor em filosofia da PUC/PR. Professor de Filosofia e Direito Constitucional no Centro Universitário Campos de Andrade - Uniandrade

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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