Introdução
A atuação do servidor público deve se orientar por padrões jurídicos previamente estabelecidos, notadamente à luz do princípio da legalidade (além do princípio da eficiência), que estrutura todo o regime jurídico-administrativo. No entanto, é notória a existência de uma dicotomia entre o “mundo ideal”, normativamente previsto, e a “realidade administrativa concreta”, marcada por sensível carência de recursos humanos, sobrecarga de trabalho e insuficiência de condições materiais. Esse descompasso, com frequência ignorado pelos diplomas legais que disciplinam a responsabilização funcional, quer no momento da tipificação inicial da falta quer por ocasião da aplicação da penalidade, impõe relevantes reflexões quanto à razoabilidade e à justiça na aplicação de sanções disciplinares.
1. A Legalidade e o Deslocamento entre o Ideal e o Real
A legalidade, enquanto princípio estruturante da atuação administrativa, impõe que todos os atos praticados pela Administração Pública estejam rigorosamente conformes às disposições legais vigentes. Trata-se de um regime de restrição e vinculação, no qual o poder estatal se submete aos limites traçados pela norma jurídica. A propósito, como ensina o sempre lembrado magistério de Hely Lopes Meirelles, “enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.1
Curiosamente, outra lição igualmente valiosa transmitida por Hely Lopes Meirelles não tem recebido o mesmo destaque nos debates contemporâneos, embora mereça atenção especial por parte dos estudiosos e operadores do Direito Administrativo. Trata-se da advertência quanto aos limites concretos da atuação administrativa, especialmente em contextos de precariedade estrutural, no qual o cumprimento estrito da norma legal pode se revelar desafiador ou, em certos casos, inviável; a saber:
“cumprir simplesmente a lei na frieza de seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. A administração, por isso, deve ser orientada pelos princípios do Direito e da Moral para que ao ‘legal’ se ajunte o ‘honesto’ e o ‘conveniente frente aos interesses sociais’.”2
De fato, a leitura do princípio da legalidade não pode se dar de forma estanque ou impermeável ao contexto fático. A rigidez interpretativa, que desconsidera as contingências administrativas, compromete a efetividade do próprio ordenamento jurídico. Trata-se, pois, de reconhecer que a norma jurídica, embora abstrata, opera concretamente em realidades heterogêneas, muitas vezes marcadas por limitações severas no aparato estatal.
Nesse sentido, impõe-se uma leitura sistemática e contextualizada da legalidade, sensível às dificuldades enfrentadas pelos servidores, especialmente na Administração Direta, na qual são frequentes os relatos de sobrecarga, acúmulo de funções e ausência de suporte técnico-operacional.
2. O Silêncio da Legislação e a Coragem Normativa do Distrito Federal
Em um cenário em que a legislação disciplinar, na maioria dos entes federativos,3ignora as condições objetivas de trabalho como fator atenuante, destaca-se positivamente a Lei Complementar n.º 840/2011, do Distrito Federal. Em seu artigo 197, inciso VI, a aludida norma estabelece, com clareza e coragem normativa, que constitui circunstância atenuante na aplicação de sanções disciplinares a “coexistência de causas relativas à carência de condições de material ou pessoal na repartição”.4
Esse dispositivo revela uma compreensão avançada da função pública e da complexidade inerente ao cumprimento dos deveres funcionais. Ao explicitar uma realidade frequentemente ignorada, o legislador distrital rompe com o padrão normativo que dissocia a atuação funcional do seu contexto institucional, abrindo espaço para decisões mais razoáveis e equitativas.
Outros diplomas até mencionam a existência de circunstâncias atenuantes,5 mas raramente detalham situações concretas vivenciadas pelos servidores, como o faz a legislação do Distrito Federal. Em geral, prevalece uma visão abstrata e idealizada da função pública, alheia às dificuldades estruturais enfrentadas cotidianamente.
Cumpre destacar, em reforço, que a 110ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2022 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), elevou o ambiente de trabalho seguro e saudável à condição de princípio e direito fundamental no âmbito das relações laborais;6 disposição que, obviamente, inclui os trabalhadores do serviço público.
3. A Responsabilização Funcional e a Razoabilidade na Interpretação
A responsabilização disciplinar deve se pautar não apenas pela legalidade, mas também pelos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e” justiça administrativa”.7 A ideia de que o “mundo legal” corresponde, necessariamente, ao “mundo ideal” é, embora legítima, uma simplificação que não resiste à análise concreta da realidade administrativa brasileira.
É necessário indagar: determinadas condutas são, de fato, exigíveis do servidor público diante das limitações estruturais do ambiente em que atua? Tais limitações teriam algum reflexo tanto na tipificação da falta quanto na pena a ser imposta? A imposição de um comportamento funcional idealizado, dissociado dos meios efetivamente disponíveis ao agente, conduz a uma responsabilização desproporcional e, por vezes, injusta. Nessas hipóteses, a interpretação das normas disciplinares deve ser orientada pelo reconhecimento de entraves estruturais, operacionais e normativos que restringem a margem de atuação do servidor. Tal interpretação – é preciso enfatizar - não se limita à fase de aplicação da penalidade, projetando-se também sobre o momento anterior, ou seja, sobre a própria tipificação da conduta infracional.
Não se trata, aqui, de relativizar a legalidade ou admitir o descumprimento de deveres funcionais. Trata-se de reconhecer que, para fins disciplinares, 8 em determinadas circunstâncias, a atuação do servidor é pautada pelos limites estruturais impostos e pela necessidade de observância ao princípio da continuidade do serviço público.
Conclusão
A tipificação e a aplicação das sanções disciplinares devem considerar, para além da letra fria da norma, o contexto em que a conduta ocorreu. A distância entre o “mundo ideal” e a realidade administrativa concreta não pode ser ignorada, sob pena de se instituir um sistema punitivo descolado da efetividade e alheio à justiça.
É louvável, portanto, que legislações como a do Distrito Federal avancem na direção de uma normatividade mais sensível, incluindo expressamente fatores reais como atenuantes. Essa abordagem demonstra que é possível preservar a autoridade da norma sem desconsiderar os limites concretos enfrentados pelos servidores públicos.
O futuro do Direito Administrativo Disciplinar deve caminhar nesse sentido: equilibrar legalidade com razoabilidade, norma com contexto, ideal com o possível. E, sobretudo, assegurar que a responsabilidade funcional seja aplicada com justiça — e não com rigor cego.
Referências
CRETELLA JÚNIOR, J.. Prática do Processo Administrativo, 8ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010.
DISTRITO FEDERAL, regime jurídico dos servidores públicos civis do Distrito Federal, das autarquias e das fundações públicas distritais. Instituído pela Lei Complementar n.º 840/2011
GOIÁS, Regime jurídico dos servidores públicos civis do Estado de Goiás, das autarquias e fundações públicas estaduais, instituído pela Lei 20.756/20.
MEDAUAR, Odete. Processualidade no Direito Administrativo, 2ª edição, editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34ª edição, Malheiros, São Paulo, 2008.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho.
SANTA CATARINA, Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de Santa Catarina, instituído pela Lei 6.745/85.
Notas
1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34ª edição, Malheiros, São Paulo, 2008, pág. 89.
2 Idem, pág. 90.
3 Conforme adverte CRETELLA, cada ente federativo pode fixar suas próprias regras (CRETELLA JÚNIOR, J.. Prática do Processo Administrativo, 8ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010, pág. 10.
4 DISTRITO FEDERAL, Lei Complementar n.º 840/2011 - Art. 197. São circunstâncias atenuantes: ... VI – coexistência de causas relativas à carência de condições de material ou pessoal na repartição”
5 V.g.: GOIÁS, Regime jurídico dos servidores públicos civis do Estado de Goiás, das autarquias e fundações públicas estaduais, instituído pela Lei 20.756/20 - art. 196, § 3º, inciso II; SANTA CATARINA, Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de Santa Catarina, Lei 6.745/85, art. 147.
6 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – Princípios: 2 –
a) A liberdade de associação e o reconhecimento efectivo do direito de negociação colectiva;
b) A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;
c) A abolição efectiva do trabalho infantil;
d) A eliminação da discriminação em matéria de emprego e de profissão;
e) Um ambiente de trabalho seguro e saudável .
7 0“Justiça na Administração” – expressão consagrada por Odete Medauar. Processualidade no Direito Administrativo, 2ª edição, editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002008, pág. 71.
8 E nesse ponto a tese ora defendida se afasta da Teoria da Reserva do Possível.